segunda-feira, 27 de abril de 2009

VIOLÊNCIA E NATUREZA

Penso que uma das causas de atos de agressão, formação de quadrilhas e gangues, chacinas ou sequestros cada dia mais intensos, ainda é pouco estudada. As pessoas se afastaram da natureza a ponto de considerá-la quase inimiga de seus interesses econômicos e ambições políticas.
Desde o primeiro dia de vida, as crianças são segregadas do berço da natureza, esterilizadas em ambientes virtuais e ali aprendem a competir na guerra da ocupação dos espaços. Em casa, é a cama, o lugar no sofá, na mesa, é o programa de TV ou DVD, é a música preferida. Na escola, é a carteira, a mochila de grife, o tênis, o livro, o caderno, a prova, a nota. Os bichos, as plantas, as flores são seres exóticos. Pertencem ao reino animal ou vegetal, são perigosos, peçonhentos, venenosos, asquerosos. Tudo é exótico. A gente não se mistura com eles.
A pessoa − o homem − é superior a tudo isso. É o que se ensina e é o que se aprende. Não se misturam, com exceção de gatos e cachorros. A maior concessão é levar a criançada ao zoológico, visitar os presos em jaulas e atirar pipocas ou bananas aos chimpanzés. São exterioridades da educação para garantir a soberania das pessoas sobre o mundo das coisas com reflexo sobre o dos seres humanos divididos em classes sociais. Dá-se comida ao macaco enjaulado com a mesma comoção que se dá um pão ao pobre de alguma favela esquecida.
As escolas são fortalezas amuralhadas, estéreis, protegidas contra a maldade humana, a “violência” e o ataque de drogas, sem um pequeno bosque ou jardim para respirar oxigênio e sentir a firmeza das plantas.
As mortes, quase 800, no Estado do Pará, são decididas por inimigos da natureza, desmatadores profissionais das florestas amazônicas. Desprezam a natureza e a utilizam como escrava de seus interesses econômicos, por isso a vida humana do vizinho não tem valor moral. Tudo tem que passar pelo fio do machado, da motosserra e pelo furo da bala.
Quem despreza a natureza, a avacalha com fogo e lixo com a brutalidade do senhor prepotente, não é estimulado a respeitar o próximo. Ele, com seu carro potente, se tem por dono do pedaço.
As escolas e o local de trabalho devem fazer parte do universo natural e integrar-se nele como parte dele. Habitamos um planeta que faz parte de um complexo e pouco conhecido sistema de interdependência regido por leis imutáveis. Viver perto da natureza é uma das condições de compreendê-la para compreender o funcionamento da alma humana. Respeitar a natureza, plantas, flores, pássaros, bichos de toda espécie, proteger as nascentes de água é o caminho mais plano para a convivência das pessoas.

UM MORTO APENAS

A festa do quadragésimo nono aniversário de Brasília reuniu, segundo cálculos oficiais, 1,3 milhão de participantes. No meio de tanta alegria, estimulada por vários gêneros de música e teatro ao ar livre, o excesso de bebida entre os jovens provocou brigas, esfaqueamentos e uma morte.
Um morto apenas é estatisticamente invisível na multidão. Mas logo aparecem os pais, quatro irmãos, duas dezenas de primos, mais de meia dúzia de tios e tias, quatro avós, com sorte oito bisavós e uma boa porção de tios avós, sem contar os segundos e terceiros primos com as respectivas namoradas. Em pouco, um morto se torna uma multidão.
Levaram o rapaz de 17 anos ao hospital ou pronto-socorro, onde os médicos de plantão e enfermeiras constataram sua morte. O jornalista, ao lado do cinegrafista, diz aos milhões de espectadores que o moço não resistiu aos ferimentos.
O morto obriga a pensar no caixão, no velório, nas flores, no padre, no pastor, no túmulo. A policia já está investigando o caso. Três suspeitos foram presos. A delegacia não tem vagas. O juiz concede hábeas corpus aos executores. Só faltam os coveiros para as últimas diligências do enterro.
Um só morto parece pouco no meio de 1,3 milhão de brasilienses em festa, mas ele arrasta para a cova mais de uma centena de auxiliares que tornam possível o sepultamento. Durante alguns dias, os amigos da escola ou do bar, vão lembrá-lo. Na missa de sétimo dia, as últimas lágrimas. Em casa, o porta-retrato o imortaliza.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

