domingo, 23 de agosto de 2009

MOVIMENTO MARINA SILVA

O movimento Marina Silva Presidente é uma janela da qual se pode olhar o Brasil com nova esperança, tão vasta e resistente quanto a Amazônia. A hora é esta de expressar a inconformidade e sonhar com mais igualdade.
O poder autoritário estabeleceu a verdade linear, a interpretação única: existem pobres no Brasil e há que atendê-los sem abrir caminho para que saiam da pobreza social, moral e mental. Os capachos da estatística oficial enfeitam com números o bolo da festa e anunciam que tantos por cento deixaram os subterrâneos e romperam a linha da pobreza ou da miséria e entraram com o celular e a geladeira para o clube consumista dos centros comerciais da classe A. Tática de fortalecer o grande capital da indústria, do comércio, dos bancos.
Essa linguagem codificada de percentuais satisfaz os de cima e os de baixo. O axioma é simples: pertencer à classe consumidora é ter dignidade, cidadania e identidade, não importa o grau de ignorância, subserviência e conformação. E, assim, o pragmatismo da corrupção se instalou no poder.
O trabalho produtivo que dá à pessoa o sentido vital da criatividade, do pensamento e da crítica se submete ao consumo passivo, estimulado por um subsídio grátis. Esse subsídio não é um veneno social a ser eliminado e, sim, a ser reorientado para curar, pela via do trabalho produtivo, a desigualdade de oportunidades. É o trabalho criativo que estimula e incita as pessoas a vencerem a ignorância e a pensarem a própria existência.

Com Lula,
nos fartamos de ver a árvore,
com Marina Silva,
começaremos a olhar para a floresta.

Induz-me a participar do MMS o fato de ser ele conduzido com espírito livre, acima de partidos políticos, sem eliminá-los, fortalecendo as instituições necessárias.
Animam-me duas razões filosóficas e políticas para agregar-me ao Movimento: reorientar o sentido existencial do consumo de bens vitais, como alimentação saudável e educação, e estimular a produção nesse rumo; incentivar os investimentos públicos e privados da produção agrícola, industrial e tecnológica, induzindo de forma educativa a aproximação dos cidadãos à natureza da qual os seres vivos fazem parte.

EDUCAR PARA PRODUZIR

A miséria, a pobreza e a fome que não permitem à pessoa dedicar-se a outra atividade que não seja procurar comida é uma situação que, aos sensíveis comove e indigna. Aos brutos, endurece.
Dar de comer a quem tem fome é o primeiro passo. Os passos seguintes têm que ser dados logo para que os famintos tenham oportunidade de produzir, ou comprar com seu trabalho, a comida. Essa iniciativa não se consegue sem um melhor conhecimento da própria capacidade adquirido por meio da educação.
Não é apenas incentivando o consumo por meio de um subsídio que se constroi uma sociedade, mesmo dando a alguns milhões um prato diário de comida. É preciso introduzir o conceito de produção engenhosa e o engenho se aperfeiçoa na escola eficiente. O consumo melhora, aumenta, se excita e as indústrias decrescem. O subsídio que se dá ao consumidor repercute nas grandes distribuidoras e bancos que dominam a economia e impõem seus estoques aos incautos. Cria-se a dívida numa ponta e o lucro na outra.
Um olhar crítico e analítico desses programas de incentivo ao consumo, tanto para combater a fome, quanto para comprar automóvel ou geladeira, esbarra num processo seletivo de necessidades.
O Bolsa Família alcança 13 milhões de famílias – 65 milhões de cidadãos. Quantos desses brasileiros passam fome? Ninguém sabe. O critério simplista é o salário reconhecido em carteira de trabalho, confrontado com o número de filhos. A astúcia do brasileiro prevaleceu. Encheu-se a Arca de Noé com toda sorte de espécimes: do faminto ao empresário, vereador, prefeito, professor e outros. Quem não acata esse sistema de publicidade política em nome dos que têm fome, é imbecil e ignorante. Quem o aceita também o é.
O que falta é capacidade local e regional para enfrentar a pobreza, a miséria e a fome. Eis o espaço mole sobre o qual o governo central autoritário se deleita, pinta e borda com o dinheiro público.
Construir, desenterrar, aprimorar capacidades locais participativas e solidárias para vencer os desafios da convivência igualitária de uma sociedade deve constituir o primeiro passo.
A sociedade brasileira se acostumou a aceitar que tudo se decida na esfera maior do poder e gasta o tempo na mesa do bar para contestar, sem êxito, a ditadura administrativa, econômica e política.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O DITADOR DEMOCRÁTICO

