segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

NOVA DITADURA



A nova ditadura econômica e administrativa instalada no país, como anexo do sistema invisível que rege o concerto mundial, tem novas armas. É tão perniciosa quanto a ditadura comandada por militares. Esta reprime a liberdade de pensar e agir pela mira das armas. Aquela reprime a liberdade de pensar e agir pela alienação com o disfarce da liberdade de escolher o menos ruim que os donos do poder oferecem. A nova ditadura tenta corromper o cérebro dos cidadãos.
A imposição da vontade, de decisões esparsas, mascaradas por planos e programas fluidos, flexíveis e sobrepostos, aparecem diante de nossos olhos como fatos consumados. Às vezes, é suficiente proclamar programas “para que a gente possa” dar um salto de boas intenções, mas sem determinação de executá-los. Talvez, a mais poderosa arma da nova ditadura seja a estatística semanal dos atos e fatos, das vitórias e das expectativas de acerto e êxito de todas as decisões. Números grandiosos e percentuais inócuos desfilam nos discursos, nas rádios e nas telas da televisão.
O chamado “núcleo duro” do poder pensa, estabelece, define, impõe critérios para determinar o que é bom para o poder, para legitimar o governo e, consequentemente, bom para o país e para a população amorfa. As palavras ganham novo tratamento, nova interpretação, com adjetivos surpreendentes e arrasadores. “Decisões de qualidade” para o êxito do planejamento estratégico. “Unidades pacificadoras” em vez de guerra civil entre grupos policiais e entre estes e a máfia intermediária do lucrativo comércio de dezenas de produtos contrabandeados, das drogas às armas, da prostituição aos assassinatos por encomenda.
“Mensalão e mensalinho” em vez de propina oficial que compra votos de parlamentares para apoiar decisões originadas do núcleo duro como gratificação pela submissão e escravidão política. Tudo  isto envolve “superávit primário”, “cambio flutuante”, “centro da meta da inflação” dentro ou fora da margem de erro, “crédito consignado” para provar que a economia está “robusta”. Esses jargões de linguagem, sabe-se, são de amplo domínio popular.
Se aparecerem pedras no caminho da inteligência do “núcleo duro” ou confusões contábeis e financeiras provocadas pela afoiteza dos máximos dirigentes, ameaçando a robustez da economia ou desmascarando-a, surge do nada uma “contabilidade criativa”, uma espécie de fantasia carnavalesca de travestis. A economia também precisa do samba dos doutrinadores doidos da política. O “caixa dois” que caracteriza a corrupção sutil do “fica melhor assim” recebe a alcunha de “recursos não contabilizados” de sobras de campanhas eleitorais. Dinheiro que comprou por antecipação a boa vontade dos futuros eleitos para os projetos milionários e bilionários de doadores desinteressados. Essas sobras de campanha compraram Deus e o Diabo. Nunca se sabe quem governará o mundo.
As “audiências públicas” funcionam como disfarces postiços, como arremedos de democracia, diálogo ou debate com a “sociedade organizada” e o conteúdo já vem com cartas marcadas. Sua função é legitimar pré-decisões que se transformarão em decisões ou já são fatos consumados. Em termos práticos, esses fatos consumados vão desde um viaduto inútil a cargo de uma empreiteira doadora, ao endividamento de aposentados ou aos supersalários de R$ 160.000 mensais para “aquecer” a economia. Da isenção de impostos para aquisição de carro para transporte individual, à escassez de investimentos em transporte público.
 Não importa que estejamos entre os últimos do mundo em educação e saúde pública. Temos que engolir os remédios que nos prescreve a economia robusta.
Desta ditadura, que une forças militares, democratas ortodoxos, esquerdas revisadas, sociedade organizada e povo abúlico, só nos esquecemos num estádio de futebol ou no sambódromo.
Os baianos, com bom sentido de humor, diante da hipotenusa política e do impossível concreto, deixam as ondas morrerem na praia e na Quarta-feira de Cinzas, começam os preparativos para o próximo carnaval.
E la nave va.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A terceira morte de Vlado Herzog

Ricardo Kotsch
19/02/2011

Tenho obrigação moral de reproduzir este relato, uma prova contundente da ditadura administrativa em que vivemos. Leiam e estarreçam-se.

Pense num absurdo, em algo totalmente inverossímel, num completo desrespeito aos que querem contar a nossa história e à memória de quem tombou na luta pela redemocratização do país.