SOCIÓLOGO AMBIENTALISTA

Ouvindo-me falar sobre cuidados com a natureza, proteção de plantas e águas do Cerrado, o jornalista perguntou se eu era biólogo.
Não sou, mas estudo os seres vivos e a variada forma de relacionamentos entre eles. Analiso a influência do verde, da água, dos bichos nos comportamentos das pessoas como indivíduos e como grupos organizados, famílias isoladas no campo, agrupamentos urbanos, pequenas e grandes cidades. Constato a luta das pessoas pelo espaço físico, a reação provocada pelos fenômenos naturais, sua compreensão e o seguimento das leis físicas, a confiança, o temor, o contentamento proporcionado pelo desfrute de uma boa colheita, o desânimo diante dos infortúnios imprevistos e imprevisíveis de uma seca avassaladora ou de inundações periódicas.
Pensei e atuei como sociólogo ao longo de quarenta anos, exercendo atividades profissionais perto das pessoas e das formas de sua organização. Conheci o mundo. Aprendi outros idiomas para ouvir, ler e falar com outras culturas.
Em Galápagos, no meio do Oceano Pacífico, entre lobos marinhos e focas, caimães e fragatas, fui sequestrado pela natureza. Ela me levou além de mim mesmo, me transportou para fora do imediato e mostrou-me um universo sem tempo. Fundiu o passado e o futuro num presente que inicia a cada instante, interminavelmente.
Mudei o paradigma de observação do universo. Saltei dos comportamentos irrequietos das pessoas ao ser imperturbável da natureza. A grandeza da pessoa está na compreensão simples de que ele faz parte do universo e que a paz intelectual nasce do respeito com que pisa o chão.
A cada ser foi dado um espaço a ser ocupado e preservado. O confronto entre o homem e a natureza se produz nas circunstâncias em que, para sobreviver, precisa destruir parte da vida que pulsa a seu redor. Árvores transformam-se em casas ou simplesmente queimam ao ar livre para dar lugar às plantações. Pródiga, a natureza responde à ação do homem e lhe dá, na medida do possível, o alimento que o sustenta. Mas a natureza também se exaure. Os desertos aparecem, entre outras causas, pela ocupação pouco inteligente da terra disponível. O corte indiscriminado dos bosques e a maneira incorreta de produzir alimentos devastam imensas regiões. Desaparecem milhares de espécies, secam nascentes de água e rios.
A harmonia assegurada em Galápagos e a convivência das espécies nesse refúgio do Pacífico constituem lição e exemplo à humanidade. Ocupar o espaço e protegê-lo me pareceu uma verdade substancial tão desprezada pela espécie humana.
Transformar o espaço em ambiente de vida, de trabalho e de paz interior seria, desde então, minha tarefa cotidiana. Para alertar a espécie humana em sua fúria incontrolável de apossar-se das riquezas naturais, devotei-me a conhecer, observar, ouvir e falar com plantas, pássaros e bichos e a preservar nascentes de água, fonte suprema da vida.
A sabedoria natural das plantas e animais se choca com a estupidez, a ignorância e certos interesses do ser humano. Ao me conciliar com a natureza, ganhei, de repente, milhões de amigos: plantas, insetos, pássaros, bichos do mato e algumas pessoas. Os que desrespeitam a natureza são esses poucos amigos pertencentes à espécie humana. Lixo e fogo, entre outros costumes, são atitudes primitivas de desrespeito à inocência da Terra. Os inimigos da natureza são, em consequência, inimigos de si mesmos e meus porque eu sou, como eles, parte dela.
É sempre bom lembrar, como integrantes da espécie humana, que não somos maioria no planeta Terra. Há outros bilhões de seres que têm o direito de ocupá-la. A vida é um bem de todos os seres vivos que nos rodeiam. Somos uma sociedade plural, interdependente. Ninguém é dono de ninguém, sábio grito da liberdade universal.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

