domingo, 30 de dezembro de 2007

CIDADÃO, CONTRIBUINTE, CONSUMIDOR

Sócrates, Platão, Aristóteles não tinham CPF nem Registro Geral de identidade. O conselho de Atenas não precisou comprovar a identidade de Sócrates com um número, para condená-lo à morte.
Pedrinho segue os procedimentos rotineiros do peito da mãe à mamadeira, do berço ao Maternal I. A matrícula no colégio lhe dá um número.
- Número da matricula, por favor.
- 55.
A pasta do arquivo contém seu histórico escolar. Pedrinho continua sendo um menino, um ente do sexo masculino.
- Sabe o número de seu RG?
-2.500.000 - SSP-DF.
Esse número tem a ver com a polícia. Servirá para pedir um relatório de antecedentes criminais, sem nunca ter cometido um crime ou para se submeter a um concurso público. Sem esse número, Pedrinho é ninguém. Quererá, mais tarde, comprar casa, abrir conta em banco, inscrever-se numa escola profissional, obter carteira de habilitação, adquirir um celular ou computador, consultar um médico? O número do RG será a chave da operação. Com ela, Pedrinho será cliente ou paciente. Entra definitivamente na categoria de consumidor de bens e serviços. Mantém inalterado o sexo masculino, por enquanto. Ele é consumidor. Natália é consumidora.
A TV tem obsessivo fascínio pelos consumidores. Hordas deles, de ambos os sexos, fazem a euforia de repórteres que nos dizem, em repetidos percentuais, quanto gastam e como se comporta a loucura dos consumidores.
- Trouxe a cópia do CPF?
Pedrinho é, agora, contribuinte pessoa física. Diferente do consumidor, contribuinte não tem sexo definido. É hermafrodita. A Receita Federal, o famigerado fisco, se dirige ao cidadão brasileiro em termos formais e impessoais: senhor contribuinte. A única distinção de gênero que o fisco aceita é contribuinte pessoa jurídica, no feminino. Talvez, por isso, a trate com menor rigor e lhe abra mil facilidades para sonegar, desviar, corromper, dobrando-se ao poder feminino, hoje em alta.
O Brasil tem quase 200 milhões de pedrinhos consumidores e natálias consumidoras e ao redor de 40 milhões de contribuintes. Os cidadãos brasileiros, graças ao regime capitalista e neoliberal de nossos governos de direita e de esquerda são postos em arquibancadas distintas: contribuintes, de um lado e, de outro, consumidores.
Para os governos, as atenções maiores se dirigem aos contribuintes. A conversa é com eles. A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, segundo a ministra plenipotenciária do Palácio do Planalto, só afetava os ricos, os que têm CPF e gorda conta bancária. As legiões de pobres do programa Bolsa Família são consumidores secundários e eleitores principais. Por mais empregos que se criem, os clientes do Bolsa Família aumentam. Eles não mandam no país, mas elegem. Pertencem à maioria dominada pela minoria, mesmo quando escolhem um dos seus para presidir a Nação.
Eis a que ponto nos leva a substituição do nome do cidadão pela identidade impessoal de contribuinte ou consumidor. Tornamo-nos joguetes na mão prestidigitadora das estatísticas.
A demagogia democrática seguirá conclamando pedrinhos e natálias a serem fiéis consumidores e contribuintes para a grandeza do país.

PAIS DE METONÍMIAS, ALEGORIAS E EUFEMISMOS

Na informação rotineira dos fatos, acostumamo-nos à ineficiência dos que administram serviços públicos e privados, à displicência e aos gastos perdulários que já não damos importância se uma obra custou um ou dez milhões de reais. Qualquer obra, acima de um milhão é incontrolável.
Um roubo praticado por senadores ou deputados, fiscais da Receita ou funcionários da Previdência, só vem a furo quando ultrapassa os R$ 500 milhões. A displicência se generaliza de cima para baixo, garantida pela impunidade e reforçada por uma cascata de metonímias que governam a sociedade. As metonímias escondem o rosto dos responsáveis e difundem irresponsabilidades no exercício das multifárias atividades dos cidadãos.
São ordens do Palácio do Planalto, dizem os funcionários para a platéia brasiliense. Ou são ordens de Brasília, quando os subordinados se encontram no Acre ou no Mato Grosso do Sul. No período militar, eram ordens superiores que justificavam a prisão de oposicionistas ou a censura prévia. Quem manda no Palácio? Os desmentidos, o espírito de corpo e a proteção mútua asseguram a existência da autoridade sem rosto. Em situações mais delicadas, sabe-se que o Palácio não gostou de certa galhofa da ministra sobre as vicissitudes de turistas nos aeroportos.
Nos longos feriados de Páscoa, Natal ou Ano Novo, o jornalista, com ar triunfante, informa que a loucura do trânsito matou 20% a mais do que no ano anterior. Os condutores sobreviventes e os mortos não têm nome. Fazem parte da loucura do trânsito. Não ouvem conselhos dos agentes rodoviários, não percebem que transportam pessoas, não vêem as centenas de placas e sinais ao longo das estradas. Metonímia é dizer que o trânsito mata, ao invés de a imprudência do condutor.
A justiça é lenta, a polícia tortura, a violência está fora de controle, enterrada mais uma vítima de bala perdida, caiu na malha fina da Receita, as drogas são comercializadas pela organização criminosa e consumidas pela classe média alta, são algumas das expressões que compõem o conjunto de informações cotidianas. Construímos com alegoria e eufemismos uma sociedade sem rosto. As responsabilidades se escondem atrás dessa espessa cortina de frases feitas, de ordens maldadas e malcumpridas, de crimes sem culpados, de roubos sem ladrão.
No ano de 2007, o aquecimento da Terra foi a verdade inconveniente que abalou a humanidade. O aquecimento global do planeta se tornou, na boca de jornalistas de rádio e TV, o responsável por todas as calamidades sofridas, da inundação de Nova Orleans, Indonésia e China à seca do Nordeste e do Sul do país. Enquanto isso, continua-se queimando florestas, consumindo petróleo nos milhões de carros particulares, aumentando o calor da atmosfera, causando desastres diários com mortes de pessoas e perdas materiais. O aquecimento global é obra do homem.
Voltando de Vitória para Brasília, com escala no Rio de Janeiro, no longo período em que a incompetência administrativa dos aeroportos se manifestou nos departamentos do governo e nas empresas de aviação, os passageiros foram surpreendidos com uma nova metonímia proferida pelo comandante do avião.
Senhores passageiros, sua atenção, por favor. Estamos prontos para a partida. No entanto, o Solo nos orienta para aguardarmos 20 minutos. O solo, quem seria? Certamente, alguém com os pés no solo. Como responsabilizar o solo? Como prender a violência? Como deter o aquecimento global da Terra?
E assim vamos. Ouvimos e usamos o vocabulário das irresponsabilidades que facilitam a impunidade, numa sociedade sem rosto e sem nomes.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

BATEDORES DA COCA-COLA

Ser assaltado no estacionamento da universidade ou na saída do cinema, ser obrigado a esvaziar a conta no caixa eletrônico para satisfazer o ladrão, que ameaça com revólver, são acontecimentos de rotina.
Os arrastões na praia, no supermercado ou em edifícios de bairros nobres, vigiados 24 horas por dia, também não são raridade neste país.
Como brasileiro só obedece a lei se a polícia está por perto, o governo resolveria o difícil problema do emprego, contratando milícias na proporção de um soldado, agente ou qualquer outra denominação mais apetitosa, por grupo de dez cidadãos. O único inconveniente é que não haveria quem controlasse as milícias.
Por falta de esquema de rígido controle da população, apesar de nos convencerem com estatísticas diárias do crescimento da renda, de que vivemos no melhor país do mundo e que nossas pequenas debilidades desaparecem diante dessa decantada virtude da cordialidade brasileira, os fornecedores de mercadorias às lojas e supermercados obrigam-se a contratar escoltas armadas para proteger-se contra os ladrões.
Haverá tantos ladrões soltos nas ruas de nossas cidades que caminhões da Coca-Cola devam ter por perto uma frota de carros blindados e homens fortemente armados, para descarregar pacificamente uma dezena de caixas no empório da esquina?
Soube, buscando melhores fontes, que essa providência só é tomada em locais de risco. Bancos, supermercados, centros comerciais, cidades satélites em torno de Brasília figuram entre os mais visados.
Com o passar dos dias, o risco estará em sair do supermercado com uma sacola de pão, um quilo de feijão e 300 gramas de carne.
Nunca foi tão grande a seriedade neste país.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

DEZ MANDAMENTOS DA LEI DA NATUREZA

1. Amarás as árvores, as flores e os animais como amas teus irmãos.
2. Não queimarás as florestas.
3. Não cortarás árvores em vão.
4. Replantarás tantas árvores quantas precisaste cortar para viver.
5. Descansarás em silêncio à sombra das árvores e sairás à noite para ver estrelas.
6. Protegerás todas as nascentes e todas as águas dos rios e lagos.
7. Não jogarás dejeto algum no solo.
8. Reciclarás todo artefato que possa poluir a terra e o ar.
9. Reduzirás o uso do carro individual e favorecerás o transporte coletivo.
10. Terás somente os filhos que possas sustentar sem agredir a natureza.

Eugênio Giovenardi

domingo, 2 de dezembro de 2007

A FEBRE DE DONA GAIA

A FEBRE DE DONA GAIA

Gaia, a deusa Terra, está enferma e febril. Cansada de gerar, amamentar e enterrar filhos ingratos, dá sinais de esgotamento. Os médicos de plantão não saem de sua cabeceira. Gaia não pode morrer.
Na última reunião da junta médica, na Noruega, os médicos Al Gore e Ragendra Pachauri foram apresentados como ganhadores do Prêmio Nobel da Paz, pela dedicação de ambos em desvendar as causas da febre de dona Gaia. Os diagnósticos dos premiados foram contestados por um pequeno grupo de cientistas céticos. Cada grupo de cientistas tem seu método de pesquisa. A lógica das hipóteses, que um método contém, leva a conclusões supostamente coerentes. Cada um prefere suas próprias razões. Diante dos debates, a grande família humana, apreensiva, espera novos resultados.
Quais são as causas do aquecimento do planeta Terra? A febre de dona Gaia é um sintoma da ação de alguma disfunção orgânica. Umas bactérias são mensuráveis, outras, pouco ponderáveis. O que aconteceu, há cem mil anos, é pouco visível. As suposições ajudam a formular hipóteses. Que informações antigas se têm, além do dilúvio descrito na Bíblia? Os egípcios relataram períodos de vacas magras. Isso tem a ver com secas prolongadas? Os romanos acumularam experiência em canalizar água, transformar desertos em florestas, em pomares e campos de cereais, no norte da África. Teria faltado água? Aqua vitae.
O aquecimento do planeta não se restringe à emissão de CO2. O universo tem suas leis e todas funcionam. Conhecê-las é um permanente desafio. Entre as causas do desconforto que sofremos, das doenças endêmicas, das mortes perpetradas pelos fenômenos naturais, há que se mencionar a ocupação da terra pelo homem. O crescimento progressivo da população mundial intensifica o uso das riquezas naturais, especialmente a terra, a água e as fontes de energia. O homem produz dióxido de carbono em grande quantidade. O desequilíbrio das relações entre o crescimento da população, a exploração da riqueza natural – terra e água – para a sobrevivência humana, os requerimentos do conforto social e de serviços essenciais à convivência não se fizeram acompanhar por sistemas eficazes de administração que promovessem investimentos estruturais no campo e nas cidades.
A Revolução Verde melhorou a produtividade agrícola, pela via do uso incontrolado da água, de fertilizantes e inseticidas para alimentar o mundo. Ganhamos mais comida, mas perdemos florestas. Secaram nascentes e rios. Quase um terço da humanidade passa fome e não tem acesso à água. Os incêndios que têm assolado o Brasil, a América do Norte, a Austrália e a Grécia contam com a imprudência humana e a longa estiagem. Quantos anos levará dona Gaia para se recuperar? Duas a três centenas de anos. As inundações na Índia, na China, Nova Orleans e regiões do Brasil destruíram cidades e instalaram, no caos urbano, as condições favoráveis ao desenvolvimento de pragas e doenças endêmicas. Os que não morrem pagam a conta da imprevidência.
A humanidade vai se adaptando às catástrofes. Enterra mortos. Reconstrói casas. Enquanto se discutem as causas do aquecimento do planeta Terra, acompanhamos, em tempo real, as queimadas da Amazônia pela TV, ou entramos no automóvel para ir ao supermercado, enfrentando engarrafamentos e estacionamentos lotados.
Tenho convicção de que a febre de dona Gaia diminuirá na medida em que se protegem nascentes de água, se plantam árvores, se respeitam as florestas, se oferece transporte alternativo ao carro individual. Mas essas ações serão muito mais complexas se a população mundial se expandir mais rapidamente do que as ações de combate às desigualdades entre países e pessoas.
A Terra se resume no pedaço de chão onde vivemos. Ame-o.

Eugênio Giovenardi (eugeniogiovenardi@yahoo.com.br) 24.10.07