Pois foi isso que sentiu na pele esta semana o jornalista Audálio Dantas ao procurar o Arquivo Nacional, em Brasília, para poder finalizar o livro que está escrevendo sobre o seu colega Vladimir Herzog, o Vlado, torturado e morto nos porões do DOI-CODI durante a ditadura militar (1964-1985).
Vlado já tinha sofrido duas mortes anteriores: o assassinato propriamente dito por agentes do Estado quando estava preso e o IPM (Inquérito Policial Militar) que responsabilizou Vlado pela sua própria morte, concluindo pelo suicídio.
Esta semana, pode-se dizer que, por sua omissão, o Ministério da Justiça, agora responsável pelo Arquivo Nacional, matou Vladimir Herzog pela terceira vez, impedindo o acesso à sua história.
Muitos dos que foram perseguidos naquela época, presos e torturados, estão hoje no governo central, mas nem todos que chegaram ao poder têm consciência e sensibilidade para exercer o papel que lhes coube pelo destino.
É este, com certeza, o caso de Flávio Caetano, um sujeito que não conheço, chefe de gabinete do ministro da Justiça, meu velho ex-amigo José Eduardo Cardoso, por quem eu tinha muito respeito.
Digo ex-amigo pelos fatos acontecidos ao longo da última semana, que relatarei a seguir.
Na segunda-feira, Audalio Dantas me contou as dificuldades que estava encontrando para pesquisar documentos sobre o antigo Serviço Nacional de Informações (o famigerado SNI) no Arquivo Nacional, e pediu ajuda para falar com alguém no Ministério da Justiça.
Explique-se: um dos primeiros decretos baixados pela presidente Dilma Rousseff, o de nº 7430, de 17 de janeiro de 2011, determina a transferência do Arquivo Nacional e do Conselho Nacional de Arquivos da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Justiça.
Por se tratar de quem se trata, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na época do crime praticado contra Vlado, que denunciou o assassinato, profissional dos mais premiados e respeitados do país, com 57 anos de carreira _ provavelmente mais do que os nobres Cardoso e Caetano têm de idade _, encaminhei a Audálio o telefone do gabinete do ministro da Justiça.
E lhe recomendei que falasse diretamente com José Eduardo Cardoso, explicando a ele as absurdas dificuldades que estava encontrando no Arquivo Nacional para fazer o seu trabalho.
Foi muita ingenuidade minha, claro. A secretária do ministro, de nome Rose, certamente sem ter a menor idéia de quem é Audálio Dantas e de quem foi Vladimir Herzog, decidiu burocraticamente passar o caso para o tal chefe de gabinete, Flávio Caetano, que estava “em reunião com o ministro”, garantindo que ele entraria em contato mais tarde.
Até aí, faz parte do jogo. Chefe de gabinete é para isso mesmo. Serve para fazer a triagem das demandas que chegam ao ministro, e não devem ser poucas.
Acontece que, pelo jeito, Flávio Caetano também nunca ouviu falar de Audálio e Herzog. Tanto é que, depois de mais uma dezena de telefonemas, sem conseguir ser atendido pela excelência maior nem pelo chefe de gabinete, o jornalista-escritor resolveu encaminhar este e-mail ao Ministério da Justiça:
“Prezado Senhor Flávio Caetano
Provavelmente o senhor não me conhece, por isso apresento-me: sou Adálio Dantas, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e da Federação Nacional dos Jornalistas, ex-deputado federal. Tentei vários contatos telefônicos com o senhor, sem resultado. Por isso envio-lhe esta mensagem.
Estou concluindo (com prazo para entregar à Editora Record) livro sobre o Caso Herzog, do qual fui parte. Necessitando de informações sobre o assunto, procurei, no último dia 10, o Arquivo Nacional _ Coordenação Regional de Brasília, que mantém a guarda dos papéis do Serviço Nacional de Informações. Depois de me identificar, preenchi fichas de solicitação, tomando o cuidado de acrescentar informações adicionais sobre o caso, hoje referência histórica.
Como dispunha apenas de uma cópia de procuração que foi dada pela viúva de Herzog, Clarice, datada de agosto de 2010, disseram-me que era necessário documento original, com data mais recente. Já estava para buscar outra procuração quando recebi (dia 14/02) ofício em que se exige, além da procuração:
- Certidão de óbito de Vladimir Herzog
-Certidão de casamento
Considero que, em se tratando de caso histórico, de amplo conhecimento, e quando se sabe que a União foi responsabilizada na Justiça pelo assassinato de Herzog, tais exigências são absurdas e até desrespeitosas. Que atestado de óbito terá a viúva para mostrar? O que foi lavrado com base no laudo do médico Harry Shibata, que servia ao DOI-CODI e confessou tê-lo assinado sem ver o corpo? E que certidão de casamento terá Clarice Herzog juntado à ação que impetrou contra a União pela morte do marido?
E se a pesquisa fosse sobre o ex-deputado Rubens Paiva, quem forneceria o atestado de óbito? Desse jeito, ninguém conseguirá saber sobre ele no Arquivo Nacional.
Gostaria de discutir mais a questão que envolve, parece, deliberada dificultação de pesquisa. Ou, no mínimo, desconhecimento histórico por parte desse órgão público.
Faço questão que essas informações cheguem ao conhecimento do ministro José Eduardo Cardoso, que deve conhecer minha história.
No aguardo de uma resposta,
Atenciosamente,
Audálio Dantas”.
No momento em que escrevo este texto, no final da tarde de sábado, dia 19/02, Audálio continua esperando uma resposta. Na melhor das hipóteses, suas informações não chegaram às mãos do ministro José Eduardo Cardoso. Não tenho como saber porque também não consegui falar com o ministro.
Na sexta-feira à tarde, depois de ler o e-mail acima que Audálio enviou ao chefe de gabinete, sem receber retorno, liguei para o gabinete do ministro. A secretária que me atendeu, provavelmente a mesma que recebeu as ligações de Audálio Dantas, já ia me despachando direto para a assessoria de imprensa do ministério. Fui bem educado:
“Minha senhora, eu não quero entrevistar o ministro. Eu preciso falar com ele pessoalmente sobre um caso grave e urgente do qual ele deve tomar conhecimento”.
Só aí ela permitiu que eu soletrasse meu sobrenome, respondeu-me que sabia quem eu era, pediu os números dos meus telefones e, imaginei, cuidou de passar a ligação para o ministro. Minutos de silêncio depois, a secretária voltou para me dizer, sem muita convicção, que o ministro estava ocupado e me ligaria em seguida. Também estou esperando até agora.
Na hierarquia da falta de respeito pela própria função que exerce, o menos responsável nesta história é o funcionário de nome Raines, que se apresentou como historiador ao atender (ou melhor, deixou de atender) Audálio Dantas.
A sua superiora, Maria Esperança de Resende, coordenadora-geral da Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal, é quem assina o absurdo pedido de documentos. Alguém superior a ela a colocou lá sem perguntar se as suas qualificações eram adequadas ao seu pomposo cargo no comando do Arquivo Nacional.
Talvez o jeito mais simples e barato de resolver este problema seja baixar outro decreto presidencial e devolver o Arquivo Nacional à Casa Civil da Presidência da República, como era antes, já que o Ministério da Justiça não parece muito interessado no assunto nem preocupado com o seu funcionamento.
Das duas uma: ou Cardoso está muito mal assessorado ou não entendeu ainda quais são os seus compromissos e responsabilidades no Ministério da Justiça do governo de Dilma Rousseff, a presidente da República que, ao contrário de Vladimir Herzog, conseguiu sobreviver às torturas na ditadura militar.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O CRIME DO DIA SEGUINTE