VERDE, ÁGUA VIRTUAL

Brasília, em quase toda sua extensão de Projeto Piloto, é bem arborizada. Sem medo de ser chato, reafirmo que o inimigo declarado do verde é a obsessão do homem e dos administradores públicos pelo automóvel particular como principal meio de locomoção.
O Departamento de Parques e Jardins e seus auxiliares terceirizados, a par de bons cuidados no plantio de plantas usam, sem muito respeito, motosserras, facões, raçadeiras e foices. Cortar, desgalhar, abater são decisões tomadas com critérios primitivos.
Os encarregados dessas tarefas e, provavelmente, seus chefes não associam o verde à água. Água virtual. Num galho verde ou num tronco de meio-metro cúbico há uma quantidade razoável de água que ajuda a manter a umidade do ambiente. Eliminar árvores para dar espaço aos carros ou amputar parte delas é provocar o secamento do ar, o aumento do calor e o desconforto consequente.
Respirar o oxigênio sob as árvores durante meia-hora ao longo da jornada produz efeitos saudáveis ao organismo como comprovam pesquisas e estudos. (Veja-se o exemplo da pedagoga Gisele Schiavo, Cotia, São Paulo, que construiu uma escola em sua chácara.) O verde tranquiliza as crianças e os professores.
Algumas escolas que visitei no Núcleo Bandeirante (DF) e no Engenho das Lajes (DF) são verdadeiros bunkers cercados de muros e pátios cimentados para o recreio dos alunos. Deve haver, no DF, dezenas de escolas na mesma situação. Grandes edificações de colégios particulares, com estacionamentos para os carros individuais de professores e alunos trocaram as árvores, a água virtual, a umidade e o conforto pelo número de alunos com Ipod e MP4 no ouvido e celular na mão.

LIÇÕES DE UM PASSADO RECENTE

Cícero, no ano 55 antes de nossa era deu bons conselhos aos imperadores de Roma.


O orçamento deve se equilibrar,
O Tesouro deve ser reabastecido,
A dívida pública deve ser diminuída,
A arrogância dos funcionários públicos
Deve ser moderada e controlada
E a ajuda a outros países deve se eliminar
Para que Roma não vá à bancarrota.
A gente deve reaprender a trabalhar
Em lugar de viver à custa do Estado.

NEGOCIAÇÃO E NEGOCIATAS

Negociam-se objetos que têm valor para quem vende e para quem compra. A grandeza do valor pode não ser simétrica para o vendedor e o comprador. Um objeto, pelas circunstâncias, necessidade ou desejo pessoal pode ter maior valor para o comprador do que para o vendedor. O proprietário do objeto oferecido pode não saber dos desejos íntimos do adquirente. Há objetos ou bens que possuem valor público declarado por um consenso coletivo. Mesmo assim, esse valor pode ser discutido e negociado. A perda e o ganho são pesados numa balança de critérios que equilibrem o poder de compra e o de venda.
São dois poderes. É o jogo do poder. O poder do sindicalista ou do trabalhador, amparado pelo direito constitucional negoria com o poder do capitalista, protegido pela força jurídica da propriedade. A força do trabalho se mede com a força do capital investido. Os bens de produção adquiridos só produzem bens de consumo, agregados de lucro, com a força do trabalho também adquirida.
O poder do trabalhador aumenta ou diminui na medida em que aumenta ou diminui o poder do investidor. No sistema capitalista, o poder do investidor lhe confere presumido direito de decidir sobre o poder do trabalhador. Seguem-se negociações para equilibrar os poderes. Chocam-se, com frequência, os poderes de greve e das demissões. O trabalhador se recusa a aceitar as condições que deterioram o valor do trabalho. O dono do capital recusa o trabalhador e o demite.
Há outras esferas em que o jogo das negociações pode ser ou é uma sequência de traições sob o título de alianças, compromissos, acordos, pragmatismo. Capitula-se. Convicções são valores pessoais ou de grupos que se praticam na vida política, orientadoras da construção de uma sociedade. As convicções têm menos caráter cientifico do que moral, político, ideológico. Nascem da inteligência criativa e se abastecem da vontade de agir segundo os trâmites da justiça, da equidade, da igualdade e solidariedade.
Talvez o mais difícil seja encontrar pessoas convictas que ousem expressar suas convicções com coerência no curso da vida política. Interesses imediatos, ambição e gosto pelo poder absoluto – na empresa ou no Estado – não raro confundem as convicções e descambam em ativismo compulsivo expresso em obras nem sempre necessárias, mas úteis à manutenção do poder. As convicções do agir tornam-se convicções do fazer. O ex-presidente Cardoso e o atual presidente Lula declararam publicamente que suas convicções políticas anteriores à eleição não tinham mais valor no presente.
A negociação das convicções, que encheram de esperança um povo, foi definida como bom senso. A desvalorização das convicções arrastou consigo a maioria esmagadora de um povo ainda submisso a caudilhos e caciques do poder. A nobreza das convicções ideológicas foi substituída por conceitos vulgares de crescimento econômico, ciranda financeira das bolsas de valores e aumento do PIB.
Em vez de negociar os possíveis produtos das convicções preferiu-se jogá-las na bolsa em busca de maior poder. O tribuno riograndense Silveira Martins advertiu, há quase um século:
− Ideias não são metais que se fundem.

