segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

DIALÉTICA DA NATUREZA

Desde a ambígua ordem bíblica, “multiplicai-vos e enchei a terra”, a ambiciosa fantasia do homem de dominar a natureza e explorar o planeta parece não conhecer limites.
O raciocínio humano e os métodos praticados para usar, transformar e venalizar a riqueza original da natureza têm dado à humanidade resultados surpreendentes. Árvores transformaram-se em choupanas, casas e palácios. Ferro e pedras uniram-se para enfrentar alturas e transpor abismos e largos rios. As riquezas naturais se afiguram inesgotáveis aos olhos do homem.
O artífice humano age como se fosse dono do cofre que se auto-abastece misteriosamente. Avança sobre as florestas, navega rios e mares, voa pelo espaço. Orgulha-se de suas conquistas, de seus conhecimentos, de sua sabedoria.
A natureza é paciente. Explorada, maltratada, generosa, também tem suas regras, leis e princípios. Ela sabe dar e retirar. Seu idioma é transparente, inconfundível, irretorquível. As cidades do homem, inundadas de águas grandes, caudalosas, não têm água para beber. É a dialética da natureza. É seu método imutável de ensinar o ser inteligente a se precaver.
Há que se retomar o diálogo com a natureza para decifrar, ponto por ponto, os caminhos de sua dialética. As ações humanas produzem efeitos bons ou ruins dos quais nascem práticas que desencadeiam um movimento circular.
A denominação de círculo vicioso para definir o encadeamento de causas e efeitos, recebeu, na concepção otimista a expressão oposta: círculo virtuoso. A expectativa, neste caso, é que as causas produzam efeitos que estimulem a continuidade da ação que os gerou. O bem produz o bem que produz o bem numa corrente contínua.
Na exploração e uso das riquezas naturais, especialmente as que se destinam à alimentação, ao abrigo das pessoas e vestuário para as variações do clima, o diálogo compartilhado com a natureza, capaz de gerar um movimento circular virtuoso, ainda está nos primeiros compassos.
A exploração das potencialidades naturais se faz de maneira abrupta, intempestiva, dependendo do tamanho da tribo. O aumento da população e a ampliação das necessidades, de sua variedade, provocam um movimento circular de caráter vicioso nem sempre interrompido a tempo. Há uma seqüência de substituições. Caem árvores e, em seu lugar, levantam-se casas, semeiam-se cereais ou criam-se manadas de bovinos..
A população se expande. A necessidade de alimentos aumenta. Moradia e vestuário estimulam a produção artesanal de utensílios cada vez mais apropriados para vencer as dificuldades que se apresentam. A ocupação dos espaços obedece a uma dialética de confronto entre o conhecimento, a habilidade, a necessidade, o interesse, a perspectiva de poder e organização da tribo e as oportunidades e riquezas disponíveis da Natureza.
Arbustos, árvores, florestas, no curso de séculos, desaparecem para dar lugar a assentamentos humanos. Animais e aves são forçados a emigrar, a mudar seus hábitos e, lentamente, extinguem-se à míngua de alimentos ou nutrem os invasores. As grandes populações e a urbanização acelerada devastaram e continuam arrasando imensas áreas do planeta. Sobreviver ou viver, para todos os seres do reino animal e vegetal, são um desafio dispendioso e cercado de riscos crescentes.
A dialética do agir humano, conduzida pela premissa anteposta de que o homem é o senhor e dono do universo, conflita com a dialética da natureza a cujas leis universais todos os seres e os elementos obedecem. O conflito entre o homem e a natureza produz atos de violência entre humanos e provoca a fúria das leis físicas, pondo em risco vidas, quando não sua destruição. Gera-se um círculo vicioso. O homem, diante da rigidez das leis da natureza, passa a defender-se delas. Explora e usa as oportunidades naturais na ânsia de dominar as leis físicas. Invade terras, derruba florestas, reprime e desvia cursos de água, substitui matas por soja, cana-de-açúcar, arroz e milho para si e para suas máquinas.
A lógica do homem é linear: produzir comida ou combustíveis no lugar de plantas. A lógica da justificativa também é linear. A população cresce e, portanto, precisa de alimentos, casa e tudo o mais resumido no conceito de progresso, hoje dito crescimento econômico.
Os planos de ordenamento da ocupação territorial dos estados brasileiros, elaborados por planejadores, demógrafos, engenheiros, arquitetos, legisladores, administradores e investidores, poderiam ser um canal útil de aproximação e de diálogo entre homem e natureza. Propiciariam o encontro de duas dialéticas: a dialética da demanda de conhecimentos e experimentos para construir a convivência, a felicidade entre os seres da espécie humana e a da oferta de riquezas naturais, armazenadas no solo, na água, nas plantas, nos minérios, nos animais.
A ocupação do território pela população e o uso dos bens e riquezas nele disponíveis são dois aspetos essenciais da relação homem-natureza. São duas grandezas com tendências opostas. O crescimento da população, mesmo em ritmo lento, tende ao infinito. As riquezas naturais, ainda que passiveis de expansão induzida ou reciclada, tendem ao esgotamento.
Produzir alimentos para uma população que aumenta sobre um território limitado, custa progressivamente mais caro e é mais difícil. Calcula-se que para propiciar igual conforto a todos os habitantes do Distrito Federal (2,5 milhões), ter-se-ia que multiplicar o território atual por três. O adensamento dos bairros Samambaia, Recanto das Emas ou Santa Maria contrasta com o espaçamento do Lago Sul, Lago Norte e o propalado Setor Noroeste.
O fato de o preço do quilo de arroz ou do litro de leite não variar muito de um ano para outro, e até diminuir sazonalmente, não reflete seu verdadeiro custo. O preço é determinado por um conjunto de fatores em grande parte externos à dialética da natureza. A produtividade alcançada, a mão-de-obra do agricultor, a colheita e as perdas inerentes, o transporte, o armazenamento, a distribuição e os impostos acarretam custos que, no final, têm que se ajustar ao montante de dinheiro do consumidor.
Mas há outros custos não contabilizados que tornam fictício e irreal o preço do quilo do milho. Não se contabiliza o custo imposto à natureza com a derrubada de milhões de árvores, do uso intensivo e esgotante da água, do envenenamento operado pelos inseticidas e herbicidas. Não se inclui o custo da eliminação das fontes de oxigênio em troca de emissões de gases tóxicos, do desequilíbrio ambiental, mudando o curso dos ventos e das chuvas, da expulsão de aves e animais, da debilitação das defesas dos seres vivos.
Quanto custa essa mudança para a natureza e para o homem? A desertificação gradual, a recuperação do equilíbrio são conseqüências que encarecem a sobrevivência e a ameaçam. Se todos esses custos fossem aplicados na fixação do preço do litro de leite a decisão de investir na bovinocultura teria que ser postergada.
Se isto ocorre na agricultura, não menos grave e preocupante é a atitude da população no que se refere aos assentamentos urbanos. A urbanização também é um processo de desertificação. Sacrificam-se árvores e secam-se mananciais. Fecham-se os canais de circulação dos ventos e de esgotamento ou infiltração das águas pluviais. Eliminam-se defesas naturais e, produz-se lixo. Esses elementos de custo não se contabilizam para determinar o preço do metro quadrado da construção.
Um plano de ordenamento territorial tem possibilidade de ser útil ao dialogo da dialética do homem e da natureza se houver negociação entre ambos, para controlar a expansão da população nos limites da capacidade de suporte do território com o mínimo de custos para os dois lados.
O equilíbrio das relações homem-natureza foi grandiosamente incluído por Lúcio Costa em seu projeto de cidade-parque para Brasília. Nesse conceito cabe o homem inteiro num território acolhedor, verde, silencioso, propício à reflexão, ao trabalho, ao estudo, à integração das pessoas num universo ordenado. A ocupação de um território, dando-se primazia à população, apenas pelo primitivismo da demanda, é intensificar a desertificação pelas conseqüentes ações que a urbanização vai exigir. Passaremos a vender e a ocupar desertos.
O “controle do crescimento de Brasília”, expressão dúbia usada frequentemente por especialistas, planejadores e administradores do Distrito Federal, só é possível se, paralelamente, forem praticadas estratégias diversificadas de controle do crescimento e da mobilidade da população.
Alternando-se o fluxo e o refluxo de concepções e atitudes do homem, aproximando-se da natureza, é possível construir uma corrente virtuosa contínua. Infelizmente, começa-se com a prática pouco refletida de ações que geram o círculo vicioso. A racionalidade nas relações com a natureza é um desafio mais dignificante para o ser inteligente do que a aventura da exploração das riquezas naturais em nome do progresso e do crescimento econômico afluente e consumista.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

DITADURA ECONÔMICA E SOCIAL

Pedro de Montemor insiste em dizer-me que somos governados por uma ditadura econômica e administrativa.
− Elegemos presidentes, governadores, deputados e senadores em boa fé democrática. O que fazem eles? Com a máscara da democracia elaboram, discutem e aprovam leis segundo seus interesses políticos e econômicos.
Sua indignação procede. Observe-se a recente lei que estabelece o Plano Diretor de Ordenamento Territorial – PDOT −, no Distrito Federal. As propostas sugeridas democraticamente pelas organizações de defesa do Projeto Lucio Costa para Brasília e por dezenas de ONG’s ambientalistas, em sua maioria, não foram incluídas no Plano.
Os deputados são íncubos e súcubos do poder ditatorial que nos governa com forte dose de cinismo. A ditadura é ordenada e legislada pelos interesses econômicos do grande capital e de interesses privados sob a justificativa do coletivo, quando não de benefícios para os pobres.
Os que acham que vivemos subordinados a uma democracia contentam-se com sobras. Aplaudem os que esparramaram migalhas coloridas pelos caminhos. Contentam-se com o sorriso e o abraço dos poderosos. Agradecem à carona que os devolve à casa para ouvir na TV os desmandos, os roubos e as maracutaias dos ditadores sem rosto.
A maioria do povo brasileiro está contente com o regime autoritário da economia e com o chefe da nação que a dirige. Mais de três quartos da população, segundo levantamento de opiniões, acreditam que é o Presidente quem realmente decide sobre nossa felicidade e sobre os destinos da economia.
Estão felizes os redimidos porque podem comer, ir ao supermercado e comprar a geladeira. A felicidade e o contentamento se fortalecem porque o sonho do carro zero se realizou. Ou porque a TV moderna e maior, o computador e o celular igualam, de certa maneira, o rico e o pobre. Freqüentar o bar da esquina ou o restaurante chinês, de vez em quando, é sinal de inclusão social ou do salto mágico para a classe média.
Nessa lista da felicidade não entra o direito de maior participação nas decisões políticas e econômicas. Ela se reduz ao fato de comprar mais e mais. Nessa lista não se inclui o “supérfluo” de ir ao cinema, ao teatro, ao concerto, às livrarias ou bibliotecas populares, embora a renda tenha aumentado.
Não constam nessa lista o incômodo do analfabetismo ou semi-analfabetismo, o incipiente aprendizado nas escolas primárias, a vergonha das epidemias e das filas nos hospitais, a violência da destruição ambiental, o desprezo pelo cumprimento das leis e a indiferença pela ética.
Não consta nessa lista o endividamento sistemático e aprisionador dos créditos e juros escorchantes nem se menciona o comezinho conselho da poupança na consolidação de qualquer patrimônio.
Estamos ainda no patamar de felicidade da sobrevivência, do contentamento primitivo da satisfação de necessidades básicas. É sobre esse comportamento submisso, indefeso e inofensivo que se exerce o poder das grandes empresas nacionais em cumplicidade com as transnacionais, de bancos públicos e privados, com a conivência do autoritário Banco Central e de um congresso fantoche na festa antipatriótica da especulação financeira. Unânimes, unidos ao governo estatal, determinam a hora e o nível das concessões e favores, pão e circo, balizadores da felicidade e do contentamento da população anestesiada e hebetizada.
A banda passa, os palhaços dançam. Das janelas caem nuvens de papel picado. É tempo de sorrisos. Mais um ano termina e os fogos fátuos saúdam a consolidação das instituições democráticas como nunca neste país.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