Um argumento ardiloso isenta de possível punição malandragens, maracutaias e crimes cometidos por políticos, personalidades públicas e pessoas poderosas. Os fatos investigados ou a investigar sobre a conduta ilícita de um deputado, senador ou ministro podem escapar do olho da justiça por terem ocorrido na “legislatura passada”.
A nova eleição fabrica um homem novo, diferente e tem a virtude de apagar as transgressões do dia anterior. O Sr. Benedito Domingos, deputado distrital reeleito em 2010, é acusado de ter favorecido empresas de seus filhos e familiares em licitações para executar serviços públicos, isto é, com dinheiro público. Mas isto foi na legislatura passada. Não se nega o fato, nem o nepotismo, nem o favorecimento, nem a improbidade do deputado. Apenas enterra-se o cadáver por indigência moral.
O senador Gim Argelo, é acusado de receber uma quantia de dinheiro acima do razoável, de origem contaminada por propinas e negociatas. Mas essas transações foram realizadas antes de sua diplomação como senador da república em substituição ao senador renunciante Joaquim Roriz. Sua imoralidade foi absolvida com arquivamento do processo, pois o negócio milionário fora concretizado antes da diplomação. É igualmente um crime do dia anterior.
Esta moral tem a ver com a venda de indulgências praticada pela Igreja de Roma, no século XVI. Pagava-se em libras-ouro a absolvição do crime do dia anterior e comprava-se o perdão do ilícito previsto para o dia seguinte. O cristão daquela época e o político de hoje acumulam créditos no banco da safadeza e, assim, vão construindo a sociedade dos inocentes, dos intocáveis, dos sofros, sempre purificados pelo sacramento da justiça cega e com nariz de cera.
Se a moda pega, se estas táticas da justiça vingam, se as mentiras passam à categoria de verdades, estão salvos todos os manipuladores da coisa pública, do presidente do país ao varredor de rua. Só responderão em juízo os que forem investigados pelos crimes do dia seguinte. Os de ontem pertencem à “legislatura anterior”e foram cometidos antes da “diplomação”.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

