quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

LIXO



Diga-me como tratas o lixo e dir-te-ei quem és.
Houve tempos em que jogar binga de cigarro pela janela do carro era sinal visível de gente bem. O cinzeiro, como assessório inovador desse sonho moderno recolhia os tocos dentro do automóvel e consolidava o cheiro da fumaça no estofamento. Ao chegar ao estacionamento da casa ou do edifício publico o fumador esvaziava os pequenos cadáveres no chão sem imaginar o destino final dos dejetos.
Em nossos dias, ampliou-se a gama de detritos que são lançados sem comiseração nem educação em qualquer lugar. Sacos plásticos de todos os tamanhos voam ao vento ou arrastam-se pelo solo. São deixados ali mesmo onde são esvaziados. No chão, sobre a grama, na rua, no ônibus ou simplesmente atirados pela janela do apartamento ou da casa.
O Lago Paranoá, em Brasília, é depósito de sofá, cama, geladeira, máquina de lavar, como recentemente foi mostrado pela TV. Percorra você, de olhos abertos, nossas rodovias no perímetro do Distrito Federal e constate o que há às margens. Toneladas de entulho transportado por caçambas ou carretos puxados a cavalo, provenientes de reforma de apartamentos, casas, escritórios e restaurantes. Montanhas de sacos plásticos pretos, brancos e verdes de lixo não recolhido pelo Serviço de Limpeza Urbana, rasgados por cães famintos ou catadores de restos aproveitáveis em franca decomposição.
As chuvas torrenciais nesta época de verão arrastam tudo aos córregos que alimentam as represas que nos servem água potável. Chuva limpa. Água suja.
O lixo, hoje, faz parte da civilização do progresso, do crescimento econômico, do consumo e do desperdício. Do toco de cigarro ao celular, do plástico de supermercado ao velho computador, da garrafa ou lata de refrigerante ou cerveja às fraldas descartáveis à beira das ruas sinalizam a cultura e a mentalidade de um povo.
Somos uma indústria ambulante de lixo. Do bebê ao nonagenário produzimos um quilo de lixo ao dia e toneladas de Co2. No dia em que a educação e a cultura conseguirem implantar na cabeça dos responsáveis pela limpeza pública e na dos produtores individuais e industriais de dejetos que tratamento de lixo e água limpa estão indissoluvelmente unidos passaremos a outro patamar de civilização.
Por enquanto, estamos no andar de baixo.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

CARTA À ÁRVORE



Hoje, fui a um cartório a fim de solicitar o registro legal de tua existência. É tua certidão de nascimento que se confunde, frequentemente, com a de óbito. Mas, sem ela, não te posso proteger nem tens direito natural de viver. Nada temes mais do que o machado, a motosserra e o fogo insano.
As leis que obrigam ao registro de terras que te deram vida e a certidão que reconhece tua existência estão impressas em tiras brancas extraídas da carne de árvores abatidas. A mesa sobre a qual se apoia a mão que te legaliza é feita de postas de tuas irmãs sacrificadas contra as leis e os registros de cartório. A cadeira na qual senta a autoridade que generosamente te concede a liberdade condicional de existir saiu de pedaços de tua carne.
Enfim, precisamos do papel, da mesa e da cadeira, retirados de teu corpo, para dar-te existência legal. Dobro-me à evidência de que parte importante de nossa efêmera vida, às vezes feliz, depende de ti. Tu serias feliz sempre, mesmo sem nós.
Emprestas teus galhos para descanso de aves e trepadores, para os ninhos de pássaros e pouso de borboletas.
Acolhes, à tua sombra amena, o peregrino caminhante ou o animal sôfrego e cansado.
Guardas a água da chuva abundante em tuas ramadas e umedeces o ar que respiramos.
Enches a atmosfera de oxigênio para conforto de todos os pulmões.
Cobres de verde nossos vales, nossas montanhas e garantes o borbulho das nascentes que nos dão a água de cada dia.
Aqui está, árvore do meu Sítio, o registro que te outorga existência legal nesta minúscula área de proteção permanente, onde nasceste livre e, indefinidamente, poderás viver.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

ACUMULAÇÃO ECOLÓGICA

A palavra acumulação, assumida pelo sistema capitalista, significa acúmulo de lucros a fim de serem investidos, reinvestidos ou, ao alvitre do proprietário, levados a seu tesouro particular. A palavra expressa também uma estratégia de sobrevivência utilizada por todos os seres vivos: plantas, animais e pessoas.
Se no sistema econômico de reprodução de bens a acumulação de reservas pode assumir um caráter amoral e até imoral, nos processos de sobrevivência e reprodução dos seres vivos é um artifício intrínseco da natureza. A natureza é, em si mesma, um processo de acumulação e reserva para garantir a interdependência dos seres vivos. A interdependência dos anéis desta corrente ordena o consumo, de forma simétrica e assimétrica, das reservas acumuladas na natureza, dando-lhe tempo para repor as partes consumidas. Assim, a mosca, que põe os ovos na fruta, desencadeia um processo de alimentação para outros insetos e é, depois, vítima da aranha. Os exemplos tendem ao infinito e se denomina cadeia trófica.
O ser humano que pode dispor de inumeráveis bens tirados diretamente da natureza ou reproduzi-los em grande escala para sua sobrevivência, será consumido por vermes. A interdependência dos seres vivos não obedece às regras da possível nobreza de diferentes espécies. A lei da sobrevivência não distingue direitos mesmo que, eventualmente, o mais forte tripudie sobre o mais fraco. No universo natural, em realidade há mais tendência à cooperação do que à competição. Na cadeia trófica da interdependência todos os anéis experimentarão o dia dos fracos.
A principal e mais importante reserva da natureza é a água. Dela brotou a vida e, sem ela, nenhum outro tipo de acumulação será possível. É tão evidente esse axioma que toda a sobrevivência se consuma em volta da água. Os vestígios das primeiras civilizações do planeta foram localizados à beira de rios e lagos. A água traz em si a dialética da vida e da morte cuja síntese pode ser uma ou outra segundo o uso que se faça dela. O ser humano percebeu essa dualidade desde os primórdios de seu refúgio nas cavernas. Uma das formas mais antigas usadas para conservação de alimentos é a desidratação por secagem ao sol, ao vento ou pelo frio, praticado pelos Incas, e por defumação. A evolução tecnológica aperfeiçoou essas descobertas por meio do processamento industrial com a agregação de conservantes químicos.
Voltemos à principal reserva da natureza, a água. Para início desta observação é necessário afirmar que o ser da espécie humana é o único anel da cadeia da interdependência capaz de esgotar reservas naturais de água, deteriorá-las e transformá-las em focos de doenças que o vitimarão. Nenhum outro ser vivo comete semelhante ato de suicídio e tal atentado contra a reserva acumulada de água em geleiras, rios, lagos e plantas. A desertificação progressiva por práticas de agricultura intensiva, desmatamento descontrolado e urbanização elimina nascentes, seca fluxos de água e contamina os aquíferos subterrâneos.
As plantas acumulam água nas raízes, nos troncos, nas folhas. São reservas não só para os indivíduos vegetais, mas também para o equilíbrio ambiental. É uma reserva comunitária. Dependendo do bioma, em regiões de escassas chuvas, nas quais vivem milhares de variedades de plantas, a acumulação de água se faz nas raízes a quinze ou vinte metros abaixo do solo em regiões onde predominam duas estações anuais para suportarem a longa estiagem de seis meses.
O único ser dito racional é que descamba para a irracionalidade. O único ser, que usa a razão para acumular bens desnecessários, fortunas não utilizadas, riquezas ociosas e que trata irracionalmente as reservas de água dos mananciais, dos lagos e rios, dos bosques e florestas, é o homem. O ser humano é o único, entre todos os anéis, capaz de fazer desertos. Por fortuna, é capaz de desfazer desertos, mas a custos incalculáveis, uma vez que, nessa contabilidade, um dos passivos irrecuperáveis é o tempo. A preservação de mananciais facilmente acessíveis é necessária e importante para o abastecimento de populações interioranas, idosos, doentes ou em recuperação.
A irracionalidade do fazedor de desertos é compensada pela alegria e orgulho ingênuo de estar substituindo a nascente de água que eliminou, carbonizando ou impermeabilizando o solo, por uma caixa de água, abastecida por uma tubulação que percorre centenas de quilômetros.
Historicamente, os países chamados desenvolvidos cresceram, nas sociedades primitivas, mediante roubo e rapina. O trabalho escravo e sua venda estimularam a acumulação de riquezas e bens imóveis. Nas etapas coloniais, os países centrais acumularam transladando às metrópoles grande parte das riquezas produzidas nas colônias Na sequência, a acumulação se fez mediante trabalho escassamente remunerado e executado durante dois terços do dia, até o aparecimento dos sindicatos. A sociedade evoluiu para o pagamento de patentes, royalties e, mais modernamente, por intermédio de termos de câmbio internacionais descompensados em que mais unidades de matéria prima são necessárias para comprar uma unidade industrializada. Finalmente, a acumulação se dá mediante taxas usurárias e repatriamento de lucros obtidos em países emergentes.
Os processos de acumulação econômica indicam, então, que em algum ponto do sistema subtraiu-se riqueza que poderia estar em outra parte. Subtrai-se do trabalhador, de condições físicas de trabalho, de benefícios públicos ambientais, dos impostos devidos. A acumulação de água em tubos quilométricos e caixas com milhões de litros também implica processos de subtração visíveis e invisíveis, calculáveis e incalculáveis.
O sistema natural de acumulação tem como finalidade manter a satisfação das necessidades e requerimentos básicos da reprodução e sobrevivência das espécies através da interdependência dos processos vitais, cujo princípio é a economia de água. O consumo necessário dos bens acumulados em todos os momentos, fases e etapas da interdependência pelas espécies, constitui e assegura a sustentabilidade ecológica e a biodiversidade autorregulada.
Al Gore, cujo mérito foi colocar na agenda mundial o tema da mudança climática, progressiva e acelerada, com forte participação da mão do homem, pretende que, dentro do capitalismo seja possível conciliar crescimento e sustentabilidade. A corrente do crescimento zero, porém, argumenta que essa conciliação é impossível. O termo sustentável é inapropriadamente aplicado ao crescimento econômico, pois se refere ao processo de produzir mais para consumir mais, criando necessidades supérfluas, permitindo novos investimentos e engrossando o volume da acumulação individual, empresarial e estatal, dando conotação política ao aumento do patrimônio global medido pelo Produto Interno Bruto. O indicador mais apropriado seria o produto interno líquido, pois se deveria descontar do total produzido por uma sociedade os estoques diminuídos ou destruídos, a exemplo das ações que afetaram os ecossistemas, deixando imensos passivos ambientais impagáveis.
Não se trata, portanto, de consumir para assegurar a sustentabilidade ecológica da interdependência e a biodiversidade e, sim, para avançar nos processos tecnológicos mais adequados aos interesses dos produtores industriais e consumidores.
A espécie humana invade o sistema da interdependência – cadeia trófica – com mecanismos tecnológicos que impedem a defesa das demais espécies e, portanto, da biodiversidade. Ameaça a biodiversidade natural e silvestre produzida ao longo de civilização através de processos de domesticação culturalmente obtida, em troca de organismos geneticamente domesticados ou transgênicos, cujos resultados são ainda incertos.
Cria necessidades, estimula os desejos de satisfazê-las, perde o controle dos limites de uso dos elementos disponíveis e avança irresponsavelmente sobre os bens acumulados pela natureza, confiante em sua capacidade tecnológica de sobreviver. Assim o faz com o solo, com as árvores, com os animais e, especialmente com a água.
A espécie humana tem obrigação racional de dar maior importância à cadeia trófica da interdependência dos elementos vivos e inanimados para garantir a biodiversidade e a sustentabilidade ecológica da vida no planeta. Há evidncias que estamos a caminho de um “ecocídio”; também chamado colapso civilizatório.