POR QUE UFANAR-SE

Por que devo ufanar-me se o Distrito Federal é bombardeado por mais de um milhão de carros? Isto é, ufanar-me por respirar, durante 24 horas, dióxido de carbono?
Sou realista e algo pessimista, tenho neurônios de Cassandra. Alguns amigos, talvez leitores de meu blog, minha mulher e eu mesmo nos surpreendemos na contramão desse entusiasmo que tomou conta da população rica e pobre.
Não consigo aplaudir legisladores e governantes que aprovam projetos cujo resultado é a destruição da paisagem silenciosa do Planalto Central. Derrubam-se árvores, arrasa-se o solo, matam-se mananciais e córregos.
Por que teria que admirar imensos, gigantescos e ousados viadutos que secam a atmosfera e estimulam o uso do automóvel individual?
Por que devo me orgulhar com soluções geniais de abrigar, em refúgios subterrâneos, no centro da cidade, milhares de carros? Por que devo achar bonito que nesses ambientes de concentração de gases tóxicos haja bares, restaurantes, lojas, piscinas aquecidas, bancos e parques infantis se posso ficar sentado num banco de praça a olhar as plantas e a ouvir pássaros e, à note, ver estrelas?
Por que me ufanaria com a notícia de que Brasília é a terceira metrópole brasileira e está a caminho de incorporar todas as dificuldades das outras duas, onde as pessoas se transformam em percentuais?
Por que devo me admirar que um condutor de carro ceda, obrigado por lei, o direito a um cidadão de atravessar uma rua de sua cidade?
Por que devo me orgulhar da inteligência do sistema de trânsito que sabe onde pôr um semáforo, abrir retornos, duplicar avenidas para que as máquinas não se atropelem e não percam tempo?
Não deveríamos estranhar que o brasiliense esqueceu de andar a pé?
Por que devo agradecer ao sistema de trânsito que me dá alguns segundos para atravessar a rua, em alguns desses cruzamentos, com risco de ser atropelado?
Os sinais não são para os pedestres. Posso usá-los nessa fração de tempo em que os carros se respeitam ou se xingam, indo para todas as direções. Há que ser rápido para que o sinal vermelho não nos colha no meio do caminho.
Por que devo aplaudir a abertura de postos de polícia para deter ladrões e não se tem um salário mínimo para contratar uma bibliotecária de uma biblioteca comunitária no vilarejo Engenho das Lajes?
Por que devo me sentir feliz ao ver passar carros de luxo, ouvir a algazarra dos bares da moda se, nos semáforos, crianças vendem panos de prato e desempregados dormem nas marquises de bancos bilionários?
Por que devo me alegrar com a descoberta do pré-sal, com a tecnologia do etanol, menos poluente do que o petróleo, se o número de carros rodando pelas estradas e ruas torna a vida da cidade um inferno poluído?
Por que devo pular de alegria quando ouço o Presidente da República estimular a fabricação e a compra de automóveis para justificar o direito dos pobres de consumir?
Por que devo me extasiar com as viagens do Presidente em avião privativo a quase todos os países da Ásia, da África, da Europa e das Américas? Toma chá com o Ho-Chi-Ming da vez, e pede a bênção do papa como quem vai à padaria da esquina. Não se sabe ao certo o que vai vender ou aprender. Os jornalistas dizem o que sabem e não é muito. Os mercados do etanol são, para o Presidente, mais importantes do que o funcionamento de hospitais e postos de saúde nos quais os pacientes esperam dias, semanas e meses para uma consulta ou cirurgia.
Terá o sindicalista, hoje presidente, esquecido o tempo do pau-de-arara que se prolonga para milhões de brasileiros?
Devo entusiasmar-me com os conselhos do Presidente para que o povo compre, compre, consuma, se endivide para que a economia não pare de crescer, vendo famintos e drogados pelas ruas do meu bairro?
É para pular de alegria quando apareceram bilhões de reais para bancos e montadoras de carros com pompa, discurso e almoço?
Para melhorar o atendimento em hospitais e escolas, arrancam-se a fórceps as migalhas que sustentam o regime do emagrecimento cultural e a obesidade do analfabetismo.

POR QUE UFANAR-SE

Por que devo ufanar-me se o Distrito Federal é bombardeado por mais de um milhão de carros? Isto é, ufanar-me por respirar, durante 24 horas, dióxido de carbono?
Sou realista e algo pessimista, tenho neurônios de Cassandra. Alguns amigos, talvez leitores de meu blog, minha mulher e eu mesmo nos surpreendemos na contramão desse entusiasmo que tomou conta da população rica e pobre.
Não consigo aplaudir legisladores e governantes que aprovam projetos cujo resultado é a destruição da paisagem silenciosa do Planalto Central. Derrubam-se árvores, arrasa-se o solo, matam-se mananciais e córregos.
Por que teria que admirar imensos, gigantescos e ousados viadutos que secam a atmosfera e estimulam o uso do automóvel individual?
Por que devo me orgulhar com soluções geniais de abrigar, em refúgios subterrâneos, no centro da cidade, milhares de carros? Por que devo achar bonito que nesses ambientes de concentração de gases tóxicos haja bares, restaurantes, lojas, piscinas aquecidas, bancos e parques infantis se posso ficar sentado num banco de praça a olhar as plantas e a ouvir pássaros e, à note, ver estrelas?
Por que me ufanaria com a notícia de que Brasília é a terceira metrópole brasileira e está a caminho de incorporar todas as dificuldades das outras duas, onde as pessoas se transformam em percentuais?
Por que devo me admirar que um condutor de carro ceda, obrigado por lei, o direito a um cidadão de atravessar uma rua de sua cidade?
Por que devo me orgulhar da inteligência do sistema de trânsito que sabe onde pôr um semáforo, abrir retornos, duplicar avenidas para que as máquinas não se atropelem e não percam tempo?
Não deveríamos estranhar que o brasiliense esqueceu de andar a pé?
Por que devo agradecer ao sistema de trânsito que me dá alguns segundos para atravessar a rua, em alguns desses cruzamentos, com risco de ser atropelado?
Os sinais não são para os pedestres. Posso usá-los nessa fração de tempo em que os carros se respeitam ou se xingam, indo para todas as direções. Há que ser rápido para que o sinal vermelho não nos colha no meio do caminho.
Por que devo aplaudir a abertura de postos de polícia para deter ladrões e não se tem um salário mínimo para contratar uma bibliotecária de uma biblioteca comunitária no vilarejo Engenho das Lajes?
Por que devo me sentir feliz ao ver passar carros de luxo, ouvir a algazarra dos bares da moda se, nos semáforos, crianças vendem panos de prato e desempregados dormem nas marquises de bancos bilionários?
Por que devo me alegrar com a descoberta do pré-sal, com a tecnologia do etanol, menos poluente do que o petróleo, se o número de carros rodando pelas estradas e ruas torna a vida da cidade um inferno poluído?
Por que devo pular de alegria quando ouço o Presidente da República estimular a fabricação e a compra de automóveis para justificar o direito dos pobres de consumir?
Por que devo me extasiar com as viagens do Presidente em avião privativo a quase todos os países da Ásia, da África, da Europa e das Américas? Toma chá com o Ho-Chi-Ming da vez, e pede a bênção do papa como quem vai à padaria da esquina. Não se sabe ao certo o que vai vender ou aprender. Os jornalistas dizem o que sabem e não é muito. Os mercados do etanol são, para o Presidente, mais importantes do que o funcionamento de hospitais e postos de saúde nos quais os pacientes esperam dias, semanas e meses para uma consulta ou cirurgia.
Terá o sindicalista, hoje presidente, esquecido o tempo do pau-de-arara que se prolonga para milhões de brasileiros?
Devo entusiasmar-me com os conselhos do Presidente para que o povo compre, compre, consuma, se endivide para que a economia não pare de crescer, vendo famintos e drogados pelas ruas do meu bairro?
É para pular de alegria quando apareceram bilhões de reais para bancos e montadoras de carros com pompa, discurso e almoço?
Para melhorar o atendimento em hospitais e escolas, arrancam-se a fórceps as migalhas que sustentam o regime do emagrecimento cultural e a obesidade do analfabetismo.

VER ESTRELAS

A vida é disputada palmo a palmo, minuto a minuto. Reparte-se o tempo em frações e migalhas. Há que dormir e acordar. Ir à padaria bem cedo para comprar o pão. Passear por entre as gôndolas do supermercado para encaixar os produtos no orçamento. Correr para o ônibus, ao metrô, ao carro para chegar ao trabalho a tempo de não ser repreendido pelo chefe.
Vai-se ao almoço, ao jantar ou ao bar da esquina. Tudo está previamente disposto. Compromissos, hora marcada. Ao médico, ao dentista que, via de regra, fazem o paciente esperar e ler uma velha Caras ou Veja. É o velório inesperado, o enterro. As crianças para a escola, ir e vir, ao balé, ao esporte. Horas gastas no trânsito engarrafado, na fila do banco, na porta da Loteca, na procura do emprego melhor. E a cozinheira na cozinha, a empregada no aspirador e no espanador, a passadeira na prancha e no ferro de engomar. E cada um em sua azafama diária ou noturna.
Minha neta Luiza convidou-me para sair à noite e ver estrelas. Milhares de carros circulavam em todas as direções, impacientes, loucos. Ouvia-se o vozerio dos bares, discussões nas TV’s que as novelas emitiam, a voz esganiçada do locutor de futebol.
Luiza queria escolher uma estrela, dar-lhe um nome e registrá-la como sua. Escolheu provisoriamente Alfa do Centauro.
Rodamos no espaço a bordo de um planeta a uma velocidade estonteante e, daqui, na escuridão do infinito, podemos apreciar estrelas.
Poucos saem à noite para ver estrelas. São nossas vizinhas na imensidão do firmamento. A noite é o caminho das estrelas. Mas, se quase não conhecemos o vizinho da porta ao lado, como sair à noite para ver estrelas, nossas vizinhas.
Disse Dante a Virgilio ao sair do Inferno:
− Uscimo a riveder le stelle. Saímos a rever estrelas.

PERIGO INVISÍVEL

O agente de trânsito, de apito na boca, ergueu o braço, espalmou a mão e indicou a pista do acostamento ao condutor. Pediu-lhe os documentos, sem pressa, leu-os. Confrontou os dados e, com passo lento, foi à parte dianteira e traseira do automóvel.
− O senhor ultrapassou os limites permitidos de velocidade para este trecho da via.
− É verdade, reconheceu o cidadão, educadamente. O trânsito estava livre, achei que podia correr mais. Estou com um pouco de pressa.
− O perigo é invisível, filosofou o agente, e entregou-lhe a notificação da multa.
Os educadores repetem às mães que os filhos precisam, desde cedo, conhecer os limites. Até onde é possível e onde não é permitido aventurar-se sem risco de se perder na selva das relações humanas? Os perigos desta vida são invisíveis.
Os limites existem e também são, muitas vezes, invisíveis e o perigo de ultrapassá-los podem causar sérios danos. Há limites para gastos e investimentos, para comer e beber. Há um limite de peso que nossa coluna possa suportar. Há um limite de filhos para a família educar. Há um limite para a ocupação de uma região, pois os perigos são invisíveis e inúmeros.
Um amigo arquiteto, na mesa do bar, manifestou admiração pelos migrantes brasileiros que buscam melhores oportunidades. No calor do entusiasmo, afirmou não importar que 100 milhões venham habitar o Distrito Federal e o Planalto Central se aqui melhoram suas condições de vida comparadas com a da terra de origem.
Pedro de Montemor que o escutava não levou a sério o número proposto. É um exagero evidente.
− Cada imigrante encontrará, aqui, um perigo invisível, disse Montemor. Ultrapassado o limite invisível, os perigos invisíveis começam a se revelar. Não será mais prudente examinar os perigos da vida e aceitar limites, evitando ser barrado por um agente?.
Há limites pouco observados: água, áreas verdes, parques para caminhadas, ar puro para respirar, meios de comunicação confiáveis e transporte confortável. Esses e outros itens escondem perigos invisíveis que sugerem limites na ocupação de espaços urbanos.
Quando esses limites são ultrapassados, os perigos se manifestam na forma de segregação, discriminação, privilégios, pobreza, desigualdade, violência. As linhas dos limites se apagam. E, como se constata, hoje, no Distrito Federal e em Brasília, não há agentes suficientes para lembrar ao cidadão a existência de perigos invisíveis.
As perdas se lamentam no dia do enterro.