CARTA DE ZÉ A LUIS


 Por dever de justiça honro-me de reproduzir a carta de Zé para Luis - adaptada por Barbosa Melo - escrita por Luciano Pizzatto, engenheiro florestal, detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia.

Prezado Luis, quanto tempo.

    Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.
    Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra né Luis?
    Pois é. Estou pensando em mudar para viver ai na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos ai da cidade. To vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.
Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.
    Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né Luis?
    Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né .) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana ai não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?
    Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encompridar uma cama, só comprando outra né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.
Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.
Depois que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia, ai eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.
Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ia mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, ai quando vocês sujam o rio também pagam multa grande né?
Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios ai da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.
Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.
Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.
Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.
Eu vou morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranquilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom que vocês é só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.

Até mais Luis.
Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.
 
(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

MEUS OITO ANOS



Quando completei quarenta anos, a vida parecia não ter fim. A expectativa de vida para os homens, diante do progresso da ciência e dos cuidados da saúde era estimada em 68 anos.
Olhei para frente. Aquele número estava longe. Tinha 28 anos para completar a arriscada aventura de viver. Quase três décadas. O tempo contado de dez em dez parece uma eternidade.
O tempo foi correndo. Vi crescer a filha que sempre tinha e tem 35 anos menos que eu. Nasceram duas netas e apareceu meu primeiro livro que me consumiu vinte anos e vários cadernos manuscritos.
Pelo caminho, ficaram amigos que as estatísticas não incluíram em seus cálculos. O destino quis que eu ultrapassasse a linha de chegada e, hoje, aos 76, não pertenço ao número oficial dos vivos. A matemática também mudou. A contagem do tempo que eu fazia por dezenas, agora, reduziu-se a unidades.
A teimosia de viver, porém, dá às unidades uma duração infinita e eterna. A consciência da vida pessoal não admite que se acabem os dias nem os anos. No entanto, não é mais em dezenas que posso prever minhas peripécias. Contento-me em dizer que poderei escrever um livro por ano. E um livro é uma eternidade. Brincar com a eternidade se torna um truque para burlar as estatísticas.
Ouso dizer que chegará o tempo em que começarei por contar os meses, depois as semanas e, finalmente, os dias para recolher-me ao silêncio imortal dos que regressam ao ventre universal.
“Como são belos os dias
Do despontar da existência!
Respira a alma inocência
Como suspiros a flor!”.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