Houve uma época em que dezenas de ditadores explícitos governavam pelo mundo afora. Os implícitos, na oposição, esperavam sua vez. Na América do Sul, os ditadores floresciam e abundavam. No Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, Brasil, Peru, Bolívia, há bem pouco tempo, as ordens emanadas vinham dos quartéis, ditadas por generais e marechais. Usavam um partido político domesticado para ladrar aos intrusos e lamber as botas de quem lhe dava comida e coleira.
O mundo da política foi mudando. Ditadura fechada, ordens verticais, disciplina militar do marcha soldado não se entendem com evolução tecnológica, velocidade da informação, TV, telefone celular, correio eletrônico. A sociedade se encheu de hackers mercenários. Nem a União Soviética nem a China resistiram à investida do Sistema cuja arma atômica é o mercado. O mercado democrático. O mercado tecnológico, industrial, comercial, político, cultural suscitou dezenas de ditadores implícitos que lhe fazem as vontades, o aperfeiçoam e, em nome dele, ditam normas e princípios, e proferem ameaças protegidos pela única verdade que só eles compreendem e detêm. Só os imbecis e os ignorantes não a aceitam.
Cada ditador implícito usa a retórica que mais lhe convém, seja de direita ou de esquerda ou de centro sem alterar a coluna vertical do Sistema divino e religioso do mercado. Sua missão é estimular o crescimento econômico ao infinito, refletido nos números do PIB que a vestal estatística prepara nas noites de orgia matemática.
Para um ditador implícito não importa o número de partidos políticos. Ele tem a receita e a dose para dopá-los. Os favores do poder se fragmentam em nacos compartilhados com os bajuladores de plantão que se embriagam com as honrarias e os honorários e estão dispostos a perder a pele para salvar o ditador.
O ditador dita o que é bom para o pobre e para o rico. O ditador não vê, não ouve e não sabe o que se passa a seu redor. Ditador implícito não assume nenhuma responsabilidade, sequer das idiotices e imbecilidades que vomita ao público boquiaberto.
A pior das ditaduras é a democrática que sustenta um sistema invisível e é ratificada na urna eletrônica. Mas não tenha medo de ser feliz, caro cidadão. A esperança é uma das forças que impulsionam o ser humano a arriscar na bolada da sorte. Também chamada virtude cardeal e não desiste nunca.

VALORES NOVOS

Os políticos, os administradores da coisa pública e os senhores da economia, do lucro, do luxo e do bem estar estatístico vão criando valores novos. Analisam as tendências do consumo, as demandas de uma população que se expande fora de controle em busca do melhor lugar para morar e fazem propostas. Vão na onda linear do consumo, arrancam dinheiro do imposto, das multas autoritárias, das restrições e sacrifícios do povo e o convencem de que é para seu bem, conforto, progresso e modernidade.
Urbanizar intensamente a cidade para atender à pressão de construtoras e ao crescimento da população, ampliar vias para dar passagem aos automóveis são valores novos que arrastam todos os outros. Vamos à W-3, antiga rua do comércio de Brasília. Por ali passará o VLT – Veículo leve sobre trilhos. As centenas de árvores que sombreiam a avenida serão arrancadas, espicaçadas para carvão. Cada árvore é composta ou contém ao redor de 700 litros de água. Essa água invisível está ali diariamente e cumpre sua função de absorver o dióxido de carbono e produzir oxigênio. Umedece o ar e controla o aquecimento produzido pelo asfalto, construções, pessoas e pelo calor de milhares de veículos que diariamente rodam por ali. Estão retirando da W-3, digamos, 100 árvores, ou seja, 70 mil litros de água por dia, ou 70 m3. Água que abasteceria 350 pessoas por dia.
Os planejadores e administradores urbanos apontam soluções lineares, atendendo demandas lineares. Um milhão de carros trafegando no Distrito Federal equivale à ocupação de 6 milhões de metros quadrados de espaço absoluto ou 6 km2, ou 600 hectares. São dimensões a que não se dá valor por falta de aritmética geográfica. E quando Brasília for invadida por 2 milhões de carros? Aprendemos a dar valor à máquina e nos submeter a seus caprichos. Ela é nossa propriedade, patrimônio e pedestal de status. O homem que a governa se obriga a dar-lhe o que ela exige. O homem que fazia história, tornou-se escravo da máquina. A história é feita de alta tecnologia.
No lugar das árvores, isto é, em vez de água, correrá por ali um veículo aquecido, sem eliminar o fluxo de milhares de automóveis e ônibus em altas temperaturas repletos de passageiros que respirarão e aquecerão o ambiente,. Que se fará para substituir a sombra, a umidade e o oxigênio produzidos pelas árvores de hoje, na W-3? Ninguém sabe. Os valores que se extraem da vida natural e orgânica, da comezinha lei da saúde corporal e mental estão sendo substituídos pela fluidez do tráfego, pela imposição da máquina que a estultícia do consumo põe no lugar das pessoas. As coisas das pessoas no lugar delas. Onde pôr os automóveis? Onde pôr os edifícios? São perguntas que orientam os políticos erráticos e os administradores presos a compromisso de construtoras, engenheiros e arquitetos cooptados pelos novos valores do crescimento ordenado da cidade. Onde pôr as pessoas? Em que ambiente e em que circunstâncias de saúde e convivência é mais digno e estimulante assentar o cidadão?
Que acarreta essa inversão das importâncias. Duas situações: maior velocidade dos carros e, não é certo, melhor locomoção de gente com um pouco mais de conforto e, junto a essa ilusão de melhora técnica e modernização, ganha-se uma avenida deserta, lotada de ônibus, veículo sobre trilhos, carros levando um único passageiro, sem árvores, o ar seco, fumaça irritante, ruído, assaltos, roubos, mendicância.
Políticos e administradores de Brasília, assessorados por construtoras, empreiteiras, incorporadoras, engenheiros de trânsito e arquitetos a soldo pensam em linha reta e resolvem os cruzamentos do futuro com semáforos e viadutos.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

ÁGUA AZUL



Trinta anos de conservação conseguem uma resposta animadora da natureza.
Sítio das Neves.
É meu paraíso.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

FLORES DO CERRADO

Amigos,
A beleza do cerrado está ameaçada pelo fogo, pelo desmatamento, pelos condomínios invasores, pelo trator e pela burrice do ser humano.
É sobre ela que se constroem edifícios, abrem-se e duplicam-se avenidas e levantam-se viadutos.
As águas desaparecem. Fica o deserto casado com a pobreza.

Flores do meu Sítio das Neves,
Plantadas pela mão invisível da natureza.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

QUEM É BRASILIENSE

D. H. Lawrence (Lady Chatterley, 1928) lamentou que a nova Inglaterra das indústrias modernas, sem alma, e dos novos assentamentos operários, áridos e sem árvores, ambos arrasando a paisagem secular, estava destruindo a velha Inglaterra. Seriam mais felizes os habitantes da nova Inglaterra?
Subitamente, depois da Ia Guerra Mundial, os ingleses, estrangeiros no próprio país, começaram a agir como os rudes estrangeiros que deslocam os nativos e lhes impõem novas regras de convivência. Os novos habitantes colonizam os antigos.
A Brasília de hoje, invadida por estrangeiros nacionais de todas as classes, está desfigurando a Brasília de ontem, construída por quem nasceu com ela.
Quem nasceu em Brasília? Não se trata de fixar apenas a data em que a criança saiu do ventre materno para dizê-la brasiliense. Grande parte dos que nasceram no perímetro da cidade, cujos limites, hoje, são imprecisos, age como estrangeira. Sua principal relação com Brasília é ter sido expelida aqui do ventre da mãe, como os navios vomitam imigrantes em qualquer porto do globo. Só se tornarão cidadãos do país quando renascerem nele e forem amamentados pela seiva da terra e da cultura ainda que guardem em si as raízes originais.
Quem são esses estrangeiros que vêm mudando a face de Brasília? Os que a estão transformando num arremedo de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou da cidade do México. São os que pensam que abrir largas avenidas para a louca velocidade dos carros individuais seja o mesmo que modernizar uma cidade e um povo. Os que desconhecem o solo que pisam e, sem conhecê-lo, o maltratam, o enfeiam e o querem semelhante à charneca, à terra devastada, à miséria ambiental de onde fugiram. Os que, em nome da tecnologia, da eficiência, do progresso, do crescimento econômico a qualquer preço, usam a população incauta como bocas de consumo e bucha eletrônica da urna eleitoral.
Quem é brasiliense? Ser brasiliense não é o mesmo que ter casa em Brasília. Não importa onde haja nascido, é brasiliense quem nasce do ventre de Brasília concebida e amamentada pelo espírito da liberdade e da arte. Ser brasiliense é pertencer ao patrimônio cultural e urbanístico da humanidade e não apenas ao melhor IDH do Brasil.
A nova geração brasiliense, de onde quer que venha, mesmo que nasça nos limites imprecisos do quadrilátero urbano, há que renascer, pela educação, do ventre da única Brasília de ontem e ser batizado pelo bioma do cerrado para adquirir a nobreza da cidadania brasiliense.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