TERCEIRIZAÇÃO DEMOCRATIZADA

GATOS OFICIAIS

Creio que a indústria de automóveis é que tenha estabelecido a forma de prestação de serviços por partes independentes do carro. Ela monta as peças produzidas por uma dezena de empresas de acordo com desenho e qualidade predefinidos.
O governo vem imitando essa forma de prestação de serviços públicos designada como terceirização sem controle sobre o desenho e a qualidade do serviço. Encontrou-se boa argumentação para oficializar os gatos, bem conhecidos entre os cafeicultores e canavieiros. Desburocratização, rapidez no atendimento, diminuição da presença do Estado e do governo em matéria não política são argumentos que sustentam os gatos oficiais.
Mas, hoje, em muitos setores de serviços à população, através de concursos e licitações nos quais se infiltra o ingrediente corrosivo da corrupção, das influências políticas e o peso de polpudas propinas, empresas tomaram conta da limpeza de prédios e ruas, vigilância e segurança privadas, guardas noturnos, entre outras atividades.
Participei de um projeto, elaborado e executado por solicitação da Colômbia, durante alguns anos, como funcionário da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Agência das Nações Unidas. O projeto destinava-se à conservação e melhoramento de rodovias asfaltadas e carroçáveis, federais, departamentais (estaduais) e municipais.
Os trabalhadores em número de 10 a 15, organizavam-se em associações numa área de ação de 50 quilômetros. Sob a orientação de engenheiros do Ministério dos Transportes, essas associações executam as obras requeridas nesse trecho da estrada.
A maior dificuldade encontrada para aprovar o projeto era a interdição legal existente para repassar recursos públicos a associações populares. Lá como aqui, o Estado pode repassar polpudas verbas a grandes empresas. Venceu-se essa dificuldade com o apoio do Ministério da Justiça e a vontade política do governo. Milhares de postos de trabalho foram criados próximos ao lugar onde moravam os trabalhadores. Os recursos da manutenção das rodovias, na parte referente aos salários, eram repassados à associação, disseminando o poder de compra ao longo das vias.
Melhoraram-se as estradas, deu-se o toque da arte regional da Cordilheira dos Andes, desenvolveu-se o artesanato e a culinária local, reconstruíram-se e se renovaram escolas e casas dos camponeses-trabalhadores, melhorou a segurança das vias.
Com exceção das grandes obras de arte rodoviária: pontes, viadutos e túneis, a quase totalidade das vias da Colômbia são mantidas por grupos associativos, treinados, fiscalizados e avaliados pelo Ministério dos Transportes com o apoio de organismos internacionais.
Essa é uma das formas de democratizar a terceirização e reduzir à expressão mínima os gatos oficiais. Eles operam nos três níveis da administração pública como se fosse um grande canavial onde os trabalhadores de qualquer empresa prestadora desses serviços são pouco mais do que escravos.
As diferenças entre os donos das empresas e seus trabalhadores vão do castelo medieval à casa de 37 metros quadrados, a cinquenta quilômetros de qualquer cinema ou livraria.

VAZIOS GRANDIOSOS

O centenário Niemeyer convulsionou os arquitetos e protetores do Plano Piloto com seu projeto da Praça da Soberania.
A amplidão da Esplanada dos Ministérios, reservada para as manifestações patrióticas, é uma tentação para os organizadores de passeatas e festas massivas.
As longas avenidas e amplas praças como as de Paris, Londres, Roma, Washington empolgam por seus espaços vazios e gigantescos monumentos que assustam e mantêm os admiradores ao longe.
Uma capital de país, na cultura arquitetônica, impõe essa grandiosidade à prancheta dos arquitetos.
Eu balanço entre a grandiosidade dos vazios e a imponência dos monumentos. Os vazios da Natureza me falam mais forte no pensamento do que um bloco de concreto apontando para o infinito, mesmo saído do lápis do centenário Niemeyer. Sua genialidade o empurra a competir com a grandeza dos cenários da Natureza. Sua criatividade é a mola da própria existência.
Teremos que nos submeter a sua genialidade? Pagaremos por ela e nos orgulharemos dela?
Niemeyer aprecia a amplidão dos vazios para enchê-los com suas aventuras arquitetônicas.
Eu prefiro os vazios para admirar e sentir sua força e penetrar neles como numa caverna do tempo e perder-me no espaço livre.

QUEREM ADAPTAR BRASÍLIA

Por falta de determinação na observância do estatuto de conservação e proteção do patrimônio cultural da humanidade, de tempos em tempos, insiste-se que Brasília precisa modernizar-se e adaptar-se às novas tendências do urbanismo. Afirma-se que Brasília tem o tamanho de uma metrópole e como tal deve comportar-se.
Brasília já nasceu moderna. Seus edifícios, suas avenidas, o traçado da ocupação do espaço no Planalto Central, espantaram o mundo arquitetônico até pelo seu estilo pós-moderno.
Os serviços públicos destinados ao cidadão foram setorizados para melhor identificação. Os amplos espaços que os separam sugerem liberdade de ação. Permitem o alargamento da mente, da imaginação, da reflexão para auxiliar os administradores na diferenciação de projetos, medidas, leis que promovam a felicidade geral da população espalhada pelo país.
Que significa modernizar e adaptar Brasília?
Uma cidade, um agrupamento urbano é, essencialmente, espaço de relacionamento, de convivência, de mútua ajuda e proteção de pessoas. A cidade é para o cidadão. Todos os equipamentos, casas, ruas, devem adaptar-se a ele e à sua vida na comunidade.
O aumento da população é a primeira das dificuldades que se antepõem à convivência. A intensidade do relacionamento diversificado se choca com a redução dos espaços físicos. As funções administrativas de Brasília, como cidade-capital, supõem sistemas diversificados de relacionamento de cidadãos que acorrem a ela, não por motivos de convivência urbana, mas para obter serviços que não encontram nas comunidades onde residem. Que tem isso a ver com a modernização e adaptação de Brasília como cidade-comunidade de pessoas que nela residem permanentemente? Para quem ou em benefício de quem se destinarão a modernização e as adaptações?
O bom senso sugere que uma cidade se adapte à evolução e modernização do cidadão comum que nela vive, à média coletiva, sem inibir as singularidades nem fomentar o individualismo predatório. Modernizar uma cidade é, antes de tudo, oferecer condições de convivência e de possível expressão da liberdade na diversidade.
Brasília é cidade-capital, é centro administrativo, é o laboratório das políticas nacionais. Estes são os elementos indicativos de sua adaptação e modernização.
Brasília foi concebida com traços de grandeza e amplitude sobre um planalto de largos horizontes. O conceito de monumentalidade se origina no e se adapta ao imenso espaço de silêncio vegetal. Espaço amplo que abriga o complexo exercício do poder político e da supervisão do extenso território nacional.
O que está sendo proposto e executado para modernizar e adaptar a cidade, na prática, é para atender ao aumento da população circundante e suas novas demandas sociais fora de Brasília.
Destacam-se dois aspectos mais evidentes para os quais fluem os projetos, o orçamento, a retórica, a legislação e a administração: indústria imobiliária e indústria viária tradicional desembocando no transporte obsoleto.
O aumento da população, em todo o território do Distrito Federal e arredores goianos, estimula a construção de habitações horizontais e verticais, prédios para abrigar serviços públicos e áreas de lazer. A abertura de novos bairros, com o método de invasões ou cessão de espaços públicos, reduz a proteção que a vegetação natural poderia oferecer ao cidadão e deteriora o ambiente físico.
A indústria viária tradicional se concentra em viadutos, ampliação, duplicação ou abertura de novas avenidas, facilita temporariamente o fluxo de automóveis e ônibus e em quase nada favorece a convivência entre cidadãos. O cidadão é jogado na linha de frente da guerra do trânsito.
Uma cidade moderna e adaptada ao homem-cidadão é a que favorece e estimula as pessoas a andarem a pé, Caminharem e conversarem. Sentarem em bancos à sombra das árvores e ouvir os trinados da passarada. Sentirem-se felizes por viver numa cidade humana.
Penso que uma cidade humana deveria optar pelo anti-pós-moderno. Para isso, se requeira talvez de arquitetos e urbanistas, geógrafos, antropólogos e cidadãos comuns que pensem e projetem os equipamentos para melhorar os índices de felicidade vegetal.
Praças, parques, jardins, bancos são elementos e equipamentos modernos para as cidades do Brasil. São complementos humanos que suavizam a fúria insana do crescimento econômico determinado pelo aumento da população.