ESTA GUERRA É NOSSA – II PARTE



É deprimente ouvir e ler o que se diz e se escreve sobre a guerra do Rio travada pela tropa de elite três. Tudo está centrado na força das armas e na ação coordenada e espetacular das manobras militares, sem dúvida uma das razões de aplauso do povo, talvez não a mais importante.
Tudo está sendo feito para que a felicidade e a alegria da população reconheça o poder da lei, das armas e da polícia do Estado, outrora colaboradora do fortalecimento do comércio de drogas ilícitas.
A vitória de vinte mil homens fortemente armados e treinados contra 500 livre-atiradores não pode ser motivo de orgulho para quem quer construir relações de liberdade e convivência democrática no país.
Pelos depoimentos apresentados, percebe-se que os moradores dessas comunidades são pessoas sem força social e sem coesão comunitária e, por isso, se amoldam a quem os ajuda. Ontem, recebiam auxílio dos chefetes do morro e se acomodavam às suas ordens. Hoje, estão todos, ou a maioria, aplaudindo a polícia, os militares, os marinheiros. Amanhã, criticarão a todos porque perceberão que armas e soldados não recolhem lixo, não melhoram o transporte público, não renovam escolas, não canalizam o esgoto, não plantam árvores nos parques nem humanizam a urbanização de encostas perigosas. Armas não são a solução.
Infelizmente, os que governam o Estado esquecem que seu papel é administrar população. Usar armas para resolver conflitos é mais fácil do que construir uma organização participativa nessas comunidades onde falta quase tudo.
Ali, há pais, mães, avós, jovens e crianças. Os que fugiram pelos atalhos dos morros têm pai e mãe. Em falta do lícito, conseguiram com o ilícito pôr geladeira, máquina de lavar, televisão na casa da mãe que, desesperada com a possível morte do filho, o entrega à justiça.
Quem, no governo, está preparado, treinado e tem vontade de colaborar na construção de uma organização comunitária participativa com essas pessoas? Esta é a alternativa.
Se organismos não governamentais, associações de base por categorias e secretarias de governo se unissem para liberar as energias populares, como se uniram as forças militares, com inteligência e treinamento, apoio financeiro continuado e irrestrito, igual ao prometido pelo presidente Lula ao Governador do Estado do Rio de Janeiro para combater o crime com armas, em poucos anos – não em quatro – a autogestão se implantaria definitivamente nos morros e o resultado das futuras eleições poderia ser diferente.
Se essas comunidades confiarem mais na força, na organização e na presença da polícia armada, elas nunca serão livres. Serão devedoras permanentes de favores que vêm de cima. Trocam apenas de chefetes.
Um dos direitos fundamentais do cidadão é a liberdade de pensar para se organizar, escolher e decidir. Participar é decidir ou não é nada.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

ENTREVISTA CB HELIODORA

Tendo em vista que os jornais alegam falta de espaço para publicar as respostas a perguntas por eles encaminhadas e, por isso, têm o hábito de higienizar, limpar e pasteurizar os textos, tomo a liberdade de publicar a integra de minhas respostas para o lançamento de HELIODORA. Pequena parte destas respostas foi publicada no jornal.


- Conte um pouco da sua infância: onde passou sua juventude e como surgiu o gosto por escrever?


Sou neto de família italiana que povoou a Serra Gaúcha no início do século passado. Aprendi a ler em casa, ao redor do fogão a lenha, como era costume na época. Nasci em 1934. Guardo do Grupo Escolar a lembrança de coisas simples e óbvias: a ave viu o ovo e o vovô viu a uva. Ali estavam todas as vogais. Estudei em colégio de padres franciscanos, onde enterrei minha juventude. Aos 15 anos, comecei a escrever diário, habito que continua até hoje. É meu primeiro ato matinal. Acumulo dezenas de cadernos cheios de segredos.


- O que trouxe o senhor para Brasília em 1972?


Conheci Brasília em 1967 e me apaixonei pelo silêncio do cerrado e pelos horizontes largos do Planalto Central. Prometi a mim mesmo que Brasília seria meu lugar. Na última viagem do trem que ligava São Paulo a Brasília, transferi-me para cá com a mulher e a filha de dois anos. Infelizmente, o Brasil perdeu o trem.
Com a mudança da capital para Brasília, os ministérios trouxeram para cá todas as instituições a eles vinculadas. Vim como consultor de um projeto da FAO em convênio com o ministério da agricultura. Havia feito pós-graduação na Universidade de Paris e na Universidade Tecnológica de Loughboro, na Inglaterra sobre desenvolvimento de cooperativas e associaições rurais. Terminei sendo convidado pela Organização Internacional do Trabalho para projetos de combate à pobreza na Colômbia e países andinos.


- Conte um pouco de como surgiu a inspiração para esta obra?


Ao longo de 38 anos de vida em Brasília, acompanhei a evolução e a involução da cidade e do Distrito Federal. O sonho de JK tornou-se nacional. O novo, o moderno e o futuro estavam aqui. Os pioneiros que construíram Brasília e a maioria dos imigrantes que os seguiram vieram buscar aqui o que não tinham em sua terra natal. Ninguém abandona sua terra sem dor e sem lágrimas. Estão aqui porque não podem estar lá. Mas quando podem, voltam.  Eu ouvi dezenas de histórias emocionantes de camponeses que lembravam com saudade a roça que ficou e o rebanho magro que morreu.  Vi no rosto a vergonha que sentiam por serem analfabetos na capital da república. Juntei todas essas angustias e esperanças em HELIODORA, filha de ninguém, sem registro de nascimento, fugindo da seca para ocupar uma beiradinha à margem da capital federal.