DOMINADOR E DOMINADO

Vivemos numa época da história humana em que mais nitidamente a economia, o progresso, a tecnologia, empurrados pelas estatísticas, dividem a humanidade em dois grupos. Os que têm dinheiro e compram o sapato da última moda junto com a consciência do trabalhador, e os que buscam dinheiro para comer o prato do dia.
Escrevi a Pedro de Montemor sobre o mistério humano da dominação de pessoas sobre pessoas. Gosto de compreender os meandros da alma humana. Uns dominam e outros aceitam a dominação como se esses dois elementos acionassem a engrenagem da mesma máquina. Será apenas uma questão de estrutura do funcionamento das relações entre humanos, como dizem os analistas sociais? E aquele bem precioso que se denomina liberdade de pensar e de querer se reparte também em dois movimentos? Um conduz o poder e manobra a autoridade, outro move a submissão, a obediência, o conformismo e, por fim, a aceitação desta trituradora engrenagem?
Na troca de cartas, Pedro de Montemor fez-me reflexões sobre os limites do poder, da força, da importância e da necessidade no exercício da liberdade que move as pessoas. Para os que giram o eixo do poder – político ou econômico − a engrenagem da máquina social está previamente concebida e nasce da luta evolutiva pela sobrevivência das espécies mais fortes. As mais fracas sempre existirão alimentadas pelas mais fortes para melhor servi-las quando e como as dominadoras quiserem ou necessitarem.
É esse o sentimento e essa a convicção dos empresários da indústria e do comércio quando exaltam os êxitos do crescimento econômico sob os holofotes de índices estatísticos. São eles que deram aos trabalhadores tudo o que têm: o trabalho e o salário, a casa onde moram, o financiamento da geladeira e do carro, a escola das crianças e a universidade dos futuros administradores do país. São eles que enchem a barriga do povo sem encher-lhe o bolso. Há que se guardar a necessária e suficiente proporção entre o tamanho da barriga e odo bolso. E os donos do capital sabem as razões desse insidioso equilíbrio.
As chamadas políticas sociais dirigidas a pobres e miseráveis são o complemento e a lubrificação da engrenagem. Os beneficiários podem sentir e querer como lhes pareça melhor sem, contudo, alterar a forma e o mecanismo da engrenagem. A estatística, deliberadamente aperfeiçoada e manipulada por mãos invisíveis e cérebros eletrônicos, mostra com índices indiscutíveis a eficiência do mecanismo e sugere os cuidados com a lubrificação ou a possível troca de peças em casos especiais.
Quando uma sociedade consegue o equilíbrio entre o poder dominador e o poder dominado, entre o bolso de uns e a barriga da maioria, a deterioração da inteligência, a ruptura da razão e a aceitação da submissão parecem conviver na letargia da consciência social. As desigualdades se instalam e se consolidam para que a engrenagem funcione. Esse conúbio teratológico produz silenciosamente um sentimento de temor generalizado pelo rompimento súbito da estrutura. Mas os operadores da máquina têm ferramentas adequadas para restabelecer o equilíbrio ameaçado por aqueles que buscam o dinheiro que lhes falta no bolso e sobra na ilhas fiscais.
O ponto mais difícil e delicado, concluiu Pedro de Montemor, é perceber quando o ovo apodrece por dentro, mantendo a forma exterior intacta e criando a ilusão de um mecanismo perfeito para o surgimento da vida anunciada.
As estruturas apodrecem por dentro do palácio, enquanto os acólitos do poder pintam as fachadas de cores extasiantes, protegem as entradas com a guarda imperial e sorridentes recepcionistas encaminham os visitantes às salas permitidas, ricamente mobiliadas.

