domingo, 28 de fevereiro de 2010

O DF NA UTI

A doença é grave. É um câncer em metástase. Químio e radioterapia já foram aplicadas sem grande resultado. Várias cirurgias têm sido realizadas para extirpar partes corrompidas pelas células cancerígenas. O estado do paciente continua crítico.
O paciente foi atingido mortalmente pelo mensalão cancerígeno de primeiro grau ou câncer A infiltrante, proveniente da glândula petista, com ramificações de difícil diagnóstico, atingindo o cérebro. O câncer B, de segundo grau, se alastrou pelo corpo peessedebista. correndo solto por veias e dutos. Enfim, o câncer C, de terceiro grau, atacou com fúria o nervo democrata e o paciente, por recusar a cirurgia, a químio e a radioterapia, foi levado à força para a UTI da ética e da moral.
Como todos os mensalões são cancerígenos, não há distinção de tratamento.
Aos cinquenta anos, Brasília, magnânima, monumental, silenciosa, coberta de estrelas, cantada por poetas e decorada por artistas clama contra a corrupção e determina que sejam internados todos os portadores de mensalão na UTI da ética.
Todos para a UTI, sem distinção de classe de câncer. Há lugar para todos, E há médicos disponíveis nas delegacias de polícia e enfermeiras na Papuda.
Uma corrente de energia,
todos de mãos dadas,
pensamento positivo,
florais de Bach.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

USO DO CÉREBRO

Certos temas que entram em discussão pública se prestam a críticas, a planos econômicos, a propostas políticas, pragmáticas e a sonhos utópicos. Um deles é o do crescimento da população mundial e, outro, da eliminação da pobreza. Para ambos há soluções em perspectiva, críticas, análises, propostas, ações múltiplas de efeitos imediatos ou lentos. Esses temas envolvem, ao mesmo tempo, aspectos políticos, econômicos, ecológicos, psicológicos e humanos que dizem respeito às liberdades individuais e ao bem coletivo. Uma decisão sábia sobre esses temas, que afetam a todos os povos da terra, necessitaria de um maior e melhor uso de nossa capacidade cerebral.
Talvez por um processo evolutivo inacabado, o uso do cérebro é limitado, seccionado, restrito a pontos mais luminosos e pressionado para achar uma saída rápida. E sai-se rapidamente da complexidade de temas para não se embaraçar nas soluções mais racionais. Soluções que podem soar contraditórias, complementares. Umas mais difíceis de aplicar. Outras, mais fáceis. Contentamo-nos com pouco e com um pouco rapidamente conquistado.
Diz-se que, no dia a dia, usa-se mínima parte do cérebro, de um a três centésimos, suficiente para as decisões de sobrevivência mínima. A maior parte de nossas ações é comandada pelo aparelho automático, produto da rotina e das conveniências imediatas.
Um “por que” jogado a alguém que estivesse por atravessar a rua com sinal fechado receberia múltiplas respostas, além do choque cerebral de parar para pensar e responder. Andamos com o cérebro ligado no automático. Transferimos essa preguiça cerebral para a decisão dos grandes temas. Em torno de uma decisão imediata, na sala do palácio presidencial ou em ministério qualquer, há meia dúzia de justificativas que explicam o ato cerebral. Não é a solução do problema que importa. São as justificativas que dão à decisão tomada o grau de utilização do cérebro para sair do problema que se apresentou. Como nenhuma decisão pode ser tomada e trancada numa redoma de vidro, sua aplicação prática repercutirá em outras direções nem sempre pensadas.
Os efeitos de uma decisão direcionada a resolver uma situação extrema como a fome crônica, resultado de uma perversa segregação econômica, podem ser imediatos. A pergunta – por que essa decisão? − pode complicar o cérebro dos que decidem. A solução dada visa a extinguir a fome ou eliminar a perversidade da ordem econômica responsável pela existência dessa situação crônica de pobreza?
Para esse tipo de solução simplista, o uso mínimo do cérebro é suficiente. Para manter vivos outros estamentos da economia como bancos, indústrias de automóveis, taxas de juros, requer-se um pouco mais de massa cerebral. Digamos cinco centésimos da capacidade total. Mas para ir mais longe, ao encontro da grandeza do homo sapiens e alcançar um patamar onde o conhecimento se une à sabedoria, precisaremos, sem dúvida, de alguns centésimos a mais.