- É a primeira publicação do senhor?

HELIODORA é meu quarto romance e décimo livro. Meu primeiro romance O HOMEM PROIBIDO é autobiográfico. Conto nele minha trajetória de seminarista a sacerdote, carreira que abandonei  em 1968.  Foi publicado em 1997, em Brasília e traduzido para o espanhol e o finlandês. O segundo - EM NOME DO SANGUE - ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura, em Porto Alegre (RS). No ano passado publiquei AS PEDRAS DE ROMA, romance histórico em primeira pessoa, narrado por um papa agnóstico da Renascença - Giovanni de Medici  - que governou a Igreja católica na época da Descoberta, 1513 a 1521.

- Quem são suas influências literárias?

Tenho lido os clássicos brasileiros e estrangeiros. Sou um homem de antigamente. Dostoievski, Stendhal, Marguerite Yourcenar, Machado de Assis, Graciliano Ramos,  Oscar Wilde, Hannah Arendt, Aldous Huxley são sempre atuais. Eles anteciparam nosso tempo e o tempo de minhas netas. Gosto de escritor que pensa. Alguns leio pelo conteúdo. Outros, pela forma.

- Largou por completo a profissão de sociólogo e filósofo?

HELIODORA prova que não. É preciso ser sociólogo persistente e filósofo atento para entender os economistas de plantão, arquitetos,  engenheiros e especialmente os politicos de Brasília.

- Qual próximo projeto? Algum em andamento?

Escrever tornou-se um prazer irrecusável. Projetos não faltam. Para fevereiro, pretendo enviar à editora Paulo Francis um novo romance, singular e inédito na forma. O personagem é invísível e convive comigo e com todos sem ser percebido. O dia em que paramos para ouvi-lo, nosso pequeno mundo existencial entrara em nova órbita de convivência.

- Se o senhor pudesse traçar um objetivo para seu livro, qual seria, ou seja, o que você busca alcançar com a obra?

É uma singela escultura em homenagem aos que vieram a Brasília, simbolizada em HELIODORA, isto é, nos que se tornaram nossos pedreiros, nossos vigias, nossos garis, nossas empregadas, nossas diaristas, nossos caseiros. É uma história simples, do Brasil atual, desse Brasil profundo que não é captado por uma política humanista nem pelas estatísticas oficiais. As estatísticas se preocupam com números e nào com sentimentos, com dor física e lágrimas de saudade. Quis lembrar o que as estatísticas não dizem.

- Como o senhor classificaria sua "maneira de escrever"?

Cada escritor conta a história à sua maneira. Por temperamento, gosto da ironia e de pôr em claro as contradições dos discursos e o vazio da retórica dos donos do poder. Tenho profunda simpatia pela liberdade de pôr vírgulas sem me impressionar com a autoridade arbitrária de gramáticos e sintáticos.

 - O senhor compararia seus "trejeitos" de escrita aos de algum outro escritor?

Conscientemente, não. Mas, dominados pelo inconsciente, é provável que ocorram imitações ocasionais. Mas procuro ser original e escrever da forma que me satisfaça e seja compreensível ao possível leitor.

- O que você precisa ter por perto quando escreve (bebida, talismã, música)?

Meu companheiro de escrita, nas primeiras horas da manhã, é o chimarrão. No mais, é o silêncio e o isolamento que me inspiram.

- Algum convidado especial no lançamento do livro, dia 24?

O vigia do meu bloco, Leandro.

- O que o senhor sentiu quanto apertou o ponto final do teclado e percebeu que havia concluído a obra?

Fiquei com saudade de Heliodora, Alcemiro, Gumercinda e do Velho Formiga com os quais convivi 4 meses e meio.

- Mais alguma coisa que o senhor gostaria de ressaltar e que julga importante mencionar?

Heliodora e Alcemiro viviam numa propriedade castigada pela seca. Vivemos num país de grandes chuvas mesmo em áreas de longas secas, capazes de alagar e destruir cidades. A água cai e se perde. Não sabemos cuidar das nascentes, dos rios e dos lagos. Em vez de revitalizar com inteligência o Rio São Francisco, o dessangramos com a transposição. Tira-se sem repor. Reflorestar nosso país é uma das mensagens de Heliodora.

ESTA GUERRA É NOSSA




A guerra do Rio de Janeiro é nossa. Estamos todos convocados pela mídia, com fraseado limpo, higiênico, pasteurizado e acrítico para fazer parte do espetáculo. Noticiários sofisticados, ao vivo, imagens obtidas de helicópteros nos dizem que a guerra é nossa. Esta guerra não ataca a ponta da produção nem a do consumo. É uma guerra sem fim, situada no extenso corredor da distribuição que se camufla de mil modos para chegar ao consumidor.
Nossos impostos são vistos e ouvidos na rua em forma de tanques, blindados, helicópteros, centenas de viaturas e caminhões carregando soldados, telefones, rádio e canal de TV e, no front de combate, mais de 20 mil homens.
Por melhor aparelhados que estejam esses meninos da droga –  também ditos e repetidos por autoridades e jornalistas: “elementos, bandidos, traficantes, criminosos, terroristas” – serão exterminados ou presos em pouco tempo. Alguns escaparão e se tornarão, com o tempo, os novos chefes da intermediação do crack, da maconha ou da coca fina.

As drogas

As drogas, sua evolução e aperfeiçoamento, são mais antigas do que a Igreja católica. No andar dos séculos, seu comércio se consolidou em grandes negócios, transformados em empresas transnacionais e laboratórios gigantescos onde o produto é elaborado. A produção de remédios, – também chamados drogas e vendidos em drogarias – é apenas um dos braços. Umas drogas amenizam a dor do corpo. Outras, a da alma. Como ambas as dores não podem ser eliminadas, drogas continuam sendo preparadas, vendidas e consumidas.
Drogas lícitas e ilícitas foram declaradas por critérios legais. Segue-se o comércio lícito ou ilícito. Ambas incluídas no largo conceito de comércio. O comércio de órgãos humanos, ilícito, existe e fala-se em bilhões de dólares. O comércio de drogas, ilícito, repete-se todos os dias, também alcança bilhões de dólares.
Por trás do comércio de drogas estão os fabricantes de armas (Alemanha, Estados Unidos, Rússia, Brasil...), organizações paramilitares, fiscais da alfândega, fronteiras desprotegidas, aeroportos clandestinos e oficiais, laboratórios químicos, polícia corrompida ( no Rio, a policia esteve associada aos traficantes intermediários durante dezenas de anos, impedido a ação do Estado), deputados, juízes, advogados, laboratórios produtores e, obviamente, consumidores espalhados pelo país e pelo mundo. Como se combate o comércio de drogas? Leis que o brasileiro costuma desprezar. Fiscalização da polícia rodoviária e aeroportuária por amostragem e golpes de sorte. No Rio de Janeiro, a aliança entre consumidor, polícia corrupta e intermediários da droga garantiu, ao longo de dezenas de anos, a consolidação do negócio de bilhões. Por que o Rio de Janeiro? Por que ali estão os cabeças?