BARBAS DE MOLHO



Em política, o brasileiro revela seu sangue árabe. Chega-se ao poder pelo voto ou pelas armas e estipula-se um período de governo de vinte anos. Sem esquecer outros momentos da história, assim foi com os militares em 1964, assim queria o PSDB, com Fernando H. Cardoso, em 1998, assim quer o PT em nossos dias.
O levante árabe, neste início de 2011, alerta aos estrategistas do atual regime que sugiram ao PT a atitude prudente de pôr as barbas de molho. Os longos governos criam idioma próprio. Para sustentar-se no poder é preciso negociar, mentir, enganar, encobrir, favorecer aos grandes e levar no colo os pequenos.
A descontinuidade de governos, no Brasil, se caracteriza por herança maldita deixada pelo antecessor. A continuidade, filha do predecessor, é orientada pela simples correção de rumos sem reconhecer os equívocos de caminho. Hoje, o debate sobre o salário mínimo abafa o rumor da batalha contra a corrupção nas polícias do Rio de Janeiro e outros estados, os milhares de mortes no trânsito, a vergonha do transporte público. Alguém sabe quais são as reais razões que definem o salário mínimo em R$ 545?
Aqui e ali, alguns analistas insinuaram, timidamente, que a situação financeira e contábil do país, deixada pelos oito anos do Sr. Silva, em outros tempos, se denominava “herança maldita”. Alguém adivinha por que o Sr. Silva impôs o nome de Guido Mantega para permanecer o Ministério da Fazenda? E para que essa escolha não fosse monstruosamente evidente, recompensou outros ministros, fiéis escudeiros, com o assentimento da sucessora Dilma Rousseff. Assim, Guido Mantega, em nome dos vinte anos no poder, vai ao Congresso Nacional convencer a maioria da base aliada, já convencida, de que o salário mínimo não pode ultrapassar os 545 reais. Esse ministro dizia, durante a crise financeira que assolou países ricos e nos deu a chance de mostrar a astúcia administrativa com a derrama de dinheiro para o consumo, que nossa economia era robusta.
Vamos combinar, então, que temos uma economia robusta para os fortes e uma economia raquítica para os fracos. Assim se explicam os fatos.
Alguém possui informações emitidas pelo Banco Central sobre os lucros dos investidores estrangeiros e brasileiros no jogo da bolsa e na compra e venda de dólares desta economia robusta?
Deputados, senadores, ministros de Estado e de Tribunais Superiores, altos funcionários fazem parte da economia robusta com seus 50 e mais salários mínimos e excelentes aposentadorias. Os 47 milhões de trabalhadores braçais, com um salário mínimo, pertencem à economia raquítica administrada pelo ministro Mantega. A farra dos gastos públicos do tempo do Sr. Silva, administrada submissamente pelo ministro Mantega é, agora, contida pelo mesmo ministro Mantega com a poupança do salário mínimo.
No dia em que nosso sangue árabe for despertado pela injustiça, pela cínica forma de manter a desigualdade sob a capa de classes de A a Z, pelas mentiras impunes que se convertem em verdades, a serpente comerá seu próprio ovo.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O PEQUENO E O GRANDE



Tornei-me, atraído pelo encantamento da natureza e pelo funcionamento das leis físicas, um engenhoso construtor de barragens. Pequenas barragens. Reparto meu tempo de septuagenário em atividades diversas. Leitura, para conviver com amigos e amigas, de hoje e de ontem, que me falam diretamente ao pensamento. Literatura, para conviver comigo mesmo, no âmbito da consciência. Música e cinema, para não enferrujar a imaginação artística e criativa.
O tempo para as barragens faz parte da ginástica e do exercício físico e tem a ver com água. Água da chuva. Dá-me pena, diante da realidade desértica provocada pela mão descuidada das pessoas, ver as águas limpas da chuva enlamear-se e correrem desesperadas para qualquer lugar. Rolam pelo asfalto, arrastam lixo jogado no chão, contaminam rios e lagos. Onde estão as árvores, a vegetação rasteira, as várzeas verdes, os pântanos, os socavões para receber as águas da chuva.
Os desertos urbanos provocados por construções de edifícios e vias, os desertos agrícolas resultantes de desmatamento e queimadas, mudaram o leito natural das águas. Compreendi melhor o tamanho do desastre que estamos preparando para depois de amanhã quando adquiri um pedaço destruído de cerrado. Pensava fazer dele um refúgio para meu silêncio. As águas da chuva caíam, corriam desabaladamente montanha abaixo e sumiam enlameadas pelo Ribeirão das Lajes.
Lendo Os sertões, Euclides da Cunha me ensinou como desfazer desertos. Os romanos, há mais de três mil anos, já transformavam os desertos da Tunísia em campos de trigo. Construí a primeira barragem com pedras vulcânicas na cabeceira de uma grota. Uma pequena barragem. Na pancada de chuva que caiu, dias depois, guardou pouco mais de 100 litros de água. Por entre as pedras da barragem, filtrava-se a água, livre de terra e folhas que vinham com ela. Construí outras barragens, dezenas de barragens, concretadas com pedras, paus secos das queimadas e terra de cupim, ao longo das grotas, da nascente à foz. Uma barragem grande, como Itaipu, ou pequenas como as do meu Sítio das Neves, obedecem às mesmas leis físicas, requerem os mesmos cálculos matemáticos de engenharia. A velocidade, o peso, a altura variam e a barragem tem que se adequar ao local por onde flui a água. A dezena e o milhão são contados por unidades. As centenas de barragens que construí, no pedaço de cerrado que me abriga, detêm milhares de litros de água.
O pequeno multiplicado é maior do que o grande. Meu refúgio tornou-se repositório de águas límpidas. O cerrado transformou-se em floresta, em campo de flores e território livre para pássaros, serpentes, macacos, coatis, tamanduá-bandeira, felinos e outras espécies.
Se os funcionários do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário, do Ibama e do Ibram ouvissem a linguagem da natureza e a compreendessem, nossos bosques se multiplicariam, nossas águas não matariam. Nas madrugadas, despertaríamos com “as aves que aqui gorjeiam”.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