AS DUAS BRASÍLIAS

− Em qual das Brasílias mora seu espírito e em qual delas seu corpo gosta de estar?
Pedro de Montemor acompanhou o debate dos arquitetos diante do obelisco imaginário do centenário Niemeyer. Comoveu-se com o bom senso de parte dos brasilienses e escreveu-me. Minha carta-resposta foi longa como a dele, escrita a mão.
− Continuo morando na Brasília de meus sonhos, a mesma que conheci em 1966. Guardo a impressão de ser um nômade no deserto semeado de oásis monumentais, eloquentes, hospitaleiros. Perdia-me pela Esplanada a perguntar-me para onde teriam ido os pequizeiros e as aroeiras que floresciam por aqui.
Sempre morei à beira da L-2 e, dali, via um campo com árvores retorcidas, de folhas gordas e cascas grossas. Passava entre elas em direção ao Lago estendido por trás das poucas embaixadas de então. Hoje, alguns monstros da arquitetura trivial me espantam e desgostam.
Via-se, naqueles tempos, pouca gente nas ruas como se o cidadão fosse proibido de andar por sua cidade. Os poucos carros deixavam, à noite, as avenidas desertas. É nessa Brasília que ainda moro, meu caro amigo.
A outra Brasília que me obriga a expor meu corpo não se conforma à que tenho na mente e na memória. Na Brasília dos sonhos, da fantasia, da utopia, unia-nos a singeleza da arte, o silêncio monumental do Planalto, a rudeza aparente do Cerrado, verde, seco, vermelho, poeirento, dependendo da época. Parte do Brasil selvagem e selvático advertia o cidadão a retornar às origens e prospectar o futuro. Continuo a morar nessa primeira e primitiva cidade.
Não me encanto com os golpes enfurecidos do progresso a que submetem Brasília. Sou anti-pós-moderno. Brasília nasceu moderna e não precisa modernizar. Ela é um monumento artístico e arquitetônico tombado para viver na história. Os que a degradam com a adaptação da cidade à superpopulação e à invasão do automóvel atropelaram a própria mente e enterram dia a dia o sonho de uma cidade-parque.
É o cidadão e todos os seus equipamentos que devem modernizar-se e adaptar-se à cidade. Vivo na Brasília das árvores milenares testemunhas da velhice da Terra.
A outra Brasília, a das empreiteiras, dos viadutos, dos estacionamentos, do mau gosto, dos puxadinhos, da esculhambação arquitetônica, das negociatas, dos compromissos e barganhas, merece de mim desprezo e um silêncio socrático.