Complexo do Alemão

Não podemos acreditar que no Complexo do Alemão ou no Cruzeiro estejam os cabeças do tráfico, também chamados narcotraficantes. Ali está um grupo de malandros aventureiros intermediários, como são intermediários os vendedores de geladeiras numa cidade do interior ou um restaurante que usa uma franquia internacional como McDonalds. A batata frita transgênica oferecida num desses restaurantes pode ser proibida e o proprietário da franquia, multado ou preso. Mas a batata frita continua sendo pedida pelos consumidores. E os tubérculos transgênicos serão produzidos em algum lugar. Quem é o cabeça?
No Rio, os intermediários da droga caíram no conto das armas. Os meninos dos morros são uma cópia dos muchachos de El Mexicano ou de Pablito Escobar. Alguém lhes fez acreditar que não há poder sem exército e sem armas. Como o negócio da droga rende bilhões, há que reparti-los com alguém. Esse alguém é o produtor e o intermediário do bilionário negócio das armas. Nascem os chefetes. Na Colômbia, os cabeças não se concentraram nos picos da Cordilheira que enlaça Bogotá. Medellin sediava o quartel general de Pablo Escobar e Cali, o da família Orejuela. Sucursais invisíveis atuavam em todo o território colombiano. Como eram negócios de bilhões, eles precisavam de defesa do produto e criaram as milícias paramilitares, com um pé nas forças armadas oficiais e o outro no sistema judiciário para defendê-los na justiça. Pablo Escobar foi morto por uma facção do exército que não pôde ou não quis participar do butim do “crime organizado”. Antes dos cabeças, porém, morreram milhares de braços armados, fiéis ao negócio rendoso.
A meninada do Rio de Janeiro tentou fundar as repúblicas da droga baseadas na força das armas cada vez mais modernas, superando as dos militares que futuramente se associariam a eles por serem mais fracos e por quererem participar desse poder paralelo com a força da lei. Os homens da polícia não tinham armas nem salários, mas tinham a lei a seu favor. A lei elástica. A proteção aos testas de ferro era manipulada acima e à revelia da lei.
Os morros do Rio de Janeiro são um dos elos entre o produtor e o consumidor. Esses bilhões de que se fala vêm dos consumidores. É necessário insistir que os bilhões faturados por agências de automóveis, celulares, geladeiras, máquinas de lavar ou televisões saem do bolso do consumidor? Pois, essa é uma das pontas que demanda, pede, suplica, implora qualquer tipo de droga. A outra ponta, a que investiu no laboratório de produção, o fez na certeza de que recuperará com folga a fortuna aplicada.
É preciso dizer que esses bilhões também entram no PIB. Com eles constroem-se castelos, mansões, piscinas, campos privados de esporte, hospitais privados, com a colaboração de cartórios, juízes, políticos, constituindo-se num labirinto de acumulação de riqueza lavada em invisíveis lavanderias.
Nesses dias que passaram, quantos bilhões foram despendidos para acabar com um negócio que rende bilhões? E quem está sendo destruído nesta guerra? Vamos lembrar que os da frente de batalha são sempre jovens cidadãos – também chamados soldados, policiais, militares. Na frente de batalha não se veem generais. Eles transmitem ordens por rádio. Dão entrevistas, informações e contrainformações.
 O cidadão soldado é enviado ao morro com uma arma na mão. Diante de uma R15 do menino do morro – cidadão espúrio, elemento, bandido, criminoso, terrorista sem pai nem mãe – diante da R15 apontada para ele, certamente, o cidadão soldado não esperará ordem do general ou do secretário de segurança para atirar e se possível matar. Vai à guerra quem tem débitos. E os meninos do morro e os policiais do BOPE têm débitos. Foram treinados, ensinados, juraram defender o chefete ou a pátria. Ir à guerra tornou-se um dever. Os que têm crédito não vão à guerra. Nem o general, nem o comandante, nem o secretário de segurança, nem o Ministro da Defesa precisam mostrar sua coragem. É suficiente aplaudir e enaltecer a valentia de seus comandados.

Essa guerra é nossa.

É nossa porque os consumidores da droga são nossos, os importadores são nossos e os distribuidores são nossos. Os soldados e os meninos do morro são nossos. Muitos ingredientes de fabricação das drogas são nossos. Foram comprados com o dinheiro das drogas. Parte das armas é nossa. A outra parte que veio de fora, em poucos dias, será nossa. Os que morrerem nessa guerra se dividirão em dois grupos: os nossos inimigos e os nossos heróis. A paz nos morros será imposta e garantida com nossas armas. A mais objetiva das alternativas que soubemos encontrar para destruir a organização dos criminosos que vendem drogas para o rico cidadão de Ipanema ou Copacabana, cansado de ir à praia, a Paris, Londres, ou de ver televisão, ou escrever estultícias no twitter.
Dirão que o Rio é o Rio. É diferente de tudo o que existe no mundo. São circunstâncias especiais. E além de tudo, será sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Os criminosos estavam dominando a polícia com polpudas propinas e abastecendo os consumidores com tremenda eficiência. Era dinheiro demais, era um poder soberano. Tal era a fama dos meninos dos morros.
As facções ditas terroristas que dividiam o dinheiro e o poder poderão ser extintas. É essa a intenção e a ação. Mas que parte da organização que controla as drogas está sendo debelada? A que tem armas? E a outra parte da organização, a que tem seus chefetes na ponta do consumo, com que armas será combatida? Com o divã do Gikovate? Com internação de dois anos num Spa de luxo? Quem não sabe que, no Distrito Federal, o comércio de drogas é intenso? Se o estoque acaba no Gama, o Engenho das Lajes, que recebe de outra fonte, pode repor. Em Santo Antônio do Descoberto, já em Goiás, está equipado para contribuir com a expansão do negócio.
Então, a pergunta é obvia. Por que só no Rio de Janeiro? Só lá existe o “crime organizado”? Ou há outras razões escondidas sob as armas dos meninos dos morros do Rio?
Quanto representam do PIB os tanques, os blindados, os navios, os aviões Rafale, o efetivo permanente do exército e o temporário? E essa operação de guerra, no Rio, com mais de 20 mil homens em combate, incrementa o PIB ou o reduz?

Alternativa

Vamos supor alternativa diferente. Como se trata de uma guerra que é nossa, por que não investir metade dos milhões que se gastam em armas, soldados, tanques, helicópteros, operações espetaculares de ataque, mortos e feridos, na ponta privilegiada do consumidor. Não com o instinto cego e suicida do crescimento econômico, mas com a inteligência do desenvolvimento humano. Se, em cinco anos, conseguíssemos reduzir o consumo de drogas, em todo o território nacional, em 80%, que aconteceria com os chefetes e os meninos do morro?
Para pensar desta forma é preciso não ter sido treinado para a guerra e não ter sido eleito para resolver tamanho problema com guerra. Claro, sou ingênuo. Não compreendo o Rio nem esse negócio de armas e de guerra. Dez anos de trabalho, na Colômbia, dirigindo projetos de combate às causas da pobreza (meu livro “Por que son pobres los campesinos” teve tiragem de 10 mil exemplares) e participado de comissões de paz, não me ajudam a compreender essa nossa guerra.
Como todas as guerras, a do Rio também tem suas verdades e inverdades. A facilidade com que a Grande Aliança de todas as forças armadas do Rio entrou nos redutos considerados intransponíveis pela inteligência estratégica da guerra produziu na opinião pública um sentimento de frustração. O castelo era de areia e os moinhos, de vento.
Diante desta guerra do Rio, “por que não dizer do Brasil” e, portanto, nossa, eu me escondo do tiroteio e me pergunto: O que estamos combatendo? A droga? Os chefetes-gerentes do mercado da droga nos morros do Rio? Os supostos traficantes e sua rede nacional de distribuição? Armas modernas que faltam à polícia? A empresa invisível que atua no mercado mundial da droga? Os pontos de venda de droga que estão em mãos dos meninos “bandidos” dos morros do Rio? Os que se corromperam e enriqueceram com a extorsão do dinheiro grande pela polícia, por milicianos, advogados, juízes, altos executivos, políticos? O consumidor que garante o fluxo de bilhões de dólares aos fabricantes da droga?
Uma vez conquistada a paz pelas armas, os soldados e as armas permanecerão nos morros como libertadores? Não tendo mais inimigo armado, a quem combaterão os policiais? Até agora só ouvimos falar em armas e guerra. Todo este espetáculo gira em torno de armas. Primeiro, traficantes armados. Depois, milicianos corruptos, ex-policiais armados. Agora, a polícia pacificadora armada.
Minha conclusão é que as armas mais poderosas são frágeis para garantir a paz. É surpreendente, quase inacreditável que autoridades do governo confessem que, nos últimos 30 anos, os bandidos do tráfico não permitiram a entrada do Estado nas repúblicas da droga. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO

SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO I

A superpopulação se defronta com distintos aspectos da organização social e as soluções para administrá-la são complexas. Desembocam, em última análise, numa medida drástica e constante de controle dos nascimentos. Um bebê implica em inúmeros cuidados, a começar com a necessária disponibilidade de 200 litros de água por dia. Por isso, o planejamento para racionalizar a expansão da população é decisão preventiva a fim de evitar os efeitos e os requerimentos da superpopulação.
Hoje, a superpopulação é um fato local, regional, nacional e mundial. Há projeções otimistas do ponto de vista estatístico porque a curva dos números percentuais é descendente ao longo de algumas décadas vindouras. Mas os números continuam a crescer mesmo que para os demógrafos os percentuais menores lhes dêem satisfação matemática. Há projeções pessimistas da superpopulação pelo singelo fato de que esses números respiram, são vivos, dotados de carne, osso e sentimentos. Esses números se movem no espaço e no tempo. É no espaço que se realiza a vida temporal. É com as múltiplas vidas espalhadas pelos espaços que se determina o tempo e se expressam os sentimentos desses números vivos.
É do espaço que se obtém o alimento, o ar, a água. É no espaço que se ergue a casa. É desse espaço que se eliminam ou retiram vidas para a sobrevivência das espécies. É nesse espaço que se processa a interdependência das espécies, na medida em que se salvaguarda a biodiversidade. É nesse espaço que se cria o ambiente favorável ou desfavorável para a reprodução da vida. Quando, nesse espaço, se limita a interdependência das espécies, se compromete a sobrevivência, se descontrola a reprodução e se obstrui a expressão dos sentimentos humanos, os sinais da superpopulação indicam situação de alarme.
A tendência da superpopulação é concentrar-se em espaços onde as condições de sobrevivência, ainda que ilusoriamente, se apresentam mais favoráveis. A incapacidade das instituições locais, regionais e nacionais de administrar a população e o desinteresse desta em assumir a liberdade de se conduzir levam à concentração em grandes cidades onde se alojam o poder, a autoridade, os altos negócios e os serviços básicos. Resulta, dessas megaconcentrações causadas pela superpopulação, a superorganização dominada por um poder central de onde partem as mais diversas e surpreendentes decisões. As necessidades próprias de cada grupo etário, de gênero, a diversidade de atividades econômicas, políticas, culturais e sociais, a mobilidade e o intercâmbio entre comunidades, centros de serviços e locais de trabalho criam uma rede intrincada de administração nem sempre adequada a atender equitativamente o universo da população.
O poder político, responsável pelo ordenamento e cumprimento das leis, se concentra, via de regra, em oligarquias dirigentes sustentadas pela força da organização econômica produtora de bens e serviços.



SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO II

As metrópoles e as grandes cidades que a elas se assemelham são resultados da superpopulação expulsa de algum espaço. Ela requer a montagem de uma superorganização. As relações pessoais e o potencial de expressões individuais nas megalópoles  dão lugar aos obrigatórios contatos formais e burocráticos no cumprimento de contratos não assinados de prestação e uso de serviços.
Nem o lar, nem a rua, nem o banco da praça são lugares onde as pessoas podem dizer e mostrar que são humanas ou ousam tratar da condição humana. O carro novo, a tevê, o celular, a empregada doméstica, o roubo da joalheria, o material escolar das crianças, o precário atendimento no posto de saúde, o transporte público deficiente, o preço da carne, o desemprego ocupam os diálogos rápidos pressionados pela correria diária.
A última palavra é de desânimo e paciência. Mesmo sendo comuns as dificuldades, cada qual busca safar-se delas como pode, ainda que em prejuízo do outro ou passando por cima dele. Tem-se observado, ao longo décadas, tentativas e esforços para criar no bojo tumultuado das metrópoles, com o fim de humanizá-las, alguns quarteirões em comunidades solidárias. Os atuais condomínios fechados podiam ter esta função, não se tivessem transformado em guetos e prisões disfarçadas de proteção contra roubos, guardados por exércitos de vigilantes, controlando entradas e saídas de carros conduzidos por indivíduos que mal se conhecem.
A comunidade de pessoas completas, de carne, osso e sentimentos, incentiva os indivíduos a cooperarem em todos os aspectos da condição humana e não apenas a competir como executores de funções específicas. Há mais de cem anos, humanistas como Hilaire Belloc, Mortimer Adler, Dubreuil, Arthur Morgan, Baker Brownell, Marcel Barbu ou Pechkam, cada um em seu campo alertaram para a massificação do homem na grande cidade, na grande organização industrial e na superorganização da burocracia governamental. O Banco Mundial, o FMI, os bancos centrais, os polvos multinacionais, os cardeais da globalização, os defensores intransigentes do mercado invisível e ordenador de todas as decisões econômicas, os fanáticos do crescimento econômico e os adoradores do PIB apagaram todos esses esforços de construção de um mundo de pessoas e se entregaram à feira de consumo onde as mãos substituem a cabeça.
A superpopulação está dopada pela superorganização que antecipa grandiloquentes soluções antes mesmo de analisar os problemas. O cidadão que sofre as dificuldades mais surpreendentes do dia a dia se vê atropelado por decisões políticas, jurídicas, econômicas, sanitárias, sociais, comerciais e fiscais de resultados cada dia mais insatisfatórios.
As barreiras levantadas diante do cidadão são tão sólidas e intransponíveis que, aos poucos se acomodam aos ditames dessa escravidão política. A indiferença generalizada parece dizer: usem nossa liberdade, decidam por nós e deixem-nos em paz.



SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO III

Dostoievski previu o caminho da insensatez e da abdicação da liberdade na organização da vida política e social da sociedade. Diz o Grande Inquisidor: “No fim, hão de depor a liberdade aos nossos pés e hão de dizer-nos: torna-nos teus escravos, mas alimenta-nos”. Aliocha Karamazov pergunta ao irmão se o Grande Inquisidor (presidente ou imperador) está falando ironicamente. Ivan responde: “Absolutamente nada! Ele reivindica como mérito para si próprio e para sua igreja (governo, império) o fato de ambos terem usurpado a liberdade dos súditos, e assim o fizeram para tornar felizes os homens”. E acrescenta o Grande Administrador: “Nada foi tão insuportável para um homem ou uma sociedade humana quanto a liberdade”.
Que fazer com a liberdade além de protestos, cartas de repúdio, baixo-assinados, queima de ônibus, passeata de alerta? O risco de perder a liberdade é deixar aos governantes decidirem o caminho de nossa felicidade. Deixar à propaganda da grande indústria e do alto negócio convencer-nos de que seremos felizes consumindo o que produzem e vendem. O risco de perder a liberdade, se já não a perdemos, é autorizar a superorganização a nos dizer todos os dias que deles depende nossa felicidade. O risco de perder a liberdade, se já não a perdemos, é aceitar que os novos educadores, escondidos atrás de sagazes aparatos eletrônicos, nos convençam sem dor de que é melhor amar a servidão, alimentada com pão e circo, do que assumir responsabilidades pessoais dedicando alguns momentos do dia a pensar. O risco de perder a liberdade é entregar-se à ditadura democrática de instituições elásticas dirigidas por prestidigitadores políticos acima de qualquer controle.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

PENSAMENTO ÚNICO



Ouvi, ontem, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, análises de uma cientista política e de um jornalista sobre o resultado do segundo turno das eleições presidenciais do Brasil. Ambos, cada qual com seu conjunto de informações que comprovavam suas conclusões, se restringiram a peças do quebra-cabeças que eles mesmos montaram.
A cientista política tentou, poupando a inteligência, justificar o comportamento do governo Lula, o projeto do Partido dos Trabalhadores que o sustenta e os programas sociais cujo objetivo primordial é “governar a pobreza” e “eliminar minimamente a pobreza”. Não explicou o que significa governar a pobreza nem até onde vai o eliminar minimamente a pobreza. Esforçou-se por diferenciar dois sistemas antagônicos de governo: o da igualdade, representado pelos partidos alinhados à esquerda (PT, PMDB, PSB...); e o da liberdade econômica, sinônimo de liberalismo e Estado enxuto, defendido pelos débeis partidos de direita (PSDB, DEM).
Em nome da igualdade (conceito não definido) ou da redução das desigualdades, todos os programas de governo estão justificados, do Bolsa Família à aplicação do Enem como este é hoje. Para a cientista política, trata-se de inovações estratégicas do atual governo que precisam de aperfeiçoamento. Conseguiu distinguir o significado de cidadania para os defensores da liberdade e para os que propugnam a igualdade. Os da direita querem um cidadão competitivo para enfrentar as forças cegas do mercado. Os da esquerda conduzem o cidadão a obter seus direitos com políticas públicas amparadas com massivas doses de assistencialismo.
O pensamento único, contra o qual a sociedade se rebelou durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, volta com toda a força. Tudo o que está sendo proposto no atual governo está certo e é incontestável. Não há espaço para a crítica filosófica digna de um intelectual. A vitória da candidata imposta por Lula garante essa verdade absoluta.
O jornalista experiente limitou-se a arrolar fatos publicados na mídia para historiar a trajetória da indicação solitária da candidata da continuidade. Lembrou a estratégia de marketing, da propaganda oficial e do uso intensivo da máquina governamental e dos aparatos institucionais postos a serviço da candidata pelo presidente em exercício. Lula incentivou a criação em série de programas e projetos (PAC 1, 2, Minha Casa) que dessem visibilidade à candidata. Essa atitude destemperada do presidente, alimentada por sua alta popularidade, o levou a desrespeitar as leis eleitorais a ponto de lhe valerem, pela primeira vez na história eleitoral do país, multas pecuniárias impostas pelo Tribunal Superior Eleitoral, pagas por seu partido.
Nenhuma palavra, durante três horas, sobre democracia participativa, tendências do crescimento econômico depredador da biodiversidade e da interdependência ecológica das espécies vivas e modificações ambientais.
Nenhuma palavra sobre valores éticos, sociais, educativos e políticos, ficha limpa, impunidade e escândalos que atingem o coração do poder. Não ouvimos nada de novo porque a inteligência prospectiva foi poupada em benefício da exaltação da conquista do poder e da continuidade pragmática do governo vitorioso nas urnas que deixaram 30 milhões de eleitores sem opção e fora do processo eleitoral, além dos 44 milhões que se opuseram à candidata oficial.
Nenhum dos expositores ousou prever como será o próximo governo pelo simples fato de que “ainda não começou”. Assim, será mais fácil prever o passado do que prognosticar tendências para o futuro. Ouviremos chavões cotidianos sobre o direito de os pobres comprarem carro já que, pela primeira vez na história deste país, as elites não estão no poder. Ou de criar uma classe média abobada, incapaz de ler um livro por ano, mas feliz por poder consumir toda sorte de quinquilharias e encher a casa de produtos desnecessários que garantam o crescimento econômico e engordem o PIB.
Não é o cidadão que tem direitos constitucionais à educação igualitária, ao transporte público eficiente, limpo e confortável, à atenção médica preventiva, à participação consciente nas decisões políticas sobre prioridades nacionais. Joga-se com a emoção estimulada por todos os meios de propaganda acima e abaixo da consciência para dar lugar a esse conceito indecente de “eliminar minimamente a pobreza”.
O que se poderia esperar do novo governo é, em meio à turbulência administrativa de um país imenso e superpovoado, que se dê espaço não apenas aos números estatísticos, mas principalmente ao uso da inteligência para que o futuro de nossos filhos e netos seja vivido com mais fraternidade e solidariedade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