DEUS É SAMBISTA



Nas horas graves da pátria amada, quando os perigos a ameaçam e as desgraças se anunciam, a única força que a pode salvar  é Deus. Quando a mão comunista se alçou para ofender nossa liberdade democrática e cristã, Deus se uniu à pátria e à família brasileira para vencer o inimigo. Diz o povo que o Cristo, do alto do Corcovado, de braços abertos, implora de dia e de noite para que Deus venha em nosso auxílio. Ele veio e se nacionalizou brasileiro. E, no auge de conquistar a maior glória esportiva de todos os tempos, Deus vestiu a camisa verde-amarela e entrou em campo com Pelé e Garrincha. Deus é brasileiro. A taça do mundo é nossa. Deus joga do nosso lado e, quando perdemos, Ele perde conosco. E, como nós, não desiste nunca.
Nas últimas catástrofes que assolaram a pátria, inundações, deslizamentos de morros, milhares de mortos soterrados e re-enterrados, Deus acudiu, aqui e ali, para salvar uma criança ou um idoso. “Todas as casas do lado caíram, só a minha ficou de pé. Foi Deus!”, disse a devota senhora.
E, ontem, no infernal incêndio que destruiu os pavilhões de três escolas de samba, uma prece comovida se elevou: Pai nosso que estais no céu, recitada por passistas e porta-bandeiras. “Com fé em Deus, iremos desfilar. Deus vai nos dar força para sair à rua e mostrar o nosso samba”. Ninguém duvida. Vai dar tudo certo. Deus é brasileiro e sambista. Se Deus não joga, dança.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

BROTO DA NATUREZA



Os que frequentam esta página percebem que sou um cidadão consciente de fazer parte da natureza. Sou um broto da natureza. Por isso, dialogo com ela e lhe dou minha contribuição como ela me dá a sua. Recuso a ser chamado de consumidor ou mero contribuinte do fisco. Sou um cidadão da pátria universal denominada natureza, origem comum de todos os seres animados seja qual for o tipo de alma que os anima.
O assalto nefasto dos seres ditos inteligentes, presunçosos exploradores e contumazes consumidores dos bens disponíveis nos armazéns da natureza, provocou a reação inflexível das leis físicas e geológicas. Romperam-se as relações racionais entre as pessoas e a natureza. Nessa guerra declarada, apesar de toda a tecnologia exibida, os derrotados são os que imprudentemente desafiaram a natureza.
Uma das dádivas que a natureza proporciona às pessoas, às árvores, aos pássaros e animais das florestas e rios é a chuva. Águas limpas e abundantes banham todos os seres. Meu corpo é quase todo água e minha alma navega nessas águas. Os que leram O RETORNO DAS ÁGUAS e A SAGA DE UM SÍTIO conhecem o apreço que tenho pela água da chuva. Assinei um acordo com a natureza. As águas que desabam em milhares de litros sobre meu Sítio não arrasam plantas, nem casas, nem matam.
Por meio de pequenas barragens, adequadas a obedecer às leis físicas, especialmente a velocidade e o peso da massa líquida, parte das águas repousam em minúsculos lagos, infiltram-se no solo, dessedentam as raízes das árvores e engrossam os troncos. Cobre-se o solo de verde e de flores de todos os formatos e cores. Uma festa animada por sinfonias de pássaros, gritos de coatis e grunhidos de macacos. A paz, a serenidade, o equilíbrio, a calmaria e uma extraordinária aura de beleza engrandecem a vida de todos os que têm a felicidade de habitar esse refúgio.
No dia em que o cidadão da natureza, seja agricultor ou citadino, fazedor de leis, corretor de impostos ou administrador da coisa pública, descobrir que é necessário preparar-se para receber as chuvas e aprender a cuidar das águas, as portas de um admirável mundo novo se abrirão.