TU, ESCRITOR

Há um sentimento de frustração permanente para quem escreve sem leitores. É como andar no escuro, compondo um monólogo no qual o escritor imagina um leitor ouvinte a seu lado. Muitas vezes, o escritor é seu principal leitor. Lê para si e para o leitor imaginário. O consolo é que o leitor passa e o livro fica.
Há escritores que têm vitrina, coluna diária ou semanal em jornais, TV ou revistas. São convidados a proferir palestras por serem conhecidos. Repetem quase sempre as mesmas ideias. Isto pouco importa aos leitores que os ouvem. A presença deles é mais que o livro e mais do que dizem. É o fascínio da pessoa que escreve pensamentos muito próximos dos do leitor. O leitor não disse, mas pensou. O escritor disse o que o leitor queria dizer e, agora, com o livro na mão confirma sua afinidade com o escritor.
Quem são os milhões de leitores que não disseram, mas pensaram o que Paulo Coelho escreve?
Quem são os leitores de Machado de Assis que se enamoram da voluptuosa Capitu e querem saber se ela traiu o escritor ou os leitores.
Quem são os leitores de Clarice Lispector que esperaram a vida inteira pela Hora da Estrela ou não tiveram tempo e ânimo para escrever o Livro dos Prazeres maldesfrutados?
Quem são seus leitores, meu caro e desconhecido escritor? Descubra-os. São poucos talvez, mas eles pensaram o que você disse em nome deles.
Dias passados, um de meus 40 leitores telefonou para comunicar-me que acabara de ler um capítulo _ VISTO DE CIMA − de meu livro A Saga de um Sítio. Comentário do leitor: “parecia-me estar ouvindo uma sinfonia de Tchaikovsky”.
Por isso, caro escritor e poeta, não estranhe se algum leitor desconhecido ou anônimo o tome por músico.
As palavras, surpreendentemente, se disfarçam de notas musicais.

Nota: Meus livros (romances) A saga de um Sítio, O Homem proibido, Em nome do sangue e As pedras de Roma, estão disponíveis a preços módicos no eugeniogiovenardi@gmail.com

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

PAÍS EMERGENTE I

O Banco Mundial, auxiliado por organismos da ONU, para não humilhar os países denominados francamente atrasados em aspectos essenciais como educação, saúde, comunicação, tecnologias, indústria e comércio, deram-lhes outras classificações: Terceiro Mundo, Subdesenvolvidos, Em Via de Desenvolvimento e, agora, Emergentes., candidatos às primeiras potências.
Visitei a Noruega, há poucos anos, percorrendo-a de norte a sul, em ônibus e trens confortáveis e pontuais, Não há primeira classe nos trens da Noruega. O Rei e o súdito têm os mesmos direitos ao conforto e à pontualidade. Aquelas montanhas com picos nevados olhando para fiordes belíssimos, não são fáceis de tratar. Perdi o número e o comprimento dos túneis abertos na rocha que ônibus e trens enfrentam durante as horas de travessia do país. Para qualquer lado que olhasse, a Noruega parecia-me uma casa terminada, com móveis por dentro e jardins por fora. Tudo parecia ter sido pensado, planejado e executado ou em execução com firme decisão de terminar. Cito apenas um serviço entre as dezenas que se necessitam e se usam constantemente num país. É um detalhe dos tantos que fazem parte do que se denomina a torto e a direito “qualidade de vida”. Em todas as estações de ônibus e trens, as escadas para uso dos passageiros foram substituídas por rampas a fim de facilitar o trânsito de crianças, mulheres, idosos, deficientes físicos e o deslocamento de bagagens.
Um país que emerge das profundezas obscuras da política, da economia, das normas jurídicas, não sabe se mostra as raízes silenciosas de seu povo ou a cabeleira desgrenhada de quem desperta sobressaltado de um sonho provocador. Ora expõe um braço pedindo socorro, ora o nariz para respirar as brisas que sopram de todos os quadrantes. A luz o fascina e ofusca, percebe mal o mundo exterior que se agita sobre sua cabeça. O mar em que flutua o mantém semi-submerso. Debate-se enfrentando ondas que suas forças ainda insuficientes não lhe permitem grandes avanços Um país emergente é um corpo indefinido, inacabado, não consegue mostrar-se por inteiro. Difícil adivinha se surgirá um monstro, um fauno, um Adônis ou um Davi. Precisa de um escultor que lhe defina os traços.
Num oceano coalhado de monstros, uns velhos e experientes, outros jovens e afoitos, um novo ente político pode ter a sorte ou o destino de agarrar-se a um deles, subsistir e até dominá-los. Ou permanecer indefinidamente a meio corpo, inacabado, com uma das partes submersa e invisível. Ou submergir à espera de escafandros que lhe deem em doses homeopáticas as pequenas pílulas da sobrevivência.
PAÍS EMERGENTE II

O Brasil, país emergente, com belíssimas praias e antigas florestas, carnavais sexiluxuosos e deslumbrantes, tem mania de lançar programas que se acavalam uns sobre outros, de inaugurar o começo de obras sem a real intenção de terminá-las. Grande número delas fica incompleto e ameaçado de ser modificado no meio da execução ou interrompido pela fiscalização quando é chamada a intervir por motivos menos nobres.
Vou me restringir a obras no Distrito Federal para dar oportunidade aos que vivem no Maranhão, no Piauí ou em Santa Catarina de comporem o rol das obras visíveis e inacabadas, já inauguradas e em uso precário.
− Começo com o projeto de urbanização da orla do Lago Paranoá para livre circulação e repouso dos brasilienses. A execução da obra esbarra nas cercas e molhes para atracação de barcos, edificados por cidadãos invasores, educados e pudentes, no tráfico de influência e nos trâmites dos processos judiciais que opinam em favor dos privilegiados.
− Alguns Postos de Saúdes foram construídos, na periferia de Brasília, com determinação de funcionamento “24 horas”, a fim de desafogar os hospitais superlotados de pobres malnutridos. Em pouco tempo, já não abrem no período prometido por falta de médicos, enfermeiras ou material de urgência.
− A rodovia BR 060 que liga Brasília a Goiânia – obra do Governo Federal − cuja duplicação dos 210 quilômetros estendeu-se por quase 15 anos, em menos de um ano de uso apresentou falhas graves e sofre permanente operação tapa-buraco. Acrescento um detalhe pouco observado pelo cidadão de país emergente: lixo e lixões dormem ao longo da rodovia. No km 30 da rodovia mencionada, no coração da Agrovila Engenho das Lajes, um monstruoso e desnecessário viaduto destruiu criminosamente a paisagem local. Os moradores da comunidade vêm solicitando sem conseguir, durante duas décadas, uma simples passarela para o trânsito de crianças nos horários escolares e uso dos serviços públicos localizados em ambos os lados da rodovia. No km 10 da mesma rodovia, dezenas de máquinas começaram operações de terraplanagem sem que se soubesse a finalidade, logo após a inauguração da duplicação da autoestrada. Um segundo viaduto, de prioridade absolutamente duvidosa, foi se erguendo. O efeito prático desses e outros viadutos é gastar o orçamento, contratar grandes empreiteiras com fins de financiamento eleitoral iminente, usar máquinas compostas por toneladas de ferro para incentivar a indústria, gerar uma centena de empregos temporários, chatear o cidadão e deixar obras inacabadas durante anos.
− A classificação do lixo urbano começou com uma demonstração de força publicitária, envolvendo artistas e estrelas do marketing, exibindo as características de um povo civilizado na capital da república e oferecendo um exemplo-modelo a ser exportado ao resto do mundo. Vá alguém constatar o que o cidadão brasiliense, exemplo de cidadão civilizado aos olhos do Cazaquistão ou da Bolívia, coloca nos contêineres do lixo orgânico ou seco.
Esses quatro exemplos são miniaturas do que não se vê num país emergente. A lista de obras inacabadas é constrangedora, mas é ocultada pela alta tecnologia de “inclusão digital”, pelo fantástico número de celulares por habitante e pelos novos 150 carros matriculados por dia, em Brasília, enfrentando repousantes engarrafamentos e falta de estacionamento. Ampliar e melhorar o transporte público são prioridades secundárias para um país emergente e uma capital às vésperas do cinquentenário com seu governador na cadeia por corrupção ativa.
Um país do tamanho do Brasil, com regiões tão distintas e uma população tão grande e diversificada, move-se lentamente, retardado por governos que programam sua administração tão provisória quanto o tempo de que dispõem para governar.
Raríssimos são os projetos do plano de um governo que se estendem por mais de um período administrativo. E raros são os governos que não mudam a direção das prioridades anteriores no início de cada quatriênio.
Todos sonham burilar no mármore o corpo escultural de um Davi, mas nem sempre se dispõe da força do pensamento artístico de um Miguelangelo.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

ÉPOCA FÉRTIL

Os últimos anos da política brasileira têm sido férteis de motivos e temas. Tão abundantes que as canetas, os computadores e jornais, revistas e canais de TV não têm tempo de recolhê-los à medida que aparecem. Uma safra de escândalos, de mentiras ditas como verdades, de bravatas, palavras chulas em eventos públicos, estatísticas manipuladas, crises escondidas sob um rosário de regalias não deu descanso a analistas, jornalistas, cronistas, chargistas de todos os matizes. Tudo isso se soma ao farto noticiário de país do terceiro mundo, milhares de mortes no trânsito, assassinatos e carnificinas nas favelas, desaparecimentos e roubos em série.
Houve época em que os dias corriam chatíssimos. Raras notícias, tempos sisudos, silêncios longos e, de repente, um escândalo grosso, um desvio monumental de dinheiro público escorrendo do INSS, da Receita Federal, do Banestado. Levava-se meses digerindo essa mesma feijoada, rançosa, enjoativa, até esquecida por falta de interesse e apetite.
Hoje, não é assim, como lembra Pedro de Montemor. Mensalões de todos os ideários políticos atacaram as esquerdas mais severas, ideológicas e revolucionárias. Mancharam os sisudos representantes do centro equilibrista e os moralistas impolutos e verticais da direita.
Nosso Presidente é o condutor dessa orquestra de bumbos, trombones, pratos e trombetas. De um estrado aéreo, movimenta as platéias de Porto Alegre, do Vale do Jequitinhonha, do Cariri e do Cazaquistão, auxiliado pela viradora de páginas às vezes confundida com o pianista.
É uma época fértil de mentiras, de blefes, de explicações sibilinas, de distinções maquiavélicas na constante tentativa de justificar erros como se fossem acertos premeditados. Há uma compulsão para a mentira que nasce da prática da negociação em que os negociadores mentem para chegar a um acordo. Mente-se na apresentação de números, escondendo parte deles. Mente-se nos dados do currículo profissional, na informação de obras programadas, no montante do dinheiro aplicado, confundindo-o propositalmente com o deferido. E a safra de anedotas continua sob um tempo favorável, enchendo ruas, estradas, portos, aeroportos, centros comerciais, jornais, revistas, TV.
Alhos e bugalhos entopem os celeiros mentais do eleitorado nacional. Não há que estranhar se estamos comendo gato por lebre,, sapo por rã e caviar de bagre. Somos uma sociedade mentalmente obesa à força de engolir sofisticadas receitas de pratos caros e malcozidos.
Depois de voltar de um périplo por países de cozinhas exóticas, o chefe do restaurante Bodinho de Ouro, farto de tantas iguarias de nomes esquisitos, desejou ardentemente voltar ao prato de feijão e arroz com salada de tomate e sabor de culinária verdadeira.

O NARIZ DO REI

Já foi dito por uma autoridade bem conhecida que homens públicos, políticos profissionais que se envolveram em acontecimentos importantes da pátria, não podem ser tratados como pessoas ordinárias, mesmo cometendo atos imorais e perdulários nos cargos que atualmente ocupam. O ladrão de ontem é a pessoa extraordinária de hoje sem nunca ter sido preso.
Diante dessa declaração, Pedro de Montemor, em nossa caminhada matinal, comentava que a justiça tem um dos olhos cegos. O olho bom é para ver os grandes feitos do homem público. O olho branco é para não ver os deslizes cometidos.
Dizem que a filosofia de vida do inglês é prestar atenção às duas faces da moeda. Numa das faces está a cara e, na outra, a coroa. Levado pelo preconceito, admirando o ouro maciço, as esmeraldas e os diamantes incrustados na coroa, um súdito pode considerar que esse símbolo do poder não fica bem na cabeça do rei com cara feia e nariz longo. A multidão de súditos, ao passar o rei ou a rainha, aplaude e a maioria aprova a beleza da coroa não importa a cabeça que a sustenta.
− Poucos ousariam dizer, consentiu Pedro de Montemor, parando na sombra de um pequizeiro, que o rei tem cara de cavalariço com nariz alguns centímetros além dos narizes normais. Mas a multidão que recebe do rei o sorriso e a vênia de respeito astucioso não vê o tamanho do nariz. Os olhos dos súditos não descem da coroa ao nariz. Ficam nas esmeraldas e nos diamantes.
O preconceito de que a cara e o nariz devam ser proporcionalmente tão belos quanto a coroa impede e reprime o pós-conceito. Daí a máxima popular dos saxões: quem vê coroa, não vê cara. Por isso, nossas autoridades políticas abusam da coroa. Se algum súdito, baseado em pós-conceitos, protestar diante do desperdício de esmeraldas e diamantes, é acusado de preconceito contra o tamanho do nariz.
Ao final da caminhada, Pedro de Montemor, olhou para a Esplanada dos Ministérios, onde se guardam as coroas do poder e refletiu sem ânimo:
− Nossas autoridades exageram no tamanho do nariz, mas a coroa dourada impede o pós-conceito dos súditos contentes de terem visto as esmeraldas, os diamantes e o sorriso do rei.
Os amigos do rei e seus serviçais defendem o tamanho do nariz real e veem nele a expressão mais sublime da estética. Têm pela protuberância respiratória veneração religiosa. O nariz real se torna um modelo para os narizes dos súditos. Já não é possível sair à rua sem o prolongamento do nariz, peça que se adquire em qualquer esquina. Apresentar-se com um nariz normal soa preconceito diante de 80% que já prolongaram o seu. Só um nariz grande justifica uma coroa dourada revestida de esmeraldas e diamantes.
Rir do crescimento do nariz do rei por um impulso antiestético do pós-conceito pode ser visto como preconceito contra o nariz normal de Pinóquio.

CONFUSÃO MENTAL

Fui à ótica receber os óculos que havia encomendado a dez dias. A conversa se encaminhou para a ecologia em razão de uma frase dita pelo atendente. “Por onde passam, os gaúchos deixam desenvolvimento agrícola”. Disse isso para me agradar, sabendo que minha origem é do Sul. Opus-me à simplificação e retruquei: “desenvolvimento e desmatamento radical”.
Mostrei ao atendente, piauiense, que existem processos de produção agrícola menos devastadores do que os praticados por gaúchos nas regiões do Cerrado, incluindo Maranhão e Piauí. Lembrei os corredores vegetais preservados entre áreas de plantio o que permite reter parte da água da chuva e proteger o solo contra a erosão.
Um assunto puxa o outro e a conclusão dos argumentos que fluíam é desanimadora. Ouvem-se e repetem-se números ouvidos e vistos em jornais, rádios e TV, como verdades absolutas. Números que sobem e descem, contraditórios, simplificados, para manter alta a autoestima da economia consumista.
Os governantes, com sua maleável retórica verbal e informativa, conseguiram convencer o cidadão brasileiro que estamos no melhor dos países porque mais pessoas consomem, melhoram a casa, comem mais, o número de pobres subvencionados aumenta e a classe média se expande à base de dívidas bancárias. Estamos melhor hoje do que ontem, como se isso fosse novidade. Há os que imaginam que, até poucos anos atrás, a indústria, o comércio e os governos que se sucederam trabalharam coordenadamente para regredir. Felizmente, avançamos. Talvez não nas áreas em que a desigualdade pudesse diminuir mais rapidamente: educação e saúde.
O governo e a sociedade industrial e comercial, obedecidos pela imprensa, instalaram na cabeça dos cidadãos, cujo conhecimento da aritmética não saiu do grupo escolar, o princípio de que o sonho se realiza com mais dinheiro no bolso e emprego com carteira assinada. Infelizmente, os doutrinadores e os promotores da euforia econômica não têm tempo para uma longa e minuciosa conversa com a diarista que toma dois ônibus para chegar ao trabalho ou conhecer a casa e o bairro onde mora. Ou, menos ainda, uma visita a um agricultor familiar para saber qual é o preço real que recebe por seu produto.
O mais grave é que essas informações estraçalhadas em números incalculáveis e percentuais misteriosos levam de roldão pessoas que comprovam ter concluído curso universitário.
É óbvio salientar que, nos últimos 15 anos, houve e está havendo melhora quantitativa nas condições de vida da maioria do povo brasileiro embora com graduações diferentes. Não se poderia desejar ou esperar que o Brasil andasse para trás, sendo empurrado para frente pelas economias desenvolvidas do resto do mundo. Ainda assim, temos pobres demais, sem perspectivas de melhoras substanciais para eles nesta geração..
O que se esperava e se desejava com a subida de dois governos esquerdistas – assim ditos −é que o país caminhasse no rumo de substancial e inequívoca melhora qualitativa e democrática baseada na educação pública em todos os níveis sociais e não somente para um pequeno grupo de privilegiados, com artifícios políticos e propaganda eleitoral. Educação primária, secundária, supletiva, profissional, informal e formal, que promovesse não só a compra e a operação mecânica do telefone celular, como também rudimentos eletrônicos de seu funcionamento.
Do ponto de vista qualitativo democrático pode-se afirmar que o país regrediu. Temos imensos estoques de tecnologias em universidades e empresas e a mais crassa ignorância em vastas camadas da população. O desinteresse crescente pela ação política das novas classes sociais, a aceitação quase fatal da corrupção e impunidade nas altas esferas do legislativo, judiciário e executivo estimulam que os alvos do cidadão se fixem nos aspectos do conforto econômico ou se alimentem de subprodutos da cultura..
As escolas não ensinam a pensar nem dão aos alunos instrumentos para operar a razão no dia a dia. Tudo se encaminha para o emprego com carteira assinada, qualquer que seja o trabalho oferecido. Meu mestre de ética respondia, há quarenta anos, sobre soluções a questões importantes ou necessárias: “também isto, mas não só isto.
O próximo governo tem ali, diante dos olhos, itens para compor um vasto programa capaz de impulsionar o desenvolvimento qualitativo do cidadão e garantir o desenvolvimento quantitativo e equilibrado dos bens úteis ao conforto do cidadão sem devastação ambiental e sem confusão mental.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A MORTE

Pertenço a uma geração que chega, passo a passo, ao limite de vida conseguido pela espécie humana. Uns, mais jovens e outros, mais velhos do que eu, já morreram.
Deste ponto limite, desta linha de chegada, como os corredores, pela lei da inércia, embalado pela velocidade, pode-se passar. O prêmio da competição é para quem chegar primeiro à marca estabelecida.
A marca da morte, porém, é invisível, inextinguível e intransponível. Quem a pôs naquele lugar e naquelas circunstâncias é um assunto do destino.
Alguém está preparado para morrer? Mente quem afirme que está e não tenha medo da morte.
Tenho voltado ao tema em conversas com Pedro de Montemor. Manifestei-lhe que encaro a morte em meus pensamentos e ela sempre me convence. Vejo-a a alguns anos na frente. O desejo de viver a empurra para diante. Aceito a contagem dos anos e admito que, dentro de 20 anos, estarei morto. Mas não estou preparado para morrer agora, nem quero preparar-me para uma luta e um debate do qual sairei perdedor.
Lamento apenas que a morte não seja um problema meu quando me cortar a vida. É para outros que se dá preocupações quando se morre. Além da tristeza, das lágrimas e do caixão, outros terão que enterrar-me ou cremar-me.

VELHO TAVARES

O velho Tavares, enfraquecido pelo tempo, sentiu o próprio fim ao ver e ouvir sinais vibrantes de vida de inquietas crianças e jovens exuberantes.
Em seu vilarejo, que se tornou depois grande cidade, era bem conhecido pelo número de mulheres que amou, pela voz de solista nas festas da igreja e da política ao interpretar canções populares e, também, pelas bebedeiras festivas que animava na praça. Não havia aniversário, casamento ou enterro em que o popular Tavares não estivesse com sorrisos ou lágrimas.
Foi prefeito durante muitos anos, eleito e reeleito por brancos e negros, ricos e pobres. Sabia dar a uns e a outros na medida certa e já não via quem pudesse tomar seu lugar na prefeitura. Havia quem dissesse que, sem ele, a cidade viraria um caos. As cidades vizinhas o queriam como prefeito e o recebiam como a um ídolo de futebol que vai salvar todos os clubes do mundo. E ele mesmo se oferecia para resolver problemas com um linguajar espontâneo, com soluções nunca antes conhecidas e expressões vulgares que qualquer frequentador de boteco compreende. E problemas não faltavam. Era a fome de uns, enchentes que inundavam cidades, banqueiros que precisavam de reforço de caixa, ladrões que ousavam roubar o que encontrassem na prefeitura, amigos que repartiam cargos e dinheiro sem que a polícia desse jeito.
O velho Tavares ia chegando ao fim. Voltou para casa cansado de tantas viagens e, pela primeira vez, percebeu a desordem nos quartos, na sala, goteiras no telhado e buracos no piso. Com sua vida agitada, raramente dormia em casa. A mulher nunca demonstrou habilidades domésticas e as serviçais iam jogando sujeira embaixo dos tapetes. A casa estava desordenada e cada empregado fazia o que lhe dava na cabeça.
O aniversário de 80 anos do Tavares foi festejado com farta bebida e boa comida da cozinha popular que o deixou remoçado. Acordou cedo, chamou a mulher e os serviçais, traçou um plano de arrumação da casa: trocar metade do telhado, refazer o piso da sala, por mármores do Espírito Santo, arrancar os tubos de esgoto, substituí-los por manilhas de 200 milímetros, refazer a rede hidráulica, substituir as torneiras de ferro das pias por outras banhadas em ouro, colocar vidros fumê nas janelas e pintar a casa por fora. Deu prazo de oito dias para o cumprimento do plano sob a coordenação da camareira.
A única obra que não conseguiu realizar antes de morrer, poucos meses depois, foi mudar a cabeça dos serviçais e, muito menos, substituí-los por outros menos displicentes.

PAU SECO

Caminhava pelo Cerrado, entre as árvores grossas e intumescidas de águas, muitas delas retorcidas pelo flagelo do fogo, outras, eretas e elegantes, ainda não perturbadas pela mão ávida do homem.
Tocava nas folhas, examinava a casca escura sempre atento ao que as árvores diziam umas às outras. Os ramos sacudiam ao sopro do vento, outros vergavam ao peso do bem-te-vi ou riam das bicadas do pica-pau.
De braços desnudos, um pau-santo erguia-se no ar. Perguntei-lhe a que servia uma árvore seca no meio de tanto verde. Ele me respondeu:
−Pássaros apreciam pousar nos meus braços secos e nus. Lá de cima podem ver ao longe, acompanhar o voo do companheiro ou vigiar o gavião que lhe ameaça comer os filhotes. Debaixo de minha casca, há comida que alimenta o pica-pau e, entre os galhos, as aranhas armam suas tocaias para caçar insetos desprevenidos. Um dia, o vento me derrubará e, com os anos, vou sumindo nas raízes das árvores verdes. Eu serei elas amanhã.

LOU SALOMÉ

Leio a Biografia de Lou Andreas-Salomé, depois da leitura de Quando Nietsche chorou (Irvin D. Yalom). Uma sequência lógica.
Os primeiros passos na descoberta de si mesma originam-se, como eu também havia percebido, na consciência da perda e do abandono ao ser expelida com força, com dor, mas também com sentido maternal de apropriação da nova vida. Expulsão, por um lado, dependência, por outro. Ligação profunda à mãe, apego traduzido por amor. Expulsão à força, seguida do medo de perder a continuidade de si como mãe une-se ao medo do ser expulso de não sobreviver sem ela. O ser expulso e reapropriado se torna dependente do sustento, do poder do afeto, da ligação umbilical.
Mas alguém, superior e mais forte, um ser poderoso e absoluto, nasce no expulso, substitui a mãe e andará com ele o resto da vida. Sente necessidade dele e estará sempre temeroso de não encontrá-lo ou de não ser aceito por ele. Ter sido expulso do conforto seminal e jogado às incertezas da vida solitária provoca o nascimento do complexo de culpa como se tivesse recusado permanecer no paraíso. Esse sentimento de perda o induz a pedir perdão por nadas. Perdeu seu lugar original e leva essa perda como culpa original, base da religião cristã. Fomos simbolicamente expulsos do paraíso e teremos que ganhar o pão com o suor do rosto. A solução final é morrer e ressuscitar numa outra vida. Em outras palavras, libertar-se da culpa de ter sido expulso do ventre materno e aceitar o funcionamento das leis da vida que pulsa em cada ser de forma variada e singular.
A macieira produz maçã. A pessoa, a espécie humana produz palavras e sentimentos.\É o único ser que se realimenta dos próprios produtos e que podem levá-lo à convivência pacífica, à antropofagia social e ao desaparecimento.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

ESTE É O CARA

Barak Obama ( O Obama − na intimidade informal de nosso Presidente), ao cumprimentar Lula, numa reunião de presidentes do grupo dos 28, disse: this is the man. Nosso Presidente, que não distingue inglês, recebeu a tradução simultânea em linguagem popular − este é o cara − frase que os jornais do Brasil estamparam com euforia e orgulho.
Por que Obama o definiu tão curta e cabalmente? De todos os presidentes de países capitalistas que se congregaram na Inglaterra para salvar o capitalismo global das trapaças financeiras, o mais sincero e convicto defensor do regime capitalista era o cara Lula.
O capitalismo, dizem os cardeais da economia, não quer e não gosta de pobres. Não! Ele gera pobres, mas tem solução para eles: dar-lhes as sobras do capitalismo de mercado ou de Estado. Os pobres, com essas sobras, podem ajudar o capitalismo comendo pelas bordas.
Um dos princípios elucidativos difundidos por gestores do regime da iniciativa privada empresarial que justificam as relações de convivência entre o capital e o trabalho é que os pobres se contentam com algo mais que nada. O ponto de referência é o zero. Um salário mínimo dividido entre cinco membros de uma família é igual a três reais por dia, muito mais que zero. Comem mais, não importa o quê. Endividam-se para comprar artefatos da moda, melhorar o telhado da casa, pôr a geladeira na cozinha e a TV na sala. Não há porque privar os pobres dessa felicidade de ter o que todos têm. Não ter é uma condição humana demasiado cruel. Os créditos impagáveis, no entanto, dão lucro aos bancos que receberam dinheiro gratuito dos depositantes particulares e oficiais, isto é, tutu dos impostos, sabiamente gerenciado pelas financeiras.
A indústria e o comércio se expandem. As estatísticas cooptadas informam milhares de contratações com carteira assinada - um dos sonhos do brasileiro − mas não deduzem os outros milhares de demissões para não revelar que é esse o jogo do capitalismo: manter os salários baixos.
Lula é o cara, diz Mailson da Nóbrega, que soube astutamente, contra seu partido e as forças renovadoras, preservar e manter, estimular e aperfeiçoar as instituições capitalistas rumo à quarta potência mundial.
Lula é cara, posto na condução do governo, em conchavo com Bush, para desmontar as organizações populares que poderiam construir a democracia participativa e garantiriam o controle da máquina pública e privada de prestação de serviços à pátria e a seus cidadãos.
Lula é o cara que, em conseqüência desse desmantelamento das forças organizadas, abriu as portas à corrupção agressiva e insaciável, aos compromissos e alianças com grupos retrógrados e corrompidos. Agita bandeiras próprias do capitalismo, jogando sobras às multidões famintas, mas mantendo-as incultas e fora do poder das decisões democráticas. As multidões comovidas agradecem fielmente. Elas, hoje, tem mais do que nada.
Lula é o cara que, astuciosamente, soube ser bafejado pelos de cima e amado pelos debaixo.
Lula é o cara que construiu seu próprio pedestal solitário, erguido no deserto político de areias movediças.
Lula é apenas um cara.

AS CINZAS DE ERNESTO SILVA

Lá se foi um de nossos guias de Brasília. Silva temia mais a bomba da explosão demográfica do que a da bomba atômica. Pressentia e receava que o intumescimento de Brasília arrastasse atrás de si o descontrole da administração de um projeto urbano artisticamente monumental e marco de uma nova civilização.
Primeiro presidente da empresa Novacap, se fosse desonesto, teria palácios no Lago Sul ou apartamentos de cobertura. Sóbrio e sábio, contentou-se com o necessário conforto de um apartamento na 105 Sul, no Plano Piloto.
Amigo de Juscelino Kubitschek, de Lúcio Costa e Oscar Niemayer, nunca pleiteou posições e cargos. Cumpriu com dedicação e até com devoção sua função de servir à cidade e aos cidadãos, promovendo escolas para todas as crianças do Distrito Federal.
Educação era o alvo. Silva insistiu no aprimoramento das escolas e dos professores para manter lúcida a história da saga brasiliense. E o Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal se tornou o laboratório desse aperfeiçoamento. Fê-lo com a convicção de que a educação consolida a cultura, a civilização e a democracia participativa, elementos que dignificam o cidadão.
As vozes vão se perdendo no tumulto e sumindo na multidão alienada. Os gritos voam entre montanhas de prédios e se escoam por avenidas estéreis. E as bocas dos que ainda podem gritar se paralisam abertas esperando o eco.
Ernesto Silva preferiu as cinzas à podridão do túmulo. Das cinzas, ele e nós renasceremos.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Cidadão Ernesto Silva

O cidadão Ernesto Silva, médico e educador, faleceu aos 95 anos, em 04 de fevereiro de 2010. Conheceu Brasília desde os decretos que autorizaram a construção da nova capital. Acompanhou Juscelino Kubitschek durante a ocupação do espaço onde surgiu a cidade-arte. Foi um dos paladinos em defesa do patrimônio cultural da humanidade. Um homem simples, sincero, sagaz, satírico, sábio. Não esmoreceu para não desmerecer.
Não fez concessões aos que pretenderam, desde o início, adaptar Brasília à ganância individual e aos interesses da expansão imobiliária a qualquer custo.
Brasília foi construída para divertir os artistas do urbanismo humano, promover as facilidades do planejamento e da administração do país e cultivar o ambiente propício ao exercício do poder democrático.
Brasília, para Silva, é um projeto urbanístico estabelecido com princípios,, normas e preceitos que a distingue de outras cidades. Sempre defendeu o projeto original, sem opor-se às adaptações coerentes nele implícitas, mas não aceitou imposições artificiais mesmo vindas de arquitetos famosos e com preferência na apresentação de novos monumentos.
Silva morreu contrariado com as contínuas agressões cometidas pelos vândalos da construção civil, promotores da futura bolha imobiliária que atingirá a capital do país.

MORRE ERNESTO SILVA

Cidadão Ernesto Silva. Você é o homem de Brasília. Simples, sincero, sábio. Educador de gerações, ensinou-as a não fazerem concessões à ganância e aos interesses individuais que agridem o patrimônio cultural da humanidade. Você lutou sem esmorecer para não desmerecer.

Eugênio Giovenardi
Acadêmico do IHG/DF

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

DESGRAÇAS

As chuvas continuam caindo e os morros, aqui e ali, soltam-se e descem arrastando árvores e casas. O solo que se formou e aderiu à rocha, não muito profunda, foi povoado pela vegetação rasteira e por árvores que enfiaram suas raízes nas fendas até onde sua força pôde. O trançado das raízes forma uma camada subterrânea compacta e unida. É sua garantia de firmar-se sobre as encostas. Alterando e cortando essa trama invisível, ameaça-se a estabilidade do conjunto. A terra encharcada amolece e escorre como lama. As raízes das árvores se desprendem parcialmente e os troncos pesados e a ramada carregada de milhares de litros de água, empurrada pelo vento e sugadas pela lei da gravidade tombam e despencam ladeira abaixo.
É um fenômeno universalmente conhecido. Slavina, na Itália, avalanche, na França, se assemelham aos deslizamentos de nossas encostas. Esse fenômeno pode ser agravado e até ser causado pela inadequada ocupação do solo e exploração das riquezas naturais, possíveis de serem utilizadas pelo homem.
Os conhecimentos geológicos permitem determinar o quanto se pode explorar e onde ao homem convém fixar-se e construir seu abrigo com segurança. Em outros tempos, o instinto, a percepção e a observação eram suficientes para desaconselhar o homem a estabelecer-se em áreas ameaçadas de inundação. Hoje há leis sábias e orientadoras que o cidadão ignora por displicência.
Escolher o lugar de sua casa apenas pela beleza do lugar ou por não ter outra opção, premido pela necessidade e pobreza, sem o conhecimento do solo onde pisa é entregar-se ao acaso, à sorte e à força da Natureza, cujas leis implacáveis funcionam sem descanso.
É comum, diante da casa e da lavoura destruídas, as pessoas entrevistadas expressarem seu desespero e frustração: “Levei 30 anos para juntar economias e levantar minha casa e, em dez minutos, perdi tudo”.
A decepção é compreensível. É próprio do ser social comunicar-se por aquilo que possui e menos por aquilo que é. Quem passa, vê a casa grande ou a choupana. Ao lado de uma, pode estar um carro de luxo, protegido por grades e cães. Ao lado de outra, apenas uma carroça, um cavalo magro e um cão dormindo na porta. Nosso respeito se manifesta pelas aparências que escondem o ser que ele é. A pessoa que perdeu seus bens materiais acumulados com trabalho, dedicação e astúcia, sente-se nua, traída e, de repente, igual ao pobre da choupana por onde a lama não correu. Humilhação, castigo, falta de sorte, vingança de Deus. Há, nessas ocasiões, pessoas que interpretam a ação divina de forma discricionária e discriminatória. Matou o vizinho e me poupou. Que teria Deus contra o vizinho? Os que não foram mortos por Deus tomam o fato como milagre. Naquele momento ele estava olhando só para eles.
A vantagem dos mortos sobre os vivos é que não precisam mais se preocupar em construir nova casa e se endividar em bancos ou ser reféns da burocracia política.
O fenômeno natural é eivado de pequenos acasos e tem aspectos seletivos. A intensidade, a extensão, a velocidade e a direção de um deslizamento não são lineares. A enxurrada arrasta uma árvore e não derruba outra. Atinge parte da casa e, outra, não. Ocorre quando pessoas ocupam o lugar e, como se viu, outras estavam fora ou saíram a tempo.
O fenômeno natural não tem preconceito. É movido por leis físicas, Derruba a casa que estava em seu caminho e poupa a pessoa que trabalhava ao lado. A casa das pessoas vivas pode ser reconstruída pelos vivos e só lhes resta enterrar os mortos.
A força, a coragem, a criatividade das pessoas que construíram as casas derrubadas pelo acidente natural ainda permanecem neles. Essas circunstâncias são propícias para distinguir o ser do ter e perceber que ambos são frágeis diante de forças desconhecidas, regidas por leis conhecidas.
A dor, a tristeza, a frustração por perdas materiais tocam no orgulho e vaidade do ser inteligente porque ele toma o infortúnio como derrota pessoal, Sente-se humilhado pelo mais forte como se estivesse no ringue. “Por que eu”? Em outras palavras: “que morram os outros, não eu”!
Nesse momento, ele compara os 30 anos de trabalho, de luta, de astúcias E de artifícios com os cinco minutos do tremor da Natureza que o escolheu para vítima da violência física. Jô, coberto de chagas, compreendeu a instabilidade da vida: “ela me deu, ela me tirou”.
Um conhecimento mais profundo da natureza e da vida, do espaço e do tempo pode repor as perdas ou mesmo evitá-las. O espírito de dominação, a ânsia de subjugar a natureza deve ser substituído pelo diálogo com ela, pelo conhecimento das leis físicas que indicam o caminho da convivência e da precaução, não apenas a exploração de suas riquezas. Do conhecimento à sabedoria o passo é longo, lento e difícil.