CARTA A ALDO



Tenho acompanhado alguns debates entre professores da UnB com sua participação. Os gloriosos feitos da economia, especificamente creditados ao governo do presidente Lula, não podem ser ignorados. Seria humilhante para o povo brasileiro se o país não andasse para frente. Todos os governos tiveram momentos de céu de brigadeiro na economia e também de tormentosos ciclones como o de 2008/09.
Um governo prepara caminhos para o outro. E há caminhos que precisam de reconstituição. Espera-se que Dilma faça mais e melhor, uma vez que seu antecessor, é opinião geral, deixou as pistas abertas.
O que parece estranho é a débil interpretação que se faz de aspectos importantes da vida atual, especialmente a ênfase que se está dando ao consumo e às facilidades de crédito. A propaganda, as formas de sugestão quase autoritárias canalizadas pelos governantes, pelos analistas e pela mídia criaram tal obsessão consumista a ponto de provocar má consciência e acusar de lesa-pátria os que não compram, ou resistem em intumescer os percentuais estatísticos nas datas comemorativas ao longo do ano.
 O pobre tem direito a carro, geladeira, máquina de lavar! Essa ordem foi dada em praça pública sob aplausos. O pobre ou o cidadão têm direitos? Por que o carro é um direito? Por que não um transporte coletivo eficiente, barato, limpo e confortável? Essa técnica de propaganda está contaminando os cérebros.
Estamos sufocados por números e percentuais e, pior que tudo, os aceitamos e acreditamos neles como se fossem oráculos da verdade. Eles chegam a alterar o funcionamento do cérebro e a capacidade de pensar. Acreditamos que a economia capitalista, como a nossa, serve aos pobres e será capaz de diminuir a desigualdade que separa os cidadãos de nosso país. Querem nos vender uma receita demasiadamente fácil.
Aceitamos o argumento de que a desigualdade diminuiu quando 1 passa para 2 e 100 passam só para 150. E nos contentamos com o 100% e o defendemos como êxito e, ao mesmo tempo, acreditamos que o 50% é prova de diminuição da desigualdade.
Vamos supor que o SM aumente de 10%, passando de R$ 510 para R$ 561 e que o aumento de um ordenado de R$ 30 mil seja apenas de 5%. Os R$ 1.500 acrescidos representam três vezes o SM. Onde está a igualdade ou como diminuiu a desigualdade? Que se compare o grupo de SM e sua trajetória de renda é um aspecto lógico importante. Mas tomar essa trajetória de renda para comprovar a diminuição da desigualdade afigura-se como falsidade ideológica e atentado à lógica da realidade. Estamos consciente ou inconscientemente defendendo o status quo, os nossos privilégios.
Somos vítimas da propaganda subliminar de que o consumo vai salvar a economia e que o grande trunfo é levar as massas aos centros comerciais. A loucura do poder está dominando o inconsciente político de intelectuais e da população por essa propaganda veiculada abaixo do consciente e acima do consciente traduzido pela palavra felicidade. Felicidade de consumir.
A proposta de novos impostos segue a mesma lógica. Os impostos caem no BNDS e, daí, para o pré-sal ou tomam caminhos por decisões incontestáveis.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

DILMA, PRESIDENTE



Passado o furacão da propaganda eleitoral e realizado o voto universal, emergiu das urnas uma mulher para presidente do Brasil. O povo estará cansado de homens emasculados pela tortura política e, por isso, elegeu uma avó para presidir o país? Ela cuidará da política e os homens da economia? Ou vice-versa?
Os meses que precederam as datas de votação popular foram marcados por tumultos verbais no campo eletrônico da guerra virtual. Viram-se agressões nas ruas, acordos espúrios entre inimigos históricos, bate-boca sonolento em debates de TV. Ouviram-se muitas promessas do tipo “eu vou fazer”, “eu acho” e nenhum plano de governo com horizonte previsível.
Esse tornado eleitoral não logrou mover o interesse dos eleitores e uma boa parte deles foi às urnas para cumprir o ritual da democracia. Dos 135,8 milhões de cidadãos inscritos, com direito e dever de votar, 38,5 milhões se abstiveram ou anularam o voto. Dos 97,2 milhões de votos válidos, 54,4 milhões (40%) foram para Dilma e 42,7 milhões (31%), para Serra.
Nenhum desses números é exato como, alias, pouco é preciso no país do jeitinho. Somos o país do mais ou menos. Bom, bom, não é, mas... passa. Escondemo-nos matreiramente atrás da margem de erro. Três pontos para mais ou para menos.
A democracia eleitoral brasileira busca salvar-se com duas tentativas para se colocar acima da metade dos eleitores. Metade mais um é indício de maioria e, portanto, de aceitação democrática das futuras decisões que ninguém adivinha. Os candidatos, ou por serem muito bons ou muito ruins, mesmo com dois turnos, não conseguiram que um deles alcançasse, pelo menos, metade dos eleitores inscritos.
A democracia sobrevive de povo. Não se pode crer que os candidatos estejam satisfeitos com esse fracasso eleitoral. Acostumamo-nos ao mais ou menos e à imprecisão, às promessas e às mentiras. Por isso, 38,5 milhões de pessoas, cidadãos, eleitores não nos comovem nem inquietam. Esse número representa uma população maior que a de todos os países escandinavos ou quase oito vezes a da Finlândia e pouco menos que a da Colômbia.
A presidente eleita com 40% dos votos do eleitorado brasileiro, com sua experiente trajetória de mãe e avó, terá que lançar um olhar maternal para os desejos ocultos e insatisfeitos da expressiva população que jaz à margem da democracia.

Observação:Quem quer saber por que ressurgiu a CPMF é só olhar para o mapa resultante das eleições. O vermelho na parte de cima e o azul, na de baixo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

HELIODORA

TENHO O PRAZER DE COMUNICAR AOS QUERIDOS BLOGUEIROS E BLOGUEIRAS QUE
HELIODORA - MEU QUARTO ROMANCE E DÉCIMO LIVRO,  SE OFERECE PARA POSSE

 NO CARPE DIEM, DA 104 SUL,
NO DIA 24 DE NOVEMBRO
A PARTIR DE 19 HORAS
COM DIREITO A UMA TAÇA DE VINHO.