O CONTO DA INSEGURANÇA

− Não temos segurança nenhuma!
− Segurança não existe! Polícia e segurança não combinam.
− A cidade está cada dia mais insegura, roubos e assaltos contados por minuto.
− Mas existe uma Lei de Segurança Nacional.
− Essa foi feita na guerra contra os comunistas que, hoje, aderiram aos postos comissionados do governo para cuidar do PIB ou se terceirizaram no Congresso Nacional.
Os quatro amigos discutiam, à mesa do bar, sobre a segurança e a insegurança em casa, na cidade, no país.
− De que segurança ou insegurança se fala? Sair de casa sem ser roubado? Ou sem ser morto?
− Olha só, a velhinha foi roubada na rua. O apartamento de meu vizinho foi arrombado em pleno dia. O Wilson foi posto no porta-malas e levaram o carro junto. Aqueles namorados foram mortos no estacionamento público.
− E tem aquele caso do índio Galdino. O índio dormia no chão, se achava tão seguro quanto na selva e veio ser queimado em Brasília por três garotões que têm dinheiro, escola e roupa lavada. Qual era a segurança do índio?
− E os meninos que dormiam no coreto da quadra, assassinados por um funcionário do Banco Central...Pai de família...pô.
− No Rio de Janeiro e São Paulo, morre menino, moça, mulher grávida, no tiroteio de todos os dias. Morre policial, morre traficante, morre quem está na trajetória da bala sem saber por quê.
− Mas, ali, é guerra declarada. É o morro contra a planície. E, na guerra, morre quem está na zona de conflito. Na guerra não se fala em segurança, você sabe disto. Ou se esconde, ou foge ou morre.
− É verdade. Numa situação de guerra a insegurança é geral. E os envolvidos são especialistas no assunto. Sabem que é para matar e sabem o que defender: o patrimônio. As pessoas, se sobreviverem, vêm depois.
− Você disse bem: o patrimônio. Não conheço nenhum caso de roubo em que levassem a casa, transferissem para si a escritura do apartamento, de invasores que subtraíssem a fazenda, a indústria de sabão ou a fábrica de automóvel. O que está lá dentro é que importa. As jóias, os dólares, as pinturas famosas, a carga do caminhão, o automóvel, nada disto tem segurança.
− Por isso existe o seguro contra roubo do patrimônio, para repor o valor estimado e refazê-lo. O importante é assegurar o patrimônio. É o que fazem os vigias de prédios residenciais.
− Existe também o seguro de vida, mais precisamente um seguro de morte ou de doença para repor a saúde. O seguro de vida é uma ilusão. Em caso de morte do segurado, a vitima nada leva, nem o caixão. Às vezes, os herdeiros do seguro nem perderam o patrimônio do segurado. O seguro pago aos vivos serve para aumentar o patrimônio por conta do morto.
− O direto de propriedade, então, não vale nada ou é um direito sem segurança. O traficante também defende a droga que comprou, custou dinheiro. Com a venda do produto ajuda a mãe. Compra casa, automóvel e, principalmente, o poder. O traficante defende seu patrimônio, a droga, o poder da droga e a clientela que exige e paga um bom preço.
− Em economia, o mercado é quem manda. E ele está no mercado. Se há demanda, há oferta. Você não verá a Tropa de Elite cercar um prédio da Zona Sul do Rio, com tanque e helicóptero para prender os figurões, os financiadores da droga e do armamento, os cabeças invisíveis da demanda.
− Esses é que estão em segurança. Só cai na rede o consumidor viciado, o intermediário pequeno, a mula-mansa que é para enfeitar o cenário policial e mostrar sua eficiência na esquina escura da guerra. Depois, você fica sabendo que uns policiais extorquiram metade da fortuna do traficante preso.
− Ai você entrou num terreno delicado. Tem uma parte sendo protegida pela força pública do Estado e, outra, enquadrada nos artigos da lei. Nessa guerra, o Estado está protegendo o patrimônio de um lado só.
− É que o governo pensa que, destruindo a oferta, acaba com a demanda. Acontece que em economia, quem está do lado da demanda é quem a controla e precisa sobreviver. O mundo se divide em indústria e comércio, seja de sapato, droga ou armas. Um produz para o outro consumir. E, agora, até o governo manda consumir mais para produzir mais.
− Os fabricantes de armas têm interesse nessa guerra. Eles fornecem armamento para os dois lados. Ali também funciona a lei da oferta e da procura.
− Mas falando em patrimônio, qual é o patrimônio que o Estado defende com as forças de segurança: exército, polícias militares, polícias civis, além dos exércitos privados de segurança?
No meio da conversa animada dos amigos, houve um tumulto no bar, correria, gritaria e alguns tiros. Ouviram-se gritos: “é um assalto”, “estão assaltando o restaurante”. Um jovem havia sido morto por outro e estava caído entre as mesas. Depois se soube que se tratava de um estudante de administração e o assassino cursava a mesma universidade. O patrimônio, nesse caso, era uma das namoradas. A polícia chegou, interpelou o segurança do bar, denominado “apoio ao cliente”, fez as diligências legais e a ambulância levou o cadáver.
− Você vê, ainda se mata por ciúme.
− E essa moda de matar os pais? Ou é o filho drogado que precisa dos emolumentos para pagar o fornecedor, ou o namorado se alia à namorada para liquidar os pais da moça.
− Pô, nem os pais têm segurança dentro de casa, nem a mulher, nem o marido, nem os filhos.
− Agora, uma coisa é diabólica e incompreensível. Toda semana se descobrem roubos milionários nos ministérios, nos bancos, em assaltos à mão armada ou por vias eletrônicas. É o patrimônio público que se vai por falta de fiscalização. E quando a polícia prende, quem é que está metido com a ladroagem e os assassinatos? Criminosos comuns, delegados, policiais da ativa, ex-policiais graduados. Ai você não sabe quem comanda a segurança e a insegurança.
− E tem mais. Se a banda boa da polícia prende, fundamentada nos incisos da lei, vem o Ministro do Supremo com base na mesma lei e manda soltar, e o Ministro da Justiça defende os dois lados, pondo panos quentes na imprensa e todo mundo parece acreditar.
− Todo mundo engole, esperando o próximo capítulo da comédia cotidiana, porque é uma comédia.
− Confesso a vocês que sinto asco, nojo e desprezo quando essas altas autoridades nos tomam por idiotas e mentecaptos.
− É tudo um jogo de poder e autoridade. É a técnica dos pichadores: quem consegue pichar mais alto e em lugares mais difíceis, num momento em que ninguém vê.
− O poder funciona assim porque se alguém quisesse puxar a ponta do novelo encontraria a traça que roi a linha, escondida lá dentro.
− Você quer dizer que tem muita gente de rabo preso.
Já era tarde. Iam pedir a conta ao garçom.
− E então, quem é que vai resolver o problema da segurança ou da insegurança?
− Ninguém. O buraco é mais embaixo. Enquanto isso, a raposa toma conta do galinheiro e leva comida para as raposinhas.
− Olha, penso que a segurança tem a ver com a corrupção e a impunidade. Tudo corre solto. Parece que ninguém tem medo da lei e da justiça. A imprensa faz um barulho desgraçado durante alguns dias, a TV mostra o cidadão levado preso, os milhões de reais escondidos na casa de um político, na maleta de viagem, numa ilha fiscal e até na cueca de um deputado. Na semana seguinte, aparece outro crime mais cabeludo e abafa o anterior. Enquanto isso, dezenas de assaltos, sequestros, arrombamentos, roubos de automóveis, farmácias, joalherias, padarias, postos de gasolina fazem o recheio da insegurança.
− É a criatividade da sobrevivência. Há muita gente, a população é grande demais. Não há lugar para todo o mundo. Não dá para controlar.
− E olhem bem. Um grande número desses assaltos, roubos, arrombamentos, assassinatos não é praticado por desempregados. É gente que tem dinheiro, bem estabelecida, alto funcionário e com boa educação, desde a creche até a universidade.
− Falando francamente, é uma minoria que atormenta a sociedade e produz essa sensação de insegurança. Se você compara o número de presos no país – 400 mil − com o número de policiais, vigilantes, delegados, investigadores, promotores, juizes, fiscais, armados e desarmados, a quantidade de viaturas e motos, radares, câmeras fotográficas, helicópteros, aviões tripulados e não-tripulados, dá para perceber porque eu dizia que o buraco é mais embaixo. Há gente demais para cuidar da insegurança.
− É que essa minoria é experta. Ela tem o instinto da organização e a inteligência da surpresa. E, além disso, ela se junta com uma parte dos encarregados da ordem e da segurança. Essa minoria conhece a alma deles e sabe o ponto fraco.
− A diferença de comportamento da minoria que põe em pânico a sociedade é que seus componentes, ao contrário das forças de segurança, se dispõem ao risco de dar errado e estão ali para levar ou morrer.
− É o que você diz: é uma guerra. E guerra tem dois lados: matar e morrer. Só que, nessa guerra, general não morre, nem Fernandinhos nem Marcolas.
− Bom, vambora, que é nesta hora que a minoria ataca o patrimônio.