SEMÁFOROS E PARDAIS

A cidade é para o cidadão. As ruas, para as pessoas caminharem, ir ao trabalho, visitar amigos, abastecer-se de bens necessários ao conforto da vida.
Os longos caminhos do campo que uniam vizinhos distantes foram encurtados com o surgimento de feudos e burgos. Os arredores dos castelos ou dos palácios de reis e príncipes foram se enchendo de gente que se espalharam por onde lhes era fácil e permitido.
As ruas foram ligando as casas em todas as direções. A passagem de uma liteira, de um cavalo, de uma caleça não exigia mais do que dois a três metros de largura. O automóvel ainda hoje não passa em algumas dessas vielas de cidades antigas. Em outras, para satisfazer ao domínio crescente da máquina, reduziu-se a quase nada a calçada que servia de solar à entrada das casas.
A velocidade e a pressa degradam a mente do cidadão. Ele criou exigências e se impôs atitudes irracionais. Inventou a máquina e se fez escravo dela. Em nome da eficiência e da eficácia tudo tem de ser mais rápido, sem perda de tempo. Os contatos de primeiro grau cederam aos de terceiro. A pressa é necessária. A velocidade é a solução.
Para conter o excesso de velocidade, causa freqüente de mortes do cidadão, criam-se leis e obstáculos: barreiras eletrônicas, pardais, sonorizadores, placas de advertência, sinalizações diversas, semáforos. Todos têm um objetivo pouco enfatizado: garantir que todos cheguem sãos e salvos ao destino. Nem sempre isso ocorre.
A irracionalidade no uso da máquina é tal que para atender às cobranças da pressa e da velocidade é preciso criar mecanismos contraditórios. Conter a velocidade, aumentando a ansiedade produzida pela pressa.
O cidadão está numa prisão que os técnicos e administradores denominam sistema de trânsito, controlado por dezenas de órgãos e sub-órgãos, e milhares de funcionários das mais variadas categorias profissionais. Elas representam desde o inventor do pardal com sua câmara fotográfica armada para disparar à menor distração do condutor até o agente de trânsito que multa e recolhe o veículo ao depósito.
A invenção das barreiras eletrônicas e dos semáforos faz hoje a festa das sanções, das multas e da arrecadação do dinheiro do cidadão. O imposto e a multa são uma extensão da esmola que o pobre pede na rua para sobreviver. O rei preguiçoso da antiguidade impôs ao súdito uma contribuição para morar em suas terras.
Ineficiente e cara, a moderna administração age da mesma forma. Se o cidadão examinar com atenção verá que os idealizadores e controladores do sistema de trânsito usam o raciocínio de entradas e saídas e caem vítimas da própria invenção. Uma espécie de masoquismo burocrático. Todos eles têm em mira a velocidade e a pressa, buscando contorná-las com um efeito grandioso: a fluidez. O trânsito flui. E para fluir é preciso criar barreiras, retenções, semáforos.
− Com tantos semáforos na W-3 e na L-2 o trânsito não flui, engarrafa, escreveu um leitor ao Correio Braziliense.
− Novos retornos estão sendo oferecidos aos condutores para evitar longas filas nos semáforos existentes, cuja localização impede a fluidez do tráfego, responde um controlador do sistema..
O resultado, com o aumento de carros em circulação, é apenas o deslocamento de filas e engarrafamentos. A fila foi transferida para o novo retorno com semáforo a 100 metros atrás.
Parece que os controladores do sistema brincam com seu funcionamento para se iludir durante as horas fastidiosas do trabalho.
Um sistema de trânsito que esquece o pedestre – o cidadão pedestre − e o exclui das ruas para dar espaço ao movimento do carro individual não resolve a equação velocidade e pressa.
A solução está na racionalidade cuja equação é: menos carros, mais espaço e, portanto, mais fluidez. O sistema de trânsito de uma cidade começa com as facilidades para o cidadão caminhar.
O meio de transporte que o cidadão precisa para ir a lugares e logradouros públicos é apenas um meio. O sistema de trânsito irracional que nos aprisiona toma o automóvel individual como um objetivo, não importa a finalidade do uso da máquina. O cidadão – condutor do carro − tornou-se tão irracional quanto o sistema que o aprisiona. O cidadão-condutor sustenta um sistema sem solução.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

INUNDAÇÕES

Em Santa Catarina, a massa de água das chuvas moveu montanhas, derreteu o solo e arrastou árvores e terra sobre o Vale do Rio Itajaí, arrasando casas, levando pontes e soterrando mais de uma centena de pessoas.
É sempre tempo para aprender as lições físicas da natureza. Há milhões de anos, os lampejos da inteligência do homem indicavam as cavernas como refúgio seguro para fugir de animais famintos e abrigar-se da chuva, dos ventos e dos raios.
Afoito, ousado, nosso antepassado ganhou algumas batalhas, medindo forças com os ventos e tempestades. Usou os elementos da Terra para sobreviver sobre ela. Pedras grossas contra ventos fortes. Madeiras resistentes contra as chuvas torrenciais. Diques e canais para proteger suas plantações. Usava os benefícios da lei física para defender-se da explosão espontânea de seu funcionamento. Compreendeu que elas funcionam de maneira categórica e indiscutível dentro de seu sistema. Prevenido, à medida que distinguia as estações do ano e as surpresas que as caracterizam, buscou no alto um lugar para construir sua casa.
A Torre de Babel é uma parábola que lembra a aventura, a ousadia, a ambição e a afoiteza da inteligência do homem na tentativa de dominar a natureza e controlar as leis físicas.
A inteligência do homem evolui. É tempo de compreender e aceitar uma nova realidade tão antiga quanto o universo. Fazemos parte dele como os ventos, a luz, a chuva, os raios, as plantas, os animais. Podemos usar das riquezas que nosso planeta nos oferece. Mas há um preço a pagar quando não sabemos o que fazer com elas.
Nossa imprudência, nossas certezas, nosso modo de ocupar os espaços necessários à vida, nossa avidez e necessidades naturais ou provocadas podem custar caro. A vida é o maior custo.
As leis físicas são as forças superiores reais. Elas não conhecem nossos mitos, nossas crenças, nossa fé no poder da técnica. Técnica e prudência. Menos técnica e mais prudência podem diminuir os perigos de perder a vida e a dos que amamos.
Choramos por todos que pereceram: pessoas, árvores, animais. É uma oportunidade a mais que a natureza nos dá para aprender.

07/12/2008

ESTATÍSTICA E O DESCONHECIDO

O desconhecido é desagregado em termos quantitativos com os quais se arma uma equação da qual resulta o conhecido
Dizem-nos que neste ano morrerão 100 mil mulheres, vitimadas pelo câncer de mama, 4,7% a mais do que no ano passado. Nada se pode fazer. A estatística determinou. Ela pensou por nós e nós aceitamos e nos dobramos à força dessa profecia.
No ano que vem, todos os cálculos estatísticos manipulados pelos especialistas profetizarão o crescimento do PIB em 4,8% ou qualquer outro número. Pode-se aplaudir de antemão os êxitos do futuro e comemorar com um almoço de confraternização antecipado.
Não interessa, no momento, o que isso significa nem nos é dado penetrar nesse mistério. Esse mito estatístico alimenta o pensamento do economista e dos analistas que só aparecem depois do leite derramado para explicar a fragilidade do vidro.
O ritual do mito é a repetição sucessiva. Ela confere valor aos atos, às expectativas, à consolidação da credulidade. Não importa que o resultado não seja o anunciado. A fé no percentual equivale à da pessoa que suplica o milagre. Se não o obtiver, as razões são extraídas de um poder superior que sabe o que é bom e o que não é para o crédulo.
Os jornalistas e economistas são sacerdotes do novo mito estatístico. Eles falam do desconhecido e nós acreditamos ou fingimos crer que eles o conhecem. Conhecemos assim o desconhecido por antecipação. Ele nos é revelado pela força da matemática e aceitamos que os fatos se produzem fatalmente.
Os fatos exteriores nos embalam e vamos com eles. Acha-se natural que as ruas de Brasília se entupam com milhares de carros. Outros milhares virão anunciados por um percentual. E virão. Os mortos e atropelados pelos condutores de carros se transformam ou se encarnam num percentual que ainda não aconteceu, mas vai acontecer.
Sabemos, por antecipação, que em futuro imediato as nascentes dos rios secarão para deixar lugar à construção de milhares de casas. Que as avenidas e viadutos destruirão a harmonia da natureza do cerrado. Que as árvores serão sacrificadas e recortadas para a circulação de máquinas que emitem veneno e causam doenças à população. Nada a fazer. O desconhecido foi anunciado e existe logo ali na frente.
A estatística existe e o percentual é sua voz profética.

COMPRAR, COMPRAR

Uma economia se constrói com poupança e não com cartão de crédito e endividamento sistemático.
Estimular a compra compulsiva comprova uma aliança indecente com o desperdício, com o lucro dos bancos e das mega empresas, com a exploração do vazio humano e da irracionalidade. Comprar para salvar a economia, para garantir altos índices estatísticos e de aprovação popular é um crime contra o bom senso.
O Presidente da República aposta todas as fichas no espetáculo do crescimento para se redimir de seu passado de esquerda e da vergonha de ter sido oposição ao que hoje faz. Entrega-se de alma e corpo à obsessão de ser o único infenso e ileso de todas as falcatruas da vizinhança do poder.
Está convencido de que, para dar comida aos milhões de pobres do país, é necessário estimular os ricos a ganhar mais dinheiro. Estratégia que, segundo suas declarações, terá dois resultados imediatos: - aumenta-se o número de empregos cujo salário vai para o consumo compulsivo; − recolhem-se mais impostos para engordar as receitas e continuar a festa do gasto público ineficiente. Mas é festa. Toda festa supõe um gasto ineficiente. Consome-se, fala-se, ri-se, alegram-se os convivas, ficam os copos vazios e os pratos limpos. A cobertura do bolo para o encerramento da festa é feita com números estatísticos dogmáticos, indiscutíveis, conclusivos.
Ninguém ousa opor-se a eles, pois têm valor e força do mito. Pertencem à religião do consumo, do prazer de possuir e usufruir. Pouco se diz sobre o objetivo último e a conseqüência nefasta do investimento que supostamente gera crescimento. Nenhuma empresa é instituída para criar postos de trabalho. O empresário investe para ter o máximo de lucro possível segundo as circunstancias e facilidades que encontra ou exige. Incluem-se favores fiscais, perdão de dívidas, créditos fáceis, sonegação de impostos.
O primeiro corte de gastos, em circunstancias econômicas ou políticas adversas, é no departamento de pessoal. Ter mais empregados significa diminuir os lucros. Produzir mais com menos trabalhadores, eis a questão.
A ordem do Presidente de comprar, comprar para salvar a economia e estufar o crescimento é um contra-senso. Pretende-se evitar o desemprego pela via do consumo a qualquer preço. Não é demais repetir que a economia doméstica ou a nacional se fortalecem com poupança e não com gastança. A obsessão do crescimento desconsidera a fonte de todas as riquezas: os bens na natureza. As grandes populações, como a brasileira, demandam intensa exploração das riquezas naturais desde a água até o minério de ferro. O Distrito Federal é uma das vítimas dessa ânsia de ocupar os espaços das árvores, das nascentes e dos animais.
População e natureza são dois componentes que escapam ao raciocínio da economia atual e de cujas conseqüências a crise mundial está alertando. Um paradigma econômico diferente há de nascer. Não é possível que um país novo como o Brasil se deixe arrastar pelos equívocos ambientais da Europa do século XIX ou da China atual. Menos consumo e mais poupança. Racionalidade no uso das riquezas naturais, aproximação dos governos e da população ao convívio mais intenso com as possibilidades e oportunidades simples e duradouras – também ditas sustentáveis − serão decisões que o tempo e as crises nos obrigarão a tomar.
O mundo já é pequeno para tanta gente. A ordem de consumir, comprar, endividar-se revela desprezo pela natureza, ignorância ou má fé.
Presidente Lula, pare de mandar o povo gastar.