HELIODORA MORA EM BRASÍLIA E FESTEJA O CINQUENTENÁRIO DA CIDADE.
A TODAS E A TODOS UM BEIJO DE

HELIODORA

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

CARRO, DIREITO DO POBRE



Esse decreto foi emitido publicamente pelo presidente Luiz Inácio. Em sua filosofia sindicalista de que tudo tem que ser negociado, fundamenta-se em direitos.  Frente a frente, patrão e operário, capital e trabalho. Todo cidadão é igual perante a Constituição e as leis do país. É um princípio consagrado e indiscutível. O pobre não só tem o direito de ter carro. Acima de tudo, tem o direito de ser pobre e ser defendido e protegido como tal pelo poder público.
Quando se afirma que o pobre tem direito a comprar geladeira, máquina de lavar e carro, significa dizer que a pobreza é uma virtude invencível e indestrutível. Pode-se permanecer pobre. O importante é consumir. Não há carro nem máquina de lavar e, agora, casa de 32m2 que possam eliminar o direito de ser pobre. Nunca antes neste país se havia proclamado que a TV era direito do pobre. Os pobres exerceram esse direito há dezenas de anos e criaram uma floresta de antenas espinha-de-peixe sobre suas casas sem a chancela da autoridade pública.
Na classificação sociológica do presidente, auxiliar de sua comunicação habilidosa com as “massas”, há pobre com dinheiro e pobre sem dinheiro. O pobre com dinheiro tem direito a carro e, o sem dinheiro, a auxílio financeiro para comer três vezes ao dia. Compreende-se a boa intenção do presidente. Ele conseguiu emprego na indústria de automóveis, um dos pilares da economia brasileira. Ele sabe o valor do carro, não só em dinheiro como e, principalmente, em prestígio e autoestima. “Fulano já tem seu carrinho” é a sentença confirmadora do sonho mais alto do trabalhador. Não é propriamente a necessidade inadiável de ter carro e, sim, assegurar um lugar entre os privilegiados que compõem a academia dos vitoriosos.
Poucos como o presidente Luiz Inácio compreendem o prazer de estar nessa academia, permanecendo pobre. De presidente do sindicato passou a presidente da república. Do volante de seu carro chegou ao comando de um avião. Talvez se considere pobre, trabalhador e abençoado por Deus com duas ou três aposentadorias e indenizações merecidas. E, sem dúvida, quer isso para todos os pobres.
Mas, na vida real, em contraposição aos desejos honestos do presidente em sua maneira direta de falar ao cidadão, o automóvel nem sempre confere benefícios a seu dono. Josivan é pedreiro independente. O contrato de trabalho depende de sua habilidade, da qualidade do serviço, dos conhecimentos práticos que adquiriu e da capacidade de negociar o preço da mão de obra. A outra folha do contrato, a mais forte, está com o contratante. Josivan não completou o ensino fundamental. É casado. Tem três filhos, um aparelho de TV e som. Os serviços de saúde são os da conhecida rede pública de hospitais e postos locais. Paga aluguel, água e luz.
Recebeu, por uma obra executada, algum dinheiro e deu entrada na compra do primeiro carro de terceira ou quarta mão, na periferia do DF. Confiou em seu trabalho para pagar o restante da dívida. Não conseguiu licenciar o carro. Os gastos de oficina para satisfazer os requerimentos do Detran deixaram o carro na ilegalidade. Despejado por não poder pagar o aluguel, Josivan mudou-se para outra casa. Mas o direito de comprar automóvel soou novamente. Com o pagamento de um serviço e a perspectiva de outra empreita já acordada, adquiriu outro carro de terceira mão, uma vez que o anterior já fora vendido. Demoliu parte do muro da varanda da casa alugada e abrigou nela o sonho a que tem direito.
Em frente à casa, protegido da chuva, do vento e do sol, repousa, cuidadosamente encerado, o automóvel de Josivan. Não pode sair nele. Falta dinheiro para o combustível e o carburador entupido precisa reparo. A conta da luz está atrasada de dois meses, ameaçada de corte pela Companhia Energética de Brasília. Os aluguéis de três meses estão sendo protelados. A mulher do Josivan precisa do arroz e do feijão. O contratante, segundo Josivan, é mau pagador e o está “enrolando”.
Quem ousará negar ao pedreiro independente Josivan o direito a comprar um carro?

sábado, 30 de outubro de 2010

DE PERNAS PARA O AR



DE PERNAS PARA O AR

Manuelzinho é meu auxiliar na manutenção do funcionamento da Biblioteca Popular do Engenho das Lajes, localidade pobre e afastada, nos limites fronteiriços do Distrito Federal com o estado de Goiás, a 50 quilômetros do Palácio do Planalto.
É muito prestativo e tem bons comentários sobre temas essenciais como honestidade, retidão, moralidade política, vida familiar, religião. Não terminou, em criança, a escola primária por razões próprias de um país grande, com população maior do que a possível capacidade de ser atendida. Está desempregado, pois não tem especialização alguma e passou dos 40 anos.
Sua tarefa é limpar a sala, tirar o pó das estantes e dos livros. Nesse processo de limpeza, de retirar os livros e recolocá-los repete-se um fato inexplicável. O curioso é que os livros voltam ao lugar de cabeça para baixo. Já havia notado várias vezes que, nas estantes da biblioteca de minha casa, a diarista comete o mesmo ato. Mostrei a ambos o lado correto e em qual posição devem estar os livros depois de limpos.
- Veja, Manuel, o dorso do livro fica para fora e, esta parte, onde está o título da obra e o nome do autor, põe-se para cima.
Disse o mesmo, várias vezes, à diarista. Dias atrás, uma leitora procurava um livro de poesia. Fui à estante para lhe mostrar a possível obra. Todos os livros estavam de cabeça para baixo.
Pedi a atenção de Manuelzinho. Olhou-me e se escusou: "Acho que me enganei". A resposta não me convenceu. É difícil mesmo saber qual é a explicação. Pode ser simplesmente um gesto automático que vem do trabalho que ambos, Manuelzinho e a diarista, praticam. O tijolo que ele assenta tem dois lados. Talvez não faça diferença o lado que escolher.
As cadeiras que a diarista afasta da mesa para limpar o chão não tem ordem determinada. Todas são iguais. A troca de lugar não altera o resultado
O livro é tratado da mesma forma, desde que volte para a prateleira e a qualquer prateleira.
Embora eu tenha separado poesia, prosa, geografia, história, isto não é tomado com o mesmo rigor nem compromete para eles a harmonia e a amizade dos livros.
Não tenho opinião formada, ainda, sobre esse fenômeno. São especulações, até eu conseguir a verdadeira razão. O fato é que a falta de familiaridade com os livros os faz ver o mundo de pernas para o ar. A resposta de Manuelzinho, constrangido de seu ato, não me convenceu. Ele mesmo não sabia explicar como isso acontecera.
Minha hipótese, observando os rumos de nossa política e os métodos de educação generalizados, é que o analfabeto vê o mundo de pernas para o ar. O livro é um pequeno mundo de pernas para o ar. Alfabetizar-se, ler e fazer contas é endireitar o mundo. É pôr o mundo de cabeça para cima. Esta é a finalidade da biblioteca. Manuelzinho ainda vai ver o mundo com os pés no chão e de cabeça para cima.
Esta incapacidade primitiva de distinguir o em cima e o embaixo resulta em trabalhos mal-acabados de pedreiros, marceneiros, pintores, digitadores, diaristas, administradores públicos, professores e vendedores de equipamentos de alta tecnologia. O “mais ou menos” ainda é uma regra observada com espontaneidade pela maioria dos prestadores de serviços. Chegaremos, um dia, à perfeição de aceitar que a linha reta é a menor distância entre dois pontos, mas, por enquanto, não é a mais fácil de traçar.

BORBOLETAS




Identidade é o que faz uma coisa ser da mesma natureza de outra. Do latim “idem”, que significa igual, o mesmo. É um conjunto de circunstâncias que fazem uma pessoa ser essa tal pessoa. A cédula de identidade, em geral, contém os dados que comprovam ser tal pessoa a que está diante de nós.
A confrontação da identidade é importante na vida social e política para se crer e julgar a pessoa por seus pensamentos e atos. A identidade individual garante que fulano seja julgado nos tribunais, na responsabilização maternal ou paternal, na legitimidade da liderança política ou em qualquer outro ramo da atividade humana ou societária.
É comum, no exercício da política, não dar total ou muita importância ao princípio da identidade. Seria até um ato de delírio esperar de um político ou candidato o comportamento da lógica matemática que exista entre dois elementos (a = a), isto é, poder igual a ideário partidário.
Dostoievski é o mesmo escritor de Os Irmãos Karamázovi, de O Jogador, de Os Demônios e de O Idiota. Um político, porém, sofre transformação e metamorfose em seu pensamento, em seu discurso, em seus atos e até em seu caráter. No curso de sua vida, rumo ao poder de legislar, decidir e executar os voos da bela e colorida borboleta, o político pode estar em contradição com a lagarta ou o casulo, suas formas primitivas. O político, ou o candidato a político, já não se identifica consigo. Ele toma a forma do poder e das circunstâncias que identificam o político com as virtudes do posto cobiçado.
Ao longo dessa metamorfose, o político guarda reminiscências de sua identidade ocultas no casulo e quem aparece é a borboleta. Palavras ardilosas foram criadas pelas borboletas em sua ânsia de pousar sobre as flores do poder. E, aos poucos, graças a elas, as características da lagarta e do casulo ficam submergidas nas fases primitivas.
Entre essas palavras está a massa operária ou, simplesmente, massa. Supõe-se que a massa não tenha identidade individual. É a multidão de lagartas idênticas umas às outras dispostas a pelarem uma árvore para garantir a vida efêmera da borboleta. O pobre ou a pobreza, o rico ou a riqueza dão outras características para ressaltar a nobreza da borboleta. Era uma reles e humilde lagarta e, hoje, pousa sobre flores para chupar o néctar do poder.
No período eleitoral, o processo da metamorfose política se presta à habilidade dos ilusionistas. Não raro, se não regra, os candidatos escondem cuidadosamente seu período de lagarta, isto é, o que pensavam e o que diziam do poder e de sua ambição futura de borboletas políticas. A flor do poder fez a borboleta mudar de opinião sobre o sabor do mel, a fragilidade de suas asas e a brevidade de seu reinado político.
Em época de eleições, pelo escasso conhecimento biológico da metamorfose e transformação dos candidatos, é difícil atinar se estamos votando na lagarta, no casulo ou na borboleta.
A borboleta política corre o risco biológico de se tornar um espécime teratológico, produto de distintas lagartas que desfolham, previamente, a árvore do poder.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

HELIODORA

Amigas e amigos,
leitores anônimos
É-me prazeroso comunicar que  HELIODORA - meu quarto romance - pode ser seduzida, dentro de alguns dias,  nas seguintes livrarias:

Café com Letras
SCLS 203 Bloco “C” Loja 19 - 3322-5070  Café.letras@gmail.com
Livraria do Chico 
Campus Universitário Darci Ribeiro – UnB   3307-3254
Cotidiano Livraria 
SCLS 201 Bloco “C” Loja 15   3224-3439
Livraria Cultura
Casa ParkSGCV Sul Lote 22 – Casa Park Center  3410-4033
Livraria Cultura Iguatemi
Lago Norte
Dom Quixote
CLN 406 Bloco “D” Loja 04   3039-7979
Livraria e Editora Aplicada
SRTVN Quadra 702 Ed. Radio Center   3349-0399
Livraria Hildebrando
Prédio da Casa do Professor – UnB  3307-1333
Sebinho Livraria
SCLN 406 Bloco “C” Loja 44    3447-4444
Vozes
SCLR/Norte Quadra 704 Bloco “A” Nº 15  3326-2436
HELIODORA 

Alagoas é um estado do Nordeste conhecido por seus engenhos de cana, por suas praias acolhedoras, por suas rendas cuidadosas produzidas por mãos habilidosas de gente simples e criativa. Uma de suas particularidades pouco explicadas é o alto número de cidadãos não registrados nos cartórios. Trinta em cada cem.
Um de seus políticos foi levado à Presidência da República pelo voto popular, representando a dita República de Alagoas e, posteriormente, rejeitado nas urnas de seu próprio estado.
Alagoas não é tão grande. De Maceió a Delmiro Gouveia, no outro extremo, são poucas horas por rodovia. Zona da Mata e zonas áridas compõem o cenário da vida econômica e social do povo. Os canaviais produziram riqueza e pobreza. A devastação ambiental originada da agricultura predatória da cana-de-açúcar, da produção fumageira e de cultivos de subsistência acarretou graves consequências sobre cidades e povoados destruídos por um raro fenômeno natural.
O petróleo, em compensação, irriga a economia. Mas Alagoas não se livrou da estrutura de classes, da miserável à elite, igual à que se espalha pelo país continental. As estatísticas revelam números, mas suas antenas não captam todos os sinais que emitem as populações isoladas entre a seca e as enchentes . É desse mundo fora das estatísticas que emigram Heliodora e Alcemiro em busca do país novo anunciado na TV e no rádio e que eles desconhecem.
Brasília foi o grito de alerta para despertar o Brasil adormecido, “deitado eternamente em berço esplêndido”. Milhões de brasileiros acordaram. Os excluídos e expulsos do Nordeste pela incúria dos governos e pelas duras circunstâncias do dia a dia tomaram um caminhão  pau-de-arara e desembarcaram na moderna capital do Brasil. Vieram, democraticamente, acomodar-se no Patrimônio Cultural da Humanidade para serem imortais como os criadores desta ilha de silêncio, em meio a plantas retorcidas e fontes cristalinas, no Planalto Central.
Da periferia do país à margem da nova metrópole é um passo gigantesco. Ainda falta boa parte do caminho para completar o sonho dessa viagem empreendida.
Melhor seria que não se precisasse buscar no desconhecido o sonho que poderia ser conquistado no Sítio do Angico se outro fosse o olhar sobre nossa gente e nossa terra.

Humanamente
Eugênio

Meus Livros

1.    OS FILHOS DO CARDEAL – 1997 -  2a. Edição O homem proibido -  2009
2.    POEMAS IRREGULARES, 1998
3.    EM NOME DO SANGUE, 2002
4.    VENTOS DA ALMA, 2003
5.    OS POBRES DO CAMPO, 2003
6.    SOLITÁRIOS NO PARAÍSO, 2004
7.    O RETORNO DAS ÁGUAS, 2005
8.    A SAGA DE UM SÍTIO, 2007
9.    AS PEDRAS DE ROMA, 2009
10.  HELIODORA, 2010

(61) 9981-2807

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

POBREZA E DESIGUALDADE



Governos anteriores e o atual se propuseram a criar meios para facilitar o acesso da população pobre (dezenas de milhões) à comida diária. Hoje, distribuem-se bilhões de reais através do programa Bolsa Família. A contrapartida das famílias é a de manter os filhos na escola. Na escola, pouco se fez. Pouco melhorou. Não derramo aqui os dados oficiais do IBGE (2010)  que mostram quão longe está a educação das prioridades dos governos. O funcionamento das escolas depende do município e do estado federativo, sob o guarda-chuva do planejamento educativo e fiscalização do Ministério da Educação. Essa cadeia rola precariamente. Se, por um lado, houve mais comida na mesa dos pobres, nem por isso mudou seu estado de pobreza. Por outro lado, a desigualdade entre pobres e ricos; entre os que têm oportunidade de estudos adequados e atualizados e os que, há dezenas ou centenas de anos, não puderam educar seus filhos, continua inalterada. Os avanços são milimétricos comparados aos da ciência e da tecnologia à disposição das classes abastadas.
Eliminar a pobreza física, material, é uma batalha longa e não termina ao se pôr à mesa mais comida. O trabalho produtivo é um passo necessário. O trabalho pressupõe algum nível maior de conhecimento, de criatividade, de habilidade dinâmicos. As atividades realizadas, os objetos produzidos para garantir sua utilidade e facilidade de uso requerem aperfeiçoamento.
Os investimentos cruzados do governo não se fazem nas zonas pobres por falta de mão de obra especializada. Nessas regiões, se geram empregos temporários (vide transposição do Rio São Francisco) ou subempregos, que não requerem igualdade de competição entre os artífices e a obra a ser realizada. Nas áreas pobres, as pessoas desenvolveram truques de sobrevivência e de adaptação ao meio inóspito. Desenvolveram a inteligência dos limites da vida.
A desigualdade é um estado de distância entre os cidadãos de uma região ou de um país que vai muito além do eventual acesso à comida, ao emprego temporário e à renda. A desigualdade tem a ver com o crescimento da população e com a superpopulação regional e, principalmente, urbana. Nunca haverá igualdade perfeita por razões óbvias. Mas a superpopulação, isto é, a quantidade populacional que transborda a capacidade administrativa do Estado, da economia e dos recursos naturais, tenderá a manter os níveis inadequados, inaceitáveis e intransponíveis de desigualdade. Segundo o IBGE (2010), em nosso país, apesar das baixas taxas médias de crescimento, nascem 270 crianças por hora, ou 2,3 milhões de brasileiros por ano. O semianalfabetismo impera, as filas de hospitais aumentam, os índices de desemprego estão altos, o déficit habitacional é milionário, as prisões, superlotadas, as ruas de nossas cidades, congestionadas, transporte público insuficiente.
A desigualdade, no caso do Brasil, começa na mesa, ao redor da qual estão os assistidos do Bolsa Família. O que podem comprar com 15 reais por pessoa/mês não é a dieta adequada, segundo requerimentos de alimentação aceitos e recomendados pelo Ministério da Saúde. A obesidade não é privilégio da classe alta. Contamina os pobres que se nutrem mal. Que essa dieta seja suficiente, do ponto de vista estatístico, para tirar 28 milhões que estavam abaixo da linha de pobreza, pode-se até admitir. Mas se houver uma pane nos computadores do Ministério da Ação Social e de Combate à Fome ou da Caixa Econômica e o cartão plástico não possa ser emitido, o precipício se abre diante deles.
Mas a desigualdade mais resistente é a que separa os cidadãos no campo da educação. Os desníveis de desigualdade são crescentes. Prometer eliminá-los, mantendo o crescimento da superpopulação, é uma afronta à realidade, à natureza e à inteligência humana. Há que se atentar aos ingredientes da desigualdade para compreendê-la, medi-la, pesá-la e poder diminuí-la gradativamente. Não é só pela geladeira, computador, carro individual, celular ou casa de 32 m2 que se deve aferir o grau de desigualdade entre cidadãos. Supondo que toda a população devesse ter esses itens individualizados, é certo que necessitaríamos quatro a cinco planetas para atender a esses requerimentos.
Os ingredientes da desigualdade são sutis e passam despercebidos no tumulto da vida cotidiana. Se pertencer à classