domingo, 26 de abril de 2020

APARELHAMENTO


APARELHAMENTO

Todo chefe de governo aparelha sua casa.
Aparelhei a minha.
- Indiquei chaves generalizadas de segurança nas portas e, ao lado, um frasco de álcool em gel.
- Decretei sabão ecológico nos quatro pontos de limpeza.
- Constituí auxiliar de emergência o papel higiênico, apesar de enrolado.
- Ordenei janelas abertas para a paz universal.
- Designei os livros das quatro estantes como forças de prontidão da liberdade de pensar.
- Estabeleci abastecimento diário ao abridor de garrafas de vinho.
- Determinei o distanciamento entre cadeiras, nem tão longe que pareça fuga, nem tão perto que soe provocação.
- Ordenei ao computador que transfira o valor semanal de emergência à conta da diarista ausente.
- Solicitei ao Animal Planet-canal 589- que me inclua no ciclo diversificado da natureza realista e fatalista.
Reservo-me a autoridade de desobedecer minhas decisões.

26.4.2020

terça-feira, 21 de abril de 2020

CARTAS DA PRISÃO - MÁSCARAS

CARTAS DA PRISÃO
MÁSCARAS
No Egito dos Faraós e na antiquíssima China, mais de cinco séculos a.C., cobria-se o rosto do defunto para espantar os maus espíritos invisíveis no momento misterioso da passagem para o outro lado. A palavra, conhecida hoje, pode ter origem árabe – maskharan – que significa palhaço. No século 21, com cara de palhaço, diante da dúvida e da incerteza, estamos espantando o mau espírito invisível: o V19. Somos atores de um teatro. Escondemos a identidade. Cobrimo-nos com máscaras diante de ameaça silenciosa e traiçoeira. A máscara nos faz heróis ou palhaços. Estamos travestidos como os atores das comédias, das tragédias e dos dramas gregos. Os atores usavam máscaras femininas e perucas coloridas para representar a mulher, então não permitida de atuar no palco. Nos famosos carnavais de Veneza, em plena Renascença, os cardeais, príncipes da Igreja Católica, acompanhados de suas concubinas, dançavam mascarados pelas ruas da Sereníssima antes de entrarem para as penitências da Quaresma.
Lembro o belo deus grego do vinho, Dionísios, cujas festas, em sua honra, se prolongavam por seis dias, fantasiados de máscaras de madeira, de argila, de couro ou folhas, com o propósito de esconder angústias e desesperanças. Devidamente mascarados, podemos driblar o novo coronavírus com um velho CORONAVINO Cabernet-Sauvignon, antes ou depois da sauna.
21.4.2020 ANIVERSÁRIO DE BRASÍLIA, MORO NELA HÁ 48 ANOS
O TRAÇADO QUE DEU CIDADE.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

CARTAS DA PRISÃO - NÚMEROS

CARTAS DA PRISÃO
NÚMEROS
Anunciam-se diariamente números de mortes causadas pelo V19, em vários estados do país. São números frios, longe de nosso isolamento impotente. Não se tem a real visão do que essas cifras significam, a não ser pela fila de túmulos abertos por retroescavadeiras. Tento pôr essa quantidade longínqua de pessoas mortas mais perto de mim. Hoje, me informam que o V19 já enterrou 2.462 pessoas. Olhei pela janela e pensei na quadra onde moro. Uma Super Quadra, como a 406 Sul, de Brasília, onde moro, tem 21 blocos, com 18 apartamentos cada, abrigando em média quatro moradores, num total de 1.512 pessoas por quadra.
O número de mortos, neste dia 19.4.2020, representa o enterro de todos os moradores da SQS 406 e quase metade da SQS 405. Se cada falecido se relacionava com apenas 10 amigos ou parentes, esse número afeta profundamente 24.620 pessoas.
Esse é o resultado inicial da devastação da pandemia que ainda não contagiou as autoridades do topo do governo cuja responsabilidade é cuidar da vida do seu povo.
19.4.2020
COVAS EM SÉRIE PARA OS MORTOS SEM DESPEDIDA.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

CARTAS DA PRISÃO - DIETA DE INSETOS


CARTAS DA PRISÃO

DIETA DE INSETOS

O homo sapiens está no planeta há 300 mil anos, depois de assistir à extinção dos Neandertais. Nossa sobrevivência dependeu da grande variedade de alimentos que a natureza nos ofereceu.  Não precisou, durante milhares de anos, ir a Paris para saborear escargots, caracóis, da família das lesmas, apreciados por gregos e romanos. Há milhares de anos, o homo sapiens alimenta-se de insetos. Um dos melhores aperitivos da Colômbia e países andinos são as hormigas culonas (nossas tanajuras) com cerveja gelada. Alguns jornalistas brasileiros horrorizam seus ouvintes e leitores com expressões que ridicularizam os hábitos primitivos de orientais – chineses, japoneses, africanos – por comerem morcegos, ratos, preás e pangolinos (tatus). A lista de insetos da dieta do homo sapiens é extensa e variada, muito antes da pizza e da macarronada, dos testículos de touro e do joelho de porco. Mais de 5 bilhões de homo sapiens aderimos ao boi e ao frango. Segundo a FAO, cerca de dois bilhões de homo sapiens têm, na dieta de proteínas e cálcio, gafanhotos, grilos e larvas de besouros. Da cochonilha se extrai o corante vermelho que se usa nos temperos das melhores cozinhas do mundo.
O Brasil oferece 135 espécies de insetos comestíveis para a dieta de diferentes populações regionais: himenópteros (formigas, saúva, tanajura), coleópteros (besouros), o bicho do tucumã ou larva de besouro, na Ilha do Marajó (o óleo desse bicho substitui a manteiga), cigarras, cupins, gafanhotos, bicho do coco (vive em coqueiro, babaçu e carnaúba). A vida se nutre de vidas.
A Jimini’s francesa comercializa barras de cereais à base de farinha de insetos, servidos nos aviões, além de petiscos feitos com insetos desidratados e temperados. Na Alemanha, a BugFoundation oferece ao homo sapiens hambúrgueres à base de soja e larvas de besouro. Uma concorrência desleal do homo sapiens com aves e lagartixas. A integração homo sapiens com insetos talvez seja a melhor vacina contra os velhos e os novos vírus que estão no planeta há 60 bilhões de anos.
(GRAWOBSKI, N. T. International Jornal of Food Microbiology, 2017, PESQUISA FAPESP, 290.)

Alta culinária de insetos, século 21, ano 2020, a la carte.
Imagem: três pratos – grilos, gafanhotos, larvas.
16.4.2020

quarta-feira, 15 de abril de 2020

CARTAS DA PRISÃO - DESPERTADOR


CARTAS DA PRISÃO


O DESPERTADOR TOCOU!
Comecei a me acostumar com a presença insistente do V19. Tenho simpatia por ele. Atua como despertador para um novo olhar sobre a vida. Já desenho, no meu cérebro, o rosto sério desse invisível hóspede. Certo, ele pode interromper minha vida. E daí? Tenho 85 anos. Se ele não me cortar os dias, não demora que outro agente o fará. A próstata, o coração, os rins pertencem ao grupo de risco e estão na fila de espera. E a fila anda!
Estou atento às mensagens deste vírus. Ele faz parte da natureza e nós estamos mergulhados nela. Somos parte de um corpo composto de milhões de seres interconectados: árvores, água, girafas, beija-flores, bactérias e vírus. Continuaremos no ímpeto de mudar o funcionamento da natureza? Não será tempo de compreendê-la? Adaptar-se às suas leis? Ouvi-la?
O V19 tem mensagem e missão ordenadas pela natureza. O despertador está tocando. É hora de acordar!
13.4.2020



quarta-feira, 8 de abril de 2020

CARTAS DA PRISÃO - PESTE DE ATENAS


CARTAS DA PRISÃO

A certidão de nascimento da vida, no planeta Terra, data de 4 bilhões de anos, segundo cálculos matemáticos. No currículo da vida, no conjunto da biodiversidade submetida à evolução, registram-se fenômenos extraordinários. Vão da reprodução normal, de anomalias monstruosas, de mutações surpreendentes à extinção definitiva de muitas espécies. Lembro alguns fatos marcantes: a passagem, há 300 mil anos, dos Neandertais ao Homo Sapiens, as eras das mudanças climáticas, dos vulcões ao degelo. A vida resistiu a todas essas mutações no curso desses 4 bilhões de anos. Na luta pela vida, cada ser tentou salvar-se, competindo, cooperando, atacando com virulência os seres mais fracos. Uns se impuseram pelo tamanho e pela força. Outros, com táticas guerrilheiras, se tornaram invisíveis para atuar. Entre esses estão bactérias e vírus. Esses invisíveis organismos fazem parte de um sistema de predação agregado ao corpo da biodiversidade. Este sistema controla o desenvolvimento, o crescimento e a extinção de espécies que integram a biodiversidade. Nos últimos cem anos, o homo sapiens atravessou várias guerras contra os diferentes vírus. Além de duas guerras mundiais provocadas pelo grande predador – a própria espécie humana – com milhões de mortes. O historiador Tucídides, no livro História da Guerra do Peloponeso (430 a.C), relata a Peste de Atenas, Praga de Atenas ou a Peste do Egito, ocorrida durante o cerco das tropas espartanas, dizimando quase um terço das tropas atenienses sob o comando de Péricles. Atenas perdeu a guerra. A Grécia não desapareceu. Seus filósofos, dramaturgos, escritores, poetas estão em nossas bibliotecas.  O vírus19, surgido nos confins da China, circula silencioso por todo o planeta. O vírus passará.  A espécie humana aprenderá um pouco mais. Talvez se torne menor, melhor, mais sensata, mais sábia.
Nota:
O general Péricles evitou o confronto com as tropas espartanas, abrigando-se dentro das muralhas de Atenas-Pireu. A epidemia (provavelmente tifo) debilitou Atenas, levando Péricles à morte em 429 a.C. A epidemia matou grande parte da população e das tropas abrigadas em Atenas-Pireu.
O porto de Pireu, na Ática, é município vizinho a Atenas. É o principal porto da Grécia. A peste, originada na Etiópia, teria entrado a bordo de embarcações comerciais. A população de Pireu é estimada em 175.000 habitantes.
7.4.2020

CARTAS DA PRISÃO - CECÍLIA MEIRELES


CARTAS DA PRISÃO

AMIGOS,
A carinhosa poetisa Cecília Meireles,
antecipando-se à guerra contra o vírus 19,
deixou-nos, em versos, a solidão
que milhares de sobreviventes
não puderam dar aos que
desceram ao silêncio chão.

DESPEDIDA
Para mim, e para nós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
Quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? – me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras? – Tudo. Que desejas? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, tudo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão!
6.4.2020

segunda-feira, 6 de abril de 2020

CARTAS DA PRISÃO - TRANSMISSORES EM VIAGEM

CARTAS DA PRISÃO
AMIGOS,
O vírus 19 continua sua trajetória ascendente. Mantém a população confusa sobre seu modo de infestar a vítima. É um vírus enigmático. Algo está errado no hospedeiro original ou no anfitrião? Age solto e com sintomas erráticos. Pode-se andar com ele sem perceber sua presença. Cada vítima com seu companheiro de caminhada ou de túmulo. Os mais eficientes e eficazes transmissores do V19 são os que se deslocam de um lugar para outro. Os que visitaram museus na Itália, França, Espanha. Ou se encantaram com a muralha da China. Ou foram fazer compras em Miami. Os que enviaram selfies aos amigos diante do Louvre ou da catedral da Sagrada Família em Barcelona. Voltaram à Praça da Sé, às praias de Copacabana, à Esplanada dos Ministérios. Globalizou-se o vírus a bordo de aviões, navios e trens. Nacionaliza-se o vírus e superlotam-se hospitais, normalmente abarrotados por dezenas de outras doenças que o crescimento econômico estimulou, mas não incluiu em seus investimentos prioritários. Parece que, até agora, nos bairros pobres, acostumadas ao desemprego, aos baixos salários, à alimentação precária, ao aperto das casas, as pessoas resistem melhor ao vírus que infecta a classe média descontenta, pedinchona, mas sensível à solidariedade em tempos de catástrofes.
Selfie dentro do silêncio puro do Cerrado. Sítio das Neves, DF.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

CARTAS DA PRISÃO - CASA E CAVERNA


CARTAS DA PRISÃO

Amigos, a casa, desde as cavernas de nossos primos neandertais, é o lugar para se proteger das feras. Hoje, do vírus invisível. Saio de casa por extrema necessidade para ver as ruas solitárias e desertas. As árvores estão serenas e felizes, rodeadas de silêncio e livres dos gases tóxicos dos carros. Saio duas vezes por semana, por extrema necessidade de ver o Sol do outono correndo pelo céu azul de Brasília. Por extrema necessidade, saio à noite para ouvir estrelas e falar com Aldebarã. Saio por extrema necessidade para estar entre as árvores e pôr os pés no riacho cristalino do Sítio das Neves. As árvores falam. As águas cantam. São minha extrema necessidade. Em casa, na companhia de Hilkka, acompanho o rodar silencioso do planeta, aliviado da insaciável ganância humana. Nos longos dias, do quarto à sala e à cozinha, converso amigavelmente com o predador invisível. Sei que anda por perto. Sinto-me um cabritinho inexperiente observado pelo chacal faminto. Estar vivo é um milagre.