FALÊNCIA MÚLTIPLA

O planeta rola sem parar pelo espaço. Os anos passam, as estações mudam, os dias voam levando as horas de roldão. Marcam-se fatos, anotam-se repetições, examinam-se causas, tiram-se conclusões.
Sabe-se com relativa certeza, se não matemática, que alguns fenômenos da natureza vão se repetir. Pode-se prever quando, como, onde e até com qual intensidade.
Mas, na prática, esses conhecimentos não tornam as pessoas mais prudentes e mais conscientes. Os fenômenos naturais são conhecidos. Com esse conhecimento os cientistas não só os descrevem como avançam previsões de comportamento de leis físicas ligadas ao movimento dos astros, direção dos ventos, períodos de chuvas e secas.
Riscos e desastres têm ocorrido anualmente com intensidade crescente e em locais identificados. Há regiões que são naturalmente afetadas por ventos e chuvas intensas.
As pessoas, pela experiência acumulada de milhões de anos, desde o Dilúvio, não deveriam ocupar certas áreas. Os agrupamentos urbanos, coletivamente, esqueceram ou desprezaram essas singelas noções de segurança e proteção. Os indígenas, observadores da natuteza, constroem suas tabas em locais seguros, longe de inundações e protegidas do vento por cortinas de mato a seu redor.
A organização do Estado que, se presume, detém todas essas informações e pode usar todos os conhecimentos disponíveis em benefício dos cidadãos, está falhando escandalosamente. Há leis e organismos para controlar, orientar, fiscalizar, coibir e sancionar a multiplicidade dos atos do cidadão. As decisões pessoais, com raríssimas exceções, têm que se ajustar e obedecer a alguma lei aprovada e obter a autorização de algum órgão publico para conviver na comunidade.
Observe-se o funcionamento da saúde pública, da segurança, da educação, do trânsito urbano e viário, do comércio, da limpeza da cidade, da ocupação do solo, da proteção ambiental. Os comportamentos do cidadão afrontam a inteligência e desprezam os conhecimentos acumulados. É uma luta permanente para contornar as leis e adaptá-las ao individual contra o coletivo e a racionalidade.
Na hora do desastre, seja a inundação de uma cidade, seja o engarrafamento das ruas por milhares de carros individuais apela-se para o coletivo e para a solidariedade. Nesse momento, a sociedade civil tem peso maior que o do Estado. É o resultado da falência múltipla dos órgãos vitais do Estado, das comunidades, da organização social, dos cidadãos.
Diante da falência múltipla os remédios são impotentes, os conhecimentos, inúteis. O doente sobrevive e respira por aparelhos. A máquina substitui a alma.
A história da humanidade registra cemitérios que guardam escombros de civilizações que nos precederam.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ÁGUAS TOTAIS

A água é um bem pessoal e deve ser olhada e respeitada como parte da vida de cada um. A gota de suor tem que ser reposta com uma gota de água. Uma garrafa, um plástico, um toco de cigarro, um escarro, o lixo da casa jogados no chão são ataques à própria vida individual. Somam-se à poluição que produzimos com o uso abusivo do carro particular, com as queimadas que destroem as florestas.

A água constitui uma das características que diferenciam nosso planeta de outros. Nenhum tipo de vida é possível sem água.
Duas concepções opostas conflitam-se. De um lado, os que consideram a água um bem econômico a ser vendido e comprado com objetivo de lucro. De outro, os que acreditam que a água é um bem a ser preservado para estar disponível às pessoas e à natureza.
Grandes empresas que engarrafam águas vêm secando os aqüíferos locais, poluindo o meio ambiente e cobrando milhares de vezes mais do que se fosse colhida das bicas ou fontes públicas.
Respostas para preservar a água: reaproveitamento das águas; agricultura sustentável em vez de agricultura industrial; reforma maciça nas infra-estruturas; preservação e recuperação de sistemas hídricos destruídos; leis severas contra a poluição; limitação do crescimento industrial; tecnologias adequadas a cada lugar; fim das grandes represas; limitação rigorosa de exploração dos aqüíferos; controle demográfico mais eficaz..
Em 2004, a Turquia e Israel se preparavam para assinar um acordo singular. Israel forneceria armas à Turquia em troca de água doce transportada em navios-tanque. 50 milhões de metros cúbicos por ano em troca de tanques de guerra israelenses.
A falta de água torna a vida impossível em vários locais do mundo e provoca migração de populações inteiras.
Cada dia mais pessoas precisam de água e a necessidade cresce com o aumento do padrão de vida. Recebem água limpa e a devolvem suja. A indústria que era a pior poluidora melhorou em diversos países. Mas a agricultura não melhorou. Grande parte do esgoto das cidades vai para os cursos de água ou lagos.
Um metro cúbico de água contaminada deteriora mais de 10 metros cúbicos de água pura. Nosso hábito de nos desfazer de refugos desperdiça o equivalente a duas vezes a vazão anual do rio Amazonas.
Pessoas de diversos continentes estão condenadas à água suja para suas necessidades diárias de limpar, cozinhar e beber. As doenças disseminadas pelas águas provocam entre 5 e 10 milhões de mortes no mundo por ano, segundo relatório das Nações Unidas.
O maior volume de água consumido vai para a agricultura. Foi por causa da irrigação que o mar de Aral, na Ásia Central, morreu. Do Distrito Federal dezenas de córregos e centenas de nascentes secaram pela descontrolada ocupação de áreas de preservação de mananciais e pela agricultura extensiva.
Na Ásia Ocidental, nações brigam pelas águas dos rios Yamak, Eufrates e Tigre. México e Estados Unidos discutem sobre os rios Colorado e Grande. O Egito, a Etiópia e o Sudão querem mais água do Nilo.
Fabricantes de refrigerantes e aviários em escala industrial roubam fontes de água de fazendeiros e agricultores. É comum dar uma resposta fácil ao sistema de distribuição da água: deixar o mercado resolver. As multinacionais se ofereceram de bom grado a retirar dos governos a aborrecida tarefa de administrar a riqueza hídrica de seus países. Se o acesso à água é um direito proclamado pela ONU, em 1977, ele não será, necessariamente, atendido pelas leis do mercado.
O futuro terá mais a ver com a captação de água em pequena escala, irrigação por gotejamento, técnicas inteligentes de preservação de nascentes e uso moderado. Ninguém deseja apenas consumir água. O que se quer é produzir alimentos, fabricar bens dos quais as pessoas precisam para viver confortavelmente.
Peter Glick, engenheiro norte-americano, pioneiro de tecnologias leves, diz:
“O caminho leve para as águas se esforça em melhorar a produtividade do uso da água em vez de buscar permanentemente fontes para novos suprimentos.”
O abastecimento de água está piorando, não melhorando. E continuará a piorar até que alguma atitude efetiva de amplitude mundial seja tomada.
Por volta de 2050, estima-se que 4 bilhões de pessoas estarão vivendo em países com carência crônica de água. A falta de água é a principal barreira ao desenvolvimento, motivo importante para que os pobres do mundo continuem pobres.
Mais de dois terços do consumo de água são utilizados em lavouras e para animais e a maior parte é usada para irrigação em regiões áridas ou semi-áridas. A indústria é o segundo maior usuário. Em poucos países a indústria usa mais água do que a agricultura, como Estados Unidos, Alemanha e Holanda, grandes responsáveis pela poluição ambiental.
A maior parte de nossas águas vem de aqüíferos, imensas reservas subterrâneas. Mas os aqüíferos se renovam com grande lentidão, através das águas da chuva. Extraímos deles quantidades muito maiores do que o volume da renovação natural. O nível dos lençóis freáticos vai baixando e os poços vêm secando. Preservar os aqüíferos é um ato de bom senso. No afã de dominar a natureza o homem interrompe o curso natural da água que é o de abastecer, rios, lagos e zonas úmidas do planeta. Embora a água subterrânea seja um recurso-chave em muitos países, está sendo usada mais depressa do que consegue se recompor.
O segredo de nossa sobrevivência é que parte da água que evapora dos oceanos cai na terra, alimenta rios, molha o solo e refaz os aqüíferos.


VAI FALTAR ÁGUA
O planeta dispõe sempre de 1,386 bilhão de km3 de água, aproximadamente. 97,5% dessa água é salgada.
Dos 2,5% de água doce, mais de dois terços estão indisponíveis ao ser humano. Estão nas geleiras, neves, gelos, e subsolos congelados. As águas de superfície – rios, lagos, zonas úmidas, no solo, na umidade do ar, em plantas e animais − constituem um volume minúsculo. O restante está armazenado em aqüíferos, águas profundas.
MAIS GENTE, MENOS ÁGUA
Mais de um terço da população mundial não dispõe de água, e a situação está se agravando.
DEMANDA CRESCENTE
Todos os anos, mais água doce é consumida na agricultura, na indústria, nas casas.
ROUBO AO BANCO
Mais de um quarto dos habitantes da Terra depende das águas subterrâneas para obter água potável, mas a reposição das reservas está sendo menos rápida do que seu consumo.
ÁGUA EM CASA
Apenas 10% de toda água consumida é para uso doméstico; mas essa quantidade varia muito entre os países.
ÁGUA PARA ALIMENTOS
Quase 70% de toda água doce consumida vai para a agricultura. Mesmo assim, milhões de pessoas continuam desnutridas.
IRRIGAÇÃO
As terras irrigadas costumam ser mais produtivas do que as não irrigadas, mas a irrigação malfeita pode resultar em solo encharcado ou estéril.
POLUIÇÃO AGRÍCOLA
A agricultura em escala industrial e o uso de produtos químicos para aumentar a produção estão aumentando os problemas para os suprimentos mundiais de água.
ÁGUA PARA A INDÚSTRIA
Os países com industrialização recente precisarão de uma quantidade maior de água nos próximos 25 anos – e, sem o controle adequado, poluirão ainda mais suas fontes hídricas.

POLUIÇÃO INDUSTRIAL
Como os poluentes industriais pioram a qualidade da água no mundo todo, seus efeitos de longo prazo no meio ambiente e nos aqüíferos estão ficando cada vez mais evidentes.
ÁGUA PARA ENERGIA
A energia hidrelétrica, a mais importante fonte mundial de energia renovável, produz aproximadamente um quinto de eletricidade do planeta.
AS REPRESAS
No mundo todo, cerca de 45 mil grandes represas, ou barragens e açudes, afetam seis de cada dez rios importantes, o que já obrigou quase 80 milhões de pessoas a se mudarem.
ÁGUA E SAÚDE – ACESSO À ÁGUA
Mais de um bilhão de pessoas ainda não têm acesso fácil a uma fonte confiável de água.
SANEAMENTO
Um bom saneamento, fundamental na luta contra doenças, é o ponto de partida para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
ÁGUA SUJA MATA
Água suja é responsável por 1,7 milhão de mortes a cada ano. 90% são crianças, isto é, 4.200 por dia.
A água continua sendo um meio em que se desenvolvem as doenças mais mortíferas do mundo: malária, dengue hemorrágica, filaria linfática (elefantíase), esquistossomose, vírus do Nilo.
CONTAMINAÇÃO TRAIÇOEIRA
Quantidades microscópicas de produtos químicos (arsênico) na água potável podem se depositar no organismo e produzir efeitos devastadores na saúde.

REPENSAR A NATUREZA
DESVIO DE RIOS
Apenas alguns rios mais importantes do mundo correm livremente. A maioria foi aproveitada para fornecer energia e irrigação. Há os que estão sendo desviados de seu curso natural, ao longo de centenas de quilômetros, com sérios prejuízos para os seres humanos e o meio ambiente.
DRENAGEM
As zonas úmidas ajudam a manter saudáveis os recursos de água doce. No entanto, muitas vezes são consideradas como terras improdutivas que podem ser drenadas e aterradas para o assentamento de mais gente.
EXPLORAÇÃO DE AQÜÍFEROS
Os aqüíferos do mundo todo estão sendo explorados por sua preciosa riqueza. Apesar de imensos não são inesgotáveis, e há muitos anos o nível de suas águas vem baixando rapidamente.

EXPANSÃO DAS CIDADES
O rápido crescimento das cidades vem forçando cada vez mais a exploração dos recursos hídricos, já em seu limite máximo de consumo.
MEDIDAS DESESPERADAS
Às vezes, a transformação de água salgada em água doce ou o transporte de água doce até onde ela é necessária constituem as únicas opções para quem vive em locais com escassez desse recurso.
INUNDAÇÕES
A cada ano, as inundações acabam com milhares de vidas e prejudicam o dia-a-dia de outros milhões. Elas estão se tornando mais freqüentes.
SECAS
A vida e o sustento de 1 bilhão de pessoas – um sexto da população mundial − estão ameaçados pelas secas e pela desertificação. E as mudanças climáticas vêm piorando a situação.
CONFLITOS E NECESSIDADE DE COOPERAÇÃO.
O uso conjunto de reservas hídricas exige interação entre os paises interessados. Em alguns casos, a água consolida amizades, em outros, aumenta as divergências.
PONTOS DE PRESSÃO
A escassez de recursos hídricos está aumentando as tensões políticas entre paises e dentro deles, e entre as comunidades e os interesses comerciais. Israel e Palestina: 350 litros por pessoa/dia contra 71, respectivamente.
ARMA DE GUERRA
A destruição deliberada de represas e aquedutos, além da contaminação de água potável, são métodos utilizados tanto por governos como por terroristas contra os militares e a população civil. (Oregon, Arizona, nos EEUU; Colômbia, Angola, Nepal, Afeganistão....)

FUTURO
O COMÉRCIO DAS ÁGUAS
A água é um recurso natural básico, mas consegui-la para quem precisa dela é um problema para os governos. Contudo, para os empreendimentos comerciais, trata-se de uma oportunidade de negócio lucrativo.
PRESERVAÇÃO DO ESTOQUE
A água doce é um recurso cada vez mais escasso e valioso. Deveria ser usado da maneira mais eficiente possível. As pequenas águas vão acabando, Restam as grandes represas. As águas estão longe e cada vez mais caras.


PRIORIDADES
Os recursos hídricos têm de ser administrados de modo integrado, atendendo às necessidades sociais, econômicas e de saúde das pessoas, além de suprir o meio ambiente.
VISÃO DO FUTURO
O futuro das águas do mundo está na berlinda. Os possíveis cenários variam e dependem de políticas e ações locais, nacionais e internacionais. O melhor cenário é o que privilegia a produção de alimentos com uso racional da água, reduzindo o uso industrial e doméstico. Essa economia produz maior evaporação e melhora a renovação dos aqüíferos, com reflexos positivos sobre a natureza.

NO BRASIL
O Brasil possui entre 12% e 16% da água do planeta Terra, mas sua distribuição não é homogênea e está ameaçada por fatores socioeconômicos diversos. Mais da metade dos esgotos e águas contaminadas corre diretamente para os rios e lagos.
Área total: 8.574.761 km2
População: 190.000.000 hab
Vazão média: 182.633 m3/s
Note-se que a vazão é constante, enquanto a população cresce e as necessidades de água aumentam.


Eugênio Giovenardi
02/12/2008
Fonte: Atlas da Água, PUBLIFOLHA

sábado, 29 de novembro de 2008

SÓ RINDO

Chega de choro. Houve tempo em que se dizia “quem não chora, não mama”. Pensava-se que a choradeira era um dos bons caminhos para se conseguir a atenção do governo para as dificuldades dos que estavam mais longe do poder.
− Com o tempo, me disse Pedro de Montemor, cansei de chorar. Pus-me a rir. Rir de tudo, especialmente das piadas diárias que ouço pelo rádio e pela TV. Piadas sérias, ditas por celebridades financeiras, senadores, deputados e pela mais alta autoridade do país.
Montemor tem razão. É saudável rir e gargalhar. Quando ouço o ministro da fazenda, vestido a caráter, de olhar turvo, vaticinando o futuro de nossa economia robusta, tenho crises de riso.
Quando os comentaristas econômicos da Globo News afirmam que a bolha imobiliária já vinha de 2007 e estava na cara que ia explodir, só não sabiam onde e quando, morro de rir.
Quando leio que os deputados distritais do DF cortaram gastos de cafezinho para melhorar a segurança dos brasilienses, estalo numa sonora gargalhada. E, quando votaram um aumento da verba de gabinete, manchei a folha do jornal com uma cusparada que saiu com risada mefistofélica.
Quando ouvi o senhor Lula recomendar à população mais pobre que se endivide para comprar geladeiras, televisores e computadores para socorrer as indústrias, tive um acesso de riso incontido e quase perdi o fôlego. E ao anunciar mais alguns bilhões de reais na conta das montadoras e agências de automóveis para facilitar o financiamento do sonho do brasileiro não controlei os esfíncteres.
Quando li a notícia da concessão de milhares de hectares na Amazônia a interessados comprometidos com o meio ambiente para deter o desmatamento e reduzi-lo a zero, fui vítima de um ataque de incontinência urinária provocada pela explosão da gargalhada.
Onde, antes, encontrava motivos para me indignar, chorar e denunciar, agora me assalta incontrolável obrigação de rir.
Poderá alguém não chorar de tanto rir quando os governadores de Brasília afirmam que vão tornar inteligente o sistema de transporte, abrindo retornos, levantando viadutos, duplicando e triplicando avenidas?
Poderá alguém deixar de rir quando propõem levantar muretas ao longo os eixos para impedir que os pedestres não sejam massacrados pela fúria insana dos condutores?
Poderá um brasiliense conter a ironia do riso quando os administradores de Brasília prometem – de novo - humanizar as passagens subterrâneas que ligam as quadras 200 com as 100?
Telefonei a Pedro de Montemor para lhe contar que a área do Setor Noroeste será reservada para moradias da nova classe média e que a juíza Gildete Balieiro acusou os indígenas Fulniô, Kariri Xocó, Tapuaya e Tuxá de serem invasores de terras públicas.
Respondeu-me com uma retumbante gargalhada cujas ondas sonoras se prolongaram por alguns minutos.
− É para rir, meu caro amigo. A vocação de palhaço é para provocar um saudável riso.
Lembrei-me de uma saudação corrente na velha Roma, quando os adivinhos se encontravam após abrir as entranhas das aves para ler o futuro dos crédulos imbecis: Risum teneatis amici? − Vocês conseguem segurar o riso, amigos?
Eugênio Giovenardi
28/11/2008

terça-feira, 25 de novembro de 2008

CONSUMIR É VIVER

Telefonei a Pedro de Montemor. Ele publicou uma crônica sobre a obrigação civil de consumir. A desobediência será penalizada com um imposto do não-consumo.
A economia de qualquer país está condicionada, segundo as regras do capitalismo, ao intenso consumo de bens para estimular a produção agrícola e industrial.
Está implícito que o consumidor tem que arcar com o preço final da chamada cadeia produtiva para que se complete o circuito e o bem possa retornar ao mercado da esquina. É uma verdadeira cadeia com grades de proteção inabaláveis.
Há bens e bens. Os de sobrevivência são, de longe, os mais acessíveis e, muitos deles, podem ser colhidos gratuitamente em árvores, caçados nas florestas ou pescados nas águas. Parte dos bens de subsistência vem da agricultura tradicional e, a mais dispendiosa, da agricultura comercial.
Os bens de conforto ou supérfluos não absoluta, mas relativamente úteis ou até necessários, que facilitam a existência das pessoas, são os que, hoje, dominam a economia. Têm tal importância que os governos lhe dão prioridade sobre a educação e a saúde. A produção de automóveis é uma dessas que exigem todo o cuidado. Montadoras e bancos não podem falir. É um dos dogmas do moderno capitalismo.
Comentei com Montemor as declarações de Barack Obama e do senhor Lula. Ambos os presidentes não só estão preocupados com o futuro e o presente da indústria de automóveis, como se tornaram marqueteiros do setor. O senhor Lula incentivou o consumo desse bem com palavras paternais e uma expressão de advertência no rosto vermelho:
− Comprem, comprem, continuem comprando, se vocês pararem de comprar a indústria não produz e aí, sabe, vem o desemprego e, sem salário, ninguém mais compra.
− Lula tem pena dos industriais, disse Montemor, e apela para a solidariedade dos consumidores. Mas a maioria destes vai atrás de preços mais baixos da geladeira e do carro, numa atitude discriminatória.
− Eu fico triste com isso, respondi, Penso na alta tecnologia empregada na Ferrari, na Mac Laren e outras. O governo deveria estimular a compra dessas marcas com créditos especiais, favorecendo a nova classe média recém-tirada da letra D pelo IBGE.
− Seriam milhares de Ferrari e BMW pilotadas pelas amplas avenidas de Brasília por garis, diaristas, caixas de supermercados. Isso levaria os governantes a asfaltar as ruas de Santa Maria, Itapoã e Paranoá para receber esses novos hóspedes da cidade.
Os metalúrgicos dessas empresas, os pilotos da F1 e toda a escuderia que os pajeiam na hora da troca de pneus teriam garantidos seus empregos para alegria dos investidores.
Com uma indústria florescente de automóveis de primeira linha tecnológica, belos e velozes, faltaria ao senhor Lula, num rompante de improvisação, ordenar ao ministro da fazenda e ao da saúde que acabem com as filas dos hospitais. Os pacientes voltariam o quanto antes às agências de automóveis, aos supermercados e lojas de grife e, com créditos fartos disponíveis nos bancos, exerceriam sua liberdade e direito de consumir. Consumir e viver.
25/11/2008

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

EXPANSÃO, EXPLOSÃO E RETRAÇÃO

Dá-se pouca importância ou, pelo menos, não com a intensidade devida, ao jogo louco da expansão da economia sem ater-se ao transbordamento da população. Toda a atividade humana, do nascer ao morrer, só pode ter significado em razão da vida inteligente sobre o planeta. Alimentar a vida, protegê-la das intempéries, dar-lhe conforto e garantir sua sobrevivência são pedras angulares da civilização.
Evoluímos em proteger as pessoas contra a imprevisibilidade relativa do comportamento das leis físicas que regem os fenômenos inevitáveis da natureza. Avançamos pouco e lentamente no campo da convivência entre as pessoas e criamos conflitos humanos de intensidade maior do que um terremoto.
O afã de criar e usufruir dos itens de conforto cresce a níveis de loucura, insensatez e crueldade. A corrida é desproporcional à resistência do corpo e à capacidade do cérebro em vencer distâncias, a ponto de o corredor desmaiar antes de chegar ao alvo final. O ritmo atual de expansão da ambição intelectual e volitiva encontrará, num momento imprevisível, um ponto de explosão, de contração e retração.
Brasília, o Distrito Federal e arredores correm perigosamente por essa avenida de expansão determinada pelo aumento crescente da população que se adensa sobre uma área de 5.782 km2. As duas conseqüências mais visíveis da pressão populacional se refletem na ocupação densa dos espaços por meio de assentamentos urbanos e na mobilidade de grandes massas humanas por um sistema inadequado de transporte individual que entope diariamente as avenidas e estacionamentos.
Essa dupla expansão − produção de bens econômicos e população − tende a uma explosão inevitável por meio de uma contração súbita e uma retração que pode se prolongar por mais tempo do que o desejável.
Considere-se a densidade, hoje, de 400 habitantes por km2 ou 2,500 m2 por pessoa. Esse exíguo terreitório é dividido e compartilhado por uma dezena de personagens. Entre os principais estão as vias públicas, a casa ou o edifício residencial, as vertentes de água, as matas nativas, os dutos de esgoto, as redes elétricas e de comunicação, os centros de serviços básicos e burocráticos, as áreas de esporte e lazer, os meios de transporte e mobilização do cidadão.
Todas as atividades de sobrevivência se fazem sobre essa área limitada. Todas essas atividades tendem a expandir-se, violentando-se umas às outras, pressionadas pela população que também se expande.
Hoje, 2,5 milhões de pessoas, no Distrito Federal, correm atrás dos meios de sobrevivência, do pão à casa para morar, da escola ao trabalho.
Um dos sinais de uma inevitável explosão é o número alarmente de 217 mil desempregados no Distrito Federal, acossados pela humilhação, pela segregação, pela frustração e, presumo, pela dignidade. Há crianças, em casa ou na rua, esperando pelo pão.
Não é de estranhar que os governos tentem tapar alguns pontos de vazamento desse gás explosivo com mais postos policiais e tropas de elite nas ruas e aumento crescente de distribuição de alimentos, através de múltiplos artifícios para adormecer a multidão cansada.
A inteligência social, não usada a tempo para ordenar o ritmo da expansão da população, exaure-se em adiar o momento da explosão.
É unânime o sentimento do cidadão brasiliense e dos governantes de que os milhares de carros que circulam irracionalmente por todas as avenidas, eixões e eixinhos de Brasília, tornaram a vida do cidadão um inferno.
Em que pese o rol de grandes e custosos projetos orientados a minimizar os efeitos da expansão desenfreada em processo, no Distrito Federal, temo que eles sejam ineficazes para controlar o avanço dos fatores instalados para a explosão anunciada e a conseqüente retração da onda expansiva.
Os fatores alternativos que poderiam reorientar o rumo dessa tresloucada expansão, mas sistematicamente reduzidos ao discurso, são educação, trabalho, saúde e saneamento. Concretamente, menos viadutos e mais escolas e bibliotecas, melhores professores e bem pagos, menos cadeias e mais hospitais, postos de saúde regionais, com médicos sanitaristas. Menos automóveis e cidades mais livres e limpas para o confortável caminhar do cidadão.
17/11/2008

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

BRASÍLIA QUEM A DEFENDE?

Quem poderia defender Brasília e o DF das sucessivas agressões a seu estilo urbanístico e à natureza frágil sobre a qual descansa?
Serão os legisladores eleitos que, há anos, a mutilam por dentro e a decepam por fora? Com eles, Brasília conheceu as invasões de áreas públicas e os condomínios irregulares, o sacrifício das áreas de proteção ambiental, os puxadinhos, o sétimo andar de alguns blocos residenciais.
Serão os arquitetos? Nem todos. Uma parte deles alega que não se pode engessar a cidade. Não há em Brasília costelas, nem pernas ou braços quebrados para engessar. Eles propõem dar-lhe novas pernas e novos braços e transformar Brasília em centopéia.
Serão os engenheiros? Eles estudaram para projetar e dar vida a um edifício onde o proprietário demarcar. Seja quem for o dono do terreno: José ou Joaquim, Prefeito, Governador ou Presidente. Eles traçam avenidas, ruas, pontes, viadutos, centros comerciais, edifícios de dois ou vinte e dois andares, escolas e hospitais.
Serão os donos de imobiliárias? Eles parecem sofrer de compulsão construtivista incurável e não descansam enquanto uma área verde não se transforme num centro comercial, cheio de vida e de carros.
Serão os ambientalistas? Quem cumpre as leis que defendem a natureza? Não são ecochatos, ecopoetas os que clamam pela morte das veredas, das plantas e animais do cerrado, das nascentes e córregos que circundam Brasília? Não são eles que se antecipam e previnem a iminência de desastres que a mão humana está provocando contra si mesma?
Será a população da Samambaia, da Ceilândia, da Asa Sul ou Norte, do Sudoeste ou do futuro Noroeste? Eles defendem seu próprio ninho à custa de Brasília.
Serão escolas ou igrejas? Da escola se espera o respeito pela história, se for bem contada. Das igrejas se esperam milagres, mas em política são raros ou não acontecem.
Serão as crianças? E qual Brasília defenderão? A do sonho dos fundadores que encantou o mundo? A bucólica aldeia dos anos 60? A pacata cidade dos anos 70, com pouca gente e poucos carros, sem semáforos e sem engarrafamentos? A dos anos 90 que se encheu de prédios, torres, invasões, condomínios, viadutos e pontes? Ou a cidade ameaçada do ano 2008, com mais de um milhão de automóveis e engarrafamentos diários?
É preciso dizer às crianças que nasceram em Brasília e às que vêm de fora que é importante preservar o silêncio da cidade, proteger todas as árvores, todas as nascentes e córregos que formam o Lago do Paranoá.
Se alguém quiser defender a cidade comece por frear o ímpeto imobiliário. Restringir o acesso de automóveis às áreas centrais de Brasília. Mudar o paradigma que orienta os investimentos. Dar celeridade ao transporte coletivo em todas as suas opções. Reduzir o ritmo do movimento sem perder a eficiência. Transferir os serviços para perto das pessoas. Pôr inteligência na administração pública. Ensinar os funcionários públicos a pensar. Alfabetizar a população de Brasília para melhor entender o que é uma cidade-parque.
Mas ao ver tanta indiferença civil, tanta ambição de poder, tanto conformismo profissional, tanta competição cega, tanta resistência ao bom senso, ouço Brasília repetir baixinho:
− Resistir é preciso, esmorecer não é preciso.

11/11/2008

terça-feira, 11 de novembro de 2008

TRINTA ANOS DEPOIS I

Trinta anos atrás, nossa filha e a amiga, ambas com oito anos, cedo saíam de entre os blocos da SQS 406 e caminhavam tagarelando pelas aléias até a Escola Classe da 206 Sul. As respectivas mães ocupavam-se de suas tarefas sem preocupação pelo destino das filhas. A atmosfera social das quadras era de confiante segurança.
Trinta anos depois, para vencer algumas centenas de metros que separam a casa à escola, babás, mães e vans acompanham e arrastam pesadas mochilas. O medo tomou conta de pais e crianças.
Trinta anos atrás não havia um milhão de carros invadindo os espaços do cidadão a pé, único e exclusivo senhor da cidade e da rua. Não se havia ainda proposto o paradoxo de constranger o cidadão a exercer seu direito de atravessar uma rua de sua cidade numa faixa sinalizada com risco de sanção se desobedecer. As escassas faixas para travessia de pedestres lhe dão segundos para escapar do atropelamento, quando não a sensação de culpa por atrapalharem a velocidade e a pressa do condutor do carro.
Trinta anos atrás, os condutores paravam ao ver os colegiais esperando para atravessar a rua. Onde não houvesse guardas de trânsito entre 7h30 e 8h, para ordenar a travessia e proteger as crianças de condutores apressados ou distraídos, um adulto que por ali passasse levantava a mão e parava o fluxo com sua autoridade de cidadão.
Trinta anos depois, o superpovoamento da cidade, os milhares de carros que se atropelam pelos retornos, tesourinhas e passagens de pedestres, o medo tomou conta do cidadão. Medo de andar na rua, de estacionar à noite, de sair de casa, de ir ao cinema, de freqüentar uma festa e não voltar. Medo de usar as infectas passagens subterrâneas, um dos poucos territórios exclusivos do pedestre. Medo de um seqüestro relâmpago, fruto de uma ordem que plantou a desigualdade e colhe mortes.
Trinta anos atrás, nossa empregada era analfabeta. Trinta anos depois o país continua analfabeto, como afirma Lia Luft. Nossa diarista de hoje, sua irmã e a mulher do caseiro de nosso Sítio, todas entre 30 e 40 anos, são analfabetas. Trinta anos atrás, houve Mobral.
Em trinta anos, fazem-se grandes mudanças. O computador e o celular mudaram a vida de muitos milhões de pessoas. Trinta anos não mudaram aspectos básicos da vida do cidadão que nasce entre milhões de artefatos eletrônicos. Nossos netos manejam engenhos complicados e nos olham com compassiva superioridade, mandando MSN a seus coleguinhas de escola primária, mas não podem andar cem metros sozinhos entre a casa e a padaria ou ao ponto de ônibus.
A cidade está sendo subtraída ao cidadão e, com isto, perde o charme e a elegância humana. Entra-se no carro para ir às concentrações de lazer em bares protegidos por serviços de segurança, disfarçados de apoio ao cliente. Foge-se para os guetos. Ruas tomadas de automóveis e desertas de pessoas. Deixam-se solitárias as árvores e delas usufrui-se apenas a sombra para o descanso de nosso senhor o carro.
Trinta anos depois, felizmente, Brasília não se iguala ainda ao que é o Rio de Janeiro ou São Paulo. Mas o caminho se estreita perigosamente.

11/11/2008

TRINTA ANOS DEPOIS II

A obsessão pelo crescimento econômico, o estímulo indecente à compulsão do consumismo, o valor de papéis na ciranda das bolsas mundiais, a estabilidade da moeda pregam a nova moral do ser subordinado ao ter.
Quem possui se defende com o poder de comprar, consumir, proteger seus bens mais que sua pessoa. Quem não tem, quem está segregado por essa moral do ter, avança sobre a pessoa, única responsável pela desigualdade. Despojar o outro para que sinta os efeitos de não ter ou de perder o que tem.
Convicta ou involuntariamente, fazemos coro a essa nova moral e a consolidamos pela via do consumismo. O ruído matinal do trânsito em todas as vias da cidade e os primeiros noticiários do dia nos lembram, com entusiasmo, os princípios da moral que orientam a necessidade incontrolável de comprar alguma coisa supérflua. Somos convidados a aumentar o consumo em 10%.
Entramos todos nessa nova onda. Os que têm muito e os que quase nada têm se encontram no mesmo centro comercial em busca da igualdade econômica de consumir. Separam-nos as oportunidades não comerciais. Os mais pobres são arrastados a sacrificar a comida, a saúde, a leitura para levar um celular, um computador, uma geladeira, um carro usado para o fim de semana. A igualdade vai se fazendo com o ter e com as estatísticas do IBGE.
Enquanto Luiza, 10 anos, pode ler um livro por semana ou mais, Dalila lerá com dificuldade o manual de geografia ao longo do ano e mal sabe localizar no mapa nossa vizinha Bolívia.
E assim vão se formando opiniões políticas que elegerão governantes e legisladores. Todos presos ao anzol da moral do consumo compulsivo e do crescimento. Decisões podem ser tomadas nesse rumo, não para proteger pessoas, mas para assegurar os bens, os ativos, qualquer que seja o valor dos passivos do ser.
Quando a menina de 9 anos apareceu esquartejada em mala de viagem, na bela cidade de Curitiba, os bens materiais da família atingida se reduziram a pó. O assassino descontrolado feriu o cerne que a nova moral descuidou: a pessoa, essa desconhecida.
As chacinas nos morros do Rio de Janeiro, no regaço das famílias, nas portas dos bancos, nas escolas, roubam muito mais do que os bilhões que as bolsas engoliram.
. E, para exagerar, parece que proprietários e condutores de carros querem utilizá-los como arma de controle da expansão da população. O mais surpreendente é o estímulo dado às montadoras pelo discurso oficial e pela entrega de dinheiro público às agências de automóveis. É a cobra comendo o próprio rabo ou, como se dizia outrora, são as contradições do sistema. As facilidades e o conforto nos destruirão. Prosperidade e estupidez.

11/11/2008

terça-feira, 4 de novembro de 2008

BRASÍLIA, CIDADE DO AUTOMÓVEL

Mais de um milhão de carros nacionais e importados circulam com placa de Brasília por suas amplas avenidas. Entopem o centro da cidade, formam filas densas no acesso das superquadras, nos retornos e nas tesourinhas. Não acham lugar para estacionar nos ministérios, nas universidades, nas quadras comerciais, ao redor dos blocos residenciais.
Levantam-se viadutos, ampliam-se ruas, abrem-se retornos nas avenidas, instalam-se pardais e retenções de velocidade para facilitar o trânsito e evitar mortes.
O pedestre em Brasília é raro, constitui um estorvo, é um cidadão atrasado e teimoso. Ele só é pedestre ao atravessar a rua para ir ao banco ou voltar do mercado ao automóvel. Quem dispensa o carro, em nossa era, é anormal ou covarde. Não sabe lutar nem competir. De uma quadra a outra, o brasiliense usa o carro. Ocupa, quase sempre sozinho, seis metros quadrados de espaço. Estaciona onde quer, onde pode ou não pode.
Reclama mais estacionamentos, nem que para isso seja preciso cortar árvores e asfaltar o chão ou furar o subsolo para encavernar-se.
Brasília é uma metrópole e sem milhões de carros e fartos engarrafamentos não se sustenta. O carro mata mais que as guerras vigentes. Está declarada a guerra do trânsito. Para separar os exércitos de automóveis em combate diário, propõe-se a construção de muretas ao longo dos eixos rodoviários. A intenção é boa. Melhor espatifar-se contra as muretas do que atropelar pedestres raros e teimosos.
Ao ver tantos automóveis, ao admirar o entupimento das vias, ao apreciar o desfile de máquinas potentes, caras e velozes, muitas delas trazidas do Oriente fascinante, cabe ainda uma iniciativa de repercussão nacional e mundial.
A Câmara Legislativa do DF, criada para desfigurar a cidade, deveria em caráter de urgência, com a presença de representantes de montadoras nacionais e estrangeiras, sindicatos de distribuidores de combustíveis, liderados pela Petrobrás e organizadores da F-1, decretar, em termos inquestionáveis, BRASÍLIA, CIDADE DO AUTOMÓVEL.

ÁGUA POUCA, GENTE MUITA

Você quer entender os motivos da escassez de água?
Ontem, dia de Todos os Santos, informaram que o córrego Bandeirinha, que abastecia Formosa, secou. O Bandeirinha desapareceu depois que dezenas de irmãos dele também morreram atropelados pela insensatez dos habitantes do Distrito Federal e arredores. E outros mais vão sumir. E a gente poderia ter evitado esses desastres tratando a natureza com mais inteligência.
O motivo principal é que há muita gente e gente descuidada. Do Presidente da República ao contínuo do cafezinho, do Governador do DF ao morador da Samambaia, do prefeito de Formosa ao produtor de tomate, todos acham que a água não se acaba.
Gente se faz todas as noites. A água cai a cada seis meses. Nascem 200 bebês por dia, no DF. Cada bebê a mais significa um acréscimo de 200 litros de água na família. Vá somando e multiplicando a necessidade de litros de água por dia e você entenderá porque a água é escassa. No DF, somos 2 milhões e meio de consumidores diários de água. E cada dia chega mais gente. São 500 milhões de litros por dia que descem pelo ralo, sem contar o consumo agrícola, industrial e comercial. O DF não produz essa quantidade. Estamos importando água cara.
Não é de estranhar que os rios estejam secando. Cortaram as árvores à beira dos córregos, invadiram até o Jardim Botânico, construíram condomínios e cidades em cima de nascentes de água, arrasaram o Cerrado para plantar soja e algodão, furaram milhares de poços artesianos, asfaltaram ruas e praças para adorar nosso senhor o automóvel.
A água vai se acabando, acabando e a gente cortando árvores e secando nascentes.
- É gente descuidada muita e água pouca, disse o velho Ariosto, nascido e criado em Formosa.

sábado, 1 de novembro de 2008

PERDI BILHÕES

O investidor russo Vladimir Lisin
perdeu US$ 22 bilhões nas Bolsas.



Perdi bilhões de dólares ou de euros, tanto faz,
Me informou o banco que também perdeu
O que era meu.
Contar bilhões, contei.
Gastei semanas e anos a contar.
Quando cheguei aos 20 bilhões
A bolsa de valores me notificou
Que eu ganhara mais 60 bi.
Parei de contar o que não via.
Era bastante saber o que existia.

Eu usava e gastava e dava
E torrava e comprava
E o bilhão não acabava.
Eram tantos bilhões que alguns perdidos
Não me fariam falta.

Ainda ontem, no pregão da bolsa,
Eu vi, estavam lá.
O personal manager do Banco da Islândia
No relatório codificado, de circulação restrita,
Anunciava-me um depósito secreto de dezenas de bilhões.
Repousariam, em sigilo bancário,
Por dois dias, seu peso bilionário.
Os bilhões não acordaram.
Sumiram na escuridão da noite.
Ladrões invisíveis levaram a caixa-forte
E o banco também.



Perdi bilhões.
Mas nunca deles precisei
Para comprar o avião, a Ferrari, o iate,
A mansão, o colar de ouro,
Os diamantes e as esmeraldas,
Gozar noites de gala,
De prazer e de farra.

Voaram meus bilhões.
Para onde?
Eu sabia que bilhões são voláteis
na selva do mercado.
Voam de bolsa em bolsa.
Em Londres? Em Nova Iorque? Em Paris?
Quem mexeu em meus bilhões
Que estavam naquela bolsa?
E a bolsa, onde está?

Sei de amigos que,
na bolsa e na especulação,
também perderam seu bilhão.
Outros, mais afortunados,
Perderam só milhões
Ou apenas milhares.
Meus bilhões, quem os achou?

Os bancos centrais abrem as bolsas
De seus otários e oferecem bilhões
Aos que perderam bilhões.
Esses bilhões eram meus.
São os meus bilhões perdidos.

Sou proprietário de bilhões perdidos.
Onde estão? Onde os deixei?
O que não fiz com meus bilhões?
Se ainda os tivesse
Não saberia o que fizesse.
Melhor assim. Estão perdidos.
Que faria com os bilhões que perdi?
Poderia ter feito? Poderia.


Esses bilhões perdidos me dão prazer,
Me dão poder, me fazem respeitado.
Sou o homem dos bilhões perdidos.
Que alegria e que ledice!
Vladimir perdeu bilhões, dizem, quanto não tinha!
Sou Creso. Apolo me revelou:
− ou foi a pitonisa no cabaré de Calcutá? −
“Um reino será destruído.”
Mas não disse qual.
Passarei à história e a Rússia lembrara
O homem dos bilhões perdidos.

Onde os ganhei?
No mesmo lugar onde os perdi
O camponês russo matou a galinha dos ovos de ouro
Para não morrer de fome.
Bilhões, é melhor não tê-los para não perdê-los?
Ou tê-los para perdê-los?

Perdeu-se o primeiro bilhão,
Depois mais um, enfim dezenas.
Os tostões à caixinha sempre voltam,
Mas os bilhões aos bornais
Não voltam mais.

(E parodiando Bocage)
Meus bilhões evaporei na bolsa insana,
na ambição de ganhar que me empurrava.
E alegre eu ria e louco eu sonhava
Buscar no mercado a essência humana.


29/10/2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

OITO OU OITENTA

Dizem os institutos que medem o grau de satisfação do povo que, de cada cem brasileiros entrevistados, oitenta estão de acordo com tudo o que o presidente Lula faz ou não faz. Apenas oito entre cem, isto é, 15 milhões, não estão com o Presidente. Os números ganham proporções nacionais. É o povo brasileiro quem fala. Os demais 12%, ou seja, 22 milhões, quatro Finlândias, não contam para os institutos de pesquisa.
Se realmente essa satisfação foi medida, eu acredito nela. Por que? Porque compreendi as regras do jogo econômico e os princípios da retórica social da esquerda que assumiu o poder desde 1994. Nenhum governo administrou melhor o lucro dos bancos do que Lula. Como diminuir a desigualdade se a remuneração de um senador é 72 vezes maior que a de um trabalhador de salário mínimo? Ao eleger um senador, o eleitor está consolidando a desigualdade.
A esquerda se convenceu, depois que chegou ao poder, que não pode haver economia sem o espetáculo do crescimento, sem uma classe rica e sem uma classe média consumidora de supérfluos, da qual se origina. Uma ampla camada de trabalhadores subempregados e desempregados justifica a retórica do combate à desigualdade e à injustiça social. Pequenas fatias do bolo fazem a alegria dos miseráveis.
A distancia entre ricos e pobres, entre a classe afluente, a média e o povo está sendo medida pela geladeira, a máquina de lavar, o fogão a gás. A geladeira está diminuindo a distância entre os ricos e os chamados carentes. A geladeira é, fora de dúvida, um equipamento útil para qualquer casa. Estamos conseguindo, graças ao endividamento geral, que os pobres comprem uma geladeira a crédito pelo preço de duas. A geladeira levou milhares de famílias pobres para a classe média.
Quem são esses oito por cento que não concordam com Lula? Segundo afirmações de sociólogos do governo, que justificam a atual orientação pragmática da economia financeira e da bolsa de valores, neste momento em crise, esses 15 milhões de opositores são os que acreditam que o mercado define quem ganha e quem perde, que acham natural a desigualdade e precisam de mão de obra barata para produzir lucros. Mas esses não estão com Lula? Suspeito que haja esquerdistas nesses 8%.
Pertenço ao grupo dos oito, sem ter simpatia alguma pelo deus-mercado. A bolsa de valores me dá nojo. Os bancos me inspiram sentimentos assassinos. Dediquei quarenta anos a pregar a justiça social e distributiva no meio rural. A que conclusão cheguei depois desses 14 anos de governos de esquerda à qual eu pensava pertencer? Que todas as decisões políticas e econômicas são tomadas de cima para baixo numa clara postura de dominação e autoridade paternal e ditatorial. Só as epidemias e as doenças contagiosas decidem de baixo para cima.
O povo e o governo se entenderam. Cada macaco no seu galho. O governo está contente com o que decide, seja em favor dos bancos ou dos pobres. O povo está alegre com o governo que lhe deu a chance de se endividar no banco e comprar a geladeira. A comida está garantida. O resto virá depois trazido pelo milagroso PIB.
Oponho-me à febre do “crescimento” que derruba árvores para fazer viadutos, que destrói florestas para construir represas, que ignora o sol e o vento como energia alternativa, que avilta nossas cidades com monstrinhos movidos a petróleo poluidor.
Com a ordem econômica em vigor não se erradica a pobreza nem se reduz decentemente a desigualdade entre os oito e os oitenta. A desigualdade trabalha em nossas casas e mora na periferia. Os oitenta ainda não sabem o que são direitos por que a escola não ensina. E os governos sabem disso. Mas a retórica proclama sem ruborizar-se: “pobre também tem direito a geladeira, a fogão a gás, a forno micro-ondas”. Esses são os direitos que o povo entende e lhe bastam sem deixar de ser pobres. Foram anexados pela estatística à classe média sem precisar ler um só livro em toda a vida.

Eugênio Giovenardi, sociólogo e escritor
20/10/2008

terça-feira, 30 de setembro de 2008

ASTÚCIA TÁTICA

A população brasileira de direita e de esquerda, em sua maioria, segundo as sondagens de opinião, comenta-me Pedro de Montemor, deixou de pensar.
− O sonho da ascensão social, que antes era a casa própria adquirida com poupança, hoje se traduz por comprar carro zero quilometro, ir a um restaurante uma vez por mês e fazer uma operação plástica para extinguir os anos feios da pobreza.
A ênfase é dada à arrecadação de impostos, ao emprego com carteira assinada e ao percentual de aumento da renda dos mais pobres e, consequentemente, ao consumo crescente de novidades. Esses fatos, em si, são corriqueiros de qualquer economia com um mínimo de expansão. O endeusamento deles, através de números e percentuais estatísticos, não decodificáveis pela maioria que diz sim a qualquer benefício, dopa e anestesia o espírito crítico. Esses números se repetem a torto e a direito. Sair do nada e chegar ao pouco adquirido é, sem dúvida, um avanço. Fazer desse avanço um ideal alcançado é um crime de lesa inteligência.
− Os políticos − sugeri a Montemor − apequenam o povo, minimizam suas expectativas, reduzem seus desejos e ideais ao consumo de bens, borram-lhe o futuro e o acomodam no presente imediato.
O governo usa uma tática maquiavélica e astuta. Anuncia programas futuros como fatos realizados no presente. O simples anúncio, da forma como é declarado, produz a sensação de uma obra concluída. No discurso oficial, o “problema” da pobreza, o “problema” da desigualdade e o “problema” da educação se resolverão com os lucros bilionários da jazida de petróleo do pré-sal.
− Enquanto a educação for tratada como problema, disse Montemor, as soluções estarão muito distantes.
Para abafar todos os crimes diariamente revelados, roubos, desvios de dinheiro público, sonegação, chacinas nos morros do Rio de Janeiro, tortura nas prisões, ineficiência da administração de obras em todos os ministérios no tocante à educação, saúde, infra-estrutura, é suficiente propor o uso generoso do futuro lucro a originar-se da província petrolífera a sete mil metros de profundidade. E para dar mais credibilidade ao plano anunciado, revela-se que foram encomendadas sete sondas ao valor de R$ 700 milhões cada uma.
Para que não paire dúvida, simula-se uma invasão estrangeira, com explosões e soldadinhos a pé, nas belas e pacíficas praias do Rio de Janeiro. E, por cúmulo do ridículo, ouve-se um coronel a explicar ao jornalista que um país com poder econômico deve preparar-se para defender a pátria de futuros invasores de nossa economia.
Os combustíveis alternativos que, em algum momento, pareciam suprir o mercado internacional, sumiram dos discursos oficiais com a mesma velocidade do anúncio da descoberta do óleo fóssil. Deus fez o petróleo.
Sobre os gases-estufa, nenhuma palavra oficial. A queima, nos próximos anos, de bilhões de barris de petróleo tem a legítima finalidade de resolver os “problemas” da pobreza, da desigualdade e da educação. Além, bem entendido, de equacionar o “problema” eleitoral e a manutenção do poder.
Teremos, daqui a vinte anos, um povo rico, com índices de igualdade invejável e de educação superior, intoxicado por dióxido de carbono, preso no tráfico engarrafado das largas avenidas, inundado por enchentes incontroláveis ou ressequido nos desertos que conseguimos fazer.

24.09.08

FATOS ISOLADOS

A vida cotidiana da sociedade brasileira está cercada de fatos isolados. É corrente a previsão de meteorologistas: pancadas isoladas no final do dia. Uma delas inundou Brasília de norte a sul.
Na semana, tudo ia bem quando ocorreram fatos isolados nos morros do Rio de Janeiro. O enfrentamento de duas gangues provocou a ira da polícia especializada. Helicópteros, tanques blindados, dezenas de carros militares, tiroteios nas ruas, balas perdidas, civis mortos na calçada, todos traficantes, com exceção da criança assassinada.
− Trata-se de caso isolado, explicou o comandante. Disputa de marginais para garantir o controle da venda de drogas.
Como todos sabem, a droga é um fato isolado, no Brasil inteiro.
Crianças e adolescentes, acompanhados de adultos, homens e mulheres, ocupam espaços públicos onde vivem, comem, dormem e se reproduzem. Fatos corriqueiros, num país com superpopulação, com milhões de desempregados e mais de 900 mil crianças fora da escola. Todo mundo vê e pouquíssimos notam. De repente, torna-se um fato isolado quando, no coração rodoviário de Brasília, alugam-se meninos e meninas para satisfazer a curiosidade sexual, a morbidez, o prazer barato. Não se encontrou conexão direta da guerra entre gangues dos morros do Rio de Janeiro e as forças da ordem, as drogas consumidas por crianças na rodoviária, o ecstase vendido nas portas das escolas e a pedofilia praticada por empresários, taxistas e gente bem.
O roubo ao erário público, os crimes administrativos que desviam o dinheiro dos serviços de educação, saúde e transporte, cometidos por altos funcionários do governo, senadores e deputados, banqueiros, juízes e policiais são todos casos isolados que se extinguem com declarações oficiais, inquéritos rigorosos, promessas de condenação dos culpados, mentiras, desmentidos, anúncios de descoberta de poços de petróleo.
As chacinas periódicas no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Pernambuco, a morte de 262 bebês no Hospital Público de Belém, as 40 mil mortes anuais no trânsito são casos isolados de violência? Alguns fatos isolados têm nome: Anaconda, Passárgada, Sanguessugas, João de Barro, Cartão Corporativo, Banestado.
Isolar todos esses e centenas de outros acontecimentos trágicos e criminosos que a imprensa registra diariamente é mais cômodo do que examiná-los num mosaico de linhas entrelaçadas que se unem, se animam e se reproduzem.
Falta ao Estado, a seus administradores e políticos a capacidade de montar esse mosaico, compreender as linhas que unem os diversos movimentos do desenho e segui-las para que mantenham a harmonia da forma e dos significados. Nenhum detalhe do mosaico é um desenho isolado.
Mas em nosso país tudo é monumental. O território é continental, a população é grande demais, o consumo é gigantesco, as ruas de nossas cidades estão forradas de carros particulares, nascem anualmente milhões de bebês, os roubos são milionários quando não bilionários.
Esse gigantismo nacional nos torna pigmeus e passamos a ver tudo do tamanho de nossa estatura. Diante da monumentalidade geral, a mediocridade política reduz o incontrolável a simples fatos isolados.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O PODER DA PERIFERIA

Brasília é uma cidade plantada numa vasta região do Planalto Central. Seriam essas terras do Centro-Oeste ocupadas independentemente da urbe? Os novos habitantes mirariam a cidade de longe, esperando um oráculo político sobre as sérias decisões econômicas da Marcha para o Oeste? Tornar-se-ia uma cidade-arte, sagrada e perdida, no meio do Cerrado sem vínculos culturais com a região?
Ou, ao contrário, a região do oeste goiano, expandindo-se como nova fronteira agrícola, agroindustrial, extrativa – minerais e madeiras − moldaria e inundaria a cidade de Brasília, transformando-a numa metrópole necessária à sustentação dos novos empreendimentos? Geraria e imporia, segundo suas conveniências, decisões políticas aos administradores manietados pelas forças externas?
Em resumo, a cidade definiria os destinos da região ou a região decidiria a existência, a forma e a função da cidade-capital?
Brasília, trazendo para seu bojo o poder político das decisões econômicas e todo o aparato legislativo, judicial e de defesa nacional, poderia sobreviver no isolamento de cidade-capital, operando apenas como sinalizadora do desenvolvimento regional, sem imantar às suas paredes uma população ávida de escapar à pobreza e participar das regalias da corte?
Um sonho urbanístico, equipado com penduricalhos imprescindíveis da máquina administrativa, voltado apenas para o repouso do poder silencioso, restrito aos ofícios próprios de cabeça da Nação, poderia subsistir como cidade-parque num país de população pobre e desempregada, malformada e analfabeta? O sonho não estaria sob a ameaça de um pesadelo?
Essas perguntas me transportam à periferia do Plano Piloto e aos transbordamentos populacionais que circundam o Distrito Federal, em terras de Goiás. Uma população que se reproduz com maior intensidade nos agrupamentos mais pobres e, portanto, de maior pressão sobre todos os serviços urbanos.
Brasília, aos cinqüenta anos, parece ter perdido o mando sobre si e não possuir força para se proteger dos vizinhos. Seu poder de urbe foi suplantado pela pressão massiva de uma superpopulação que a invade e domina, sentada nos degraus de suas portas, exigindo, impondo, sugando sem retribuição, não por rebeldia, mas por inépcia.
Um Governador leva a administração central para fora do Plano Piloto e um Presidente compra um avião para estar em todos os lugares do mundo e pouco em Brasília. As declarações de defesa e proteção de Brasília, como Patrimônio da Humanidade, são arrotos da boca para fora.
A cidade Brasília está sendo rejeitada de dentro para fora e de fora para dentro. Interesses divergentes procuram moldá-la para atender a propósitos conflitantes na essência, embora convergentes em funções administrativas.
Mais uma vez, o superpovoamento das áreas contíguas a Brasília gera imposições e degenera o diálogo entre a pureza do urbanismo e a crueza das necessidades da população. Dois milhões e meio de habitantes, alheios ao sonho urbanístico de uma cidade-parque, sufocam as ruas do Plano Piloto. Um milhão de carros reclama diariamente a remodelação das vias. A refundação de Brasília é uma tentação que sacode os ânimos de administradores, legisladores, governantes e empresários, excitados pelo poder da periferia que manda de fora para dentro.
As decisões são concebidas lá fora, com o apoio entusiasta e devastador de poderosos aliados. Amadurecidas, codificadas e legalizadas aqui dentro, são implacavelmente executadas.
As conseqüências inevitáveis e os efeitos negativos justificam-se com argumentos da tecnologia, do crescimento, da imposição da realidade, isto é, a superpopulação exige casa, água, luz, emprego, rodovias, estacionamentos, melhores salários para consumir mais, indefinidamente.
A cidade de Brasília chegou a um impasse. As ameaças que caracterizam as metrópoles brasileiras estão às suas portas.
A declaração profética de Juscelino Kubitscheck: − Façamos o “supérfluo” agora. O necessário virá de qualquer maneira, no seu tempo − parece estar em curso.
A determinação e o dimensionamento do necessário deveria ter provocado, a seu tempo, respostas inteligentes de urbanistas, arquitetos e planejadores da economia regional.
Os fatos de hoje são os erros de ontem e podem ser os acertos do amanhã, se amanhã houver..


16.09.08

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

ESPAÇOS LIVRES

Lanço um olhar crítico sobre Brasília. Não sei se é a parte edificada que me fascina ou se as áreas ainda livres que me atraem, semidesertas, silenciosas.
Brasília sem seus monumentos, sem o traçado funcional que separa os edifícios para o desempenho do serviço público das residências e pontos de encontro, pouco se diferenciaria de Goiânia, Anápolis ou São Paulo.
Há um jogo de espaços livres que competem e disputam com as áreas ocupadas. A três mil metros da Esplanada dos Ministérios se estendem áreas preservadas de campos do cerrado, abertas, acolhedoras, cobertas de sol, batidas pelo vento, onde corujas e quero-queros armam seus ninhos no chão.
O brasiliense pode desfrutar de espaços amplos, ainda que pouco o faça, livre e solitariamente, deixando-se penetrar por um silêncio abundante, restaurador, locupletante.
Natureza e arte. Sonhos ameaçados pela mão do homem. Afrontados diariamente por um milhão de carros barulhentos e conspurcantes. Natureza e arte, ambas ignoradas por uma população amorfa que não foi alfabetizada para lê-las nem contemplar o silêncio de santidade que envolve a cidade. Podíamos escolher esse parque natural para viver e desfrutar a beleza nativa do cerrado. Preferimos a rua suja e barulhenta.
Ao invés dos espaços da liberdade, arquitetamos pequenas prisões cercadas de muros e grades.
Brasília é permanente convite à liberdade. Mas o homem livre com medo do homem livre vira refém de si próprio.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

VIOLÊNCIA I

Violência é a expressão forte de um querer. Um desejo não reprimido, uma vontade incontida. É o uso da força. É abrir caminho a cotoveladas. As raízes das árvores precisam espaço. Arrebentam o concreto das calçadas, racham muros de pedra. As vacas e ovelhas se empurram no curral, buscando lugar no cocho para comer. Os ventos fortes arrancam e derrubam o que encontram pela frente até acabar as forças emanadas das leis físicas.A vida dos homens precisa de espaço, de lugar para pôr os pés, as mãos, os pensamentos, os desejos, o amor, o sexo. O tempo de vida é curto e, nesse curto tempo, as pessoas querem compreender e desfrutar da vida. O fato de todas as pessoas terem fundamentalmente o mesmo poder e a mesma força, o enfrentamento é inevitável. Quando não é individual, será coletivo. O uso da força acontece no choro do bebê, nas manhas das crianças, na revolta dos adolescentes, na pressa da reprodução da espécie, na briga pela sobrevivência, no afã incontrolável do conforto, na ambição louca do poder.Desde o assassinato bíblico de Caim, a história dos homens é uma seqüência de barbaridades, entremeadas de obras de arte, livros magníficos, músicas sublimes, descobertas maravilhosas. Há meia-dúzia de guerras entre países. Guerras econômicas, raciais e religiosas. Guerras de poder; entre cidadãos de um mesmo país.As iniciativas de paz são, ao mesmo tempo, tão fortes quanto os movimentos incontroláveis da violência dos hominídeos.Os armistícios interrompem guerras, mas não garantem a continuidade da paz. Exércitos bem-armados provocam competição entre países ou grupos e os horrores se multiplicam. Mais armas e mais eficazes parecem brinquedos para a curiosidade da inteligência. Brincar, arriscar-se num esporte radical, lançar-se num salto mortal na esperança de sobreviver.Proibir a produção de armas contrariará interesses imediatos, mas consolidará a esperança de ver a inteligência sobrepor-se à irracionalidade.

VIOLÊNCIA II

Do cacete ao cassetete, da lança à arma de fogo, os homens têm uma tendência inata e irreprimível de brincar com a morte. A arte da guerra e a engenhosidade da aniquilação ocupam grande parte do tempo de uma sociedade. A violência se desdobra em complicadas características e permeia a difícil convivência humana.
Se a racionalidade e a inteligência da espécie humana se unissem para pensar o bem-estar, as pessoas, com a eliminação do medo profundo, decidiriam por algumas medidas.
− Interromper imediatamente a fabricação de qualquer tipo de arma que tenha por finalidade matar ou ofender pessoas. Isto leva ao desarmamento da humanidade.
− Suprimir todos os artigos constitucionais, abolir todos os poderes que permitam a declaração de guerra ou invasão de países e territórios do mundo.
− Extinguir os exércitos e mudar seus objetivos. Em vez de preparar os jovens para a guerra, educar batalhões para a paz, para o desenvolvimento de relações de convivência social.
− Transformar todas as polícias em educadores de trânsito, de coleta de lixo, de guias turísticos, bombeiros, defensores ambientais.
− Adequar todas as cadeias em campos de produção de alimentos, reflorestamento, proteção de nascentes de água, defesa das florestas e rios.
− Desestimular o levantamento de muros entre as casas vizinhas e a fixação de grades nas janelas.
− Tirar as chaves das portas das residências em sinal de confiança na educação outorgada pelos pais, governantes e escolas.
− Ter constantemente um livro na mão para ler, distribuir ou trocar. O livro será o maior e mais definitivo sinal de que existiu civilização no planeta Terra.
− Estimular o lazer esportivo e sexual, em doses gradativas, não para a reprodução da espécie, mas pelo prazer da distensão, do relaxamento orgânico e do esfacelamento de todo tipo de preconceito moral e regramento religioso.

CARROS

Começa o dia. É lusco-fusco.
Sai o primeiro carro, rodando pelas ruelas além, depois outro e mais outro, dezenas e centenas e o milésimo também.
Param nos semáforos, arrancam em disparada para todas as direções.
Ouve-se o grito da freada.
Na travessia malfadada, um pedestre tombou.
O retorno é demorado, o sinal está fechado.
O trânsito, engarrafado.
Carros frenéticos sobem viadutos, somem em linha reta, centenas vão pela direita, ou dobram pela esquerda.
Correm a cem. Correm centenas e centenas e o milésimo também.
Enchem todas as avenidas, as estreitas ruas e os largos bulevares.
As pessoas não se vêem, como se no carro não houvesse ninguém.
O sinal é amarelo, logo passa ao vermelho e eles rodam na insensatez da fúria.
Os condutores têm que chegar a qualquer lugar. Estacionar. Sentar na cadeira de trabalho, pensando já em voltar.
O carro descansa mais horas do que correu. Voltará pelo mesmo caminho que aprendeu.
Bebe água, óleo, álcool e gasolina, infla-se de ar e corre.
O carro foi multado.
A câmara atenta, no alto do poste, copiou-lhe a placa. Foi preso, guinchado, recolhido ao reformatório dos bons costumes.
O senhor Gol derrapou e se chocou contra a mureta do viaduto.
Alguém está de luto no cemitério.
O carro, levado para a emergência da oficina, recebe os primeiros socorros e os curativos.
Os vivos do acidente, depois do enterro plangente, voltam ao carro novo.
Mas o morto ao carro que o fascinou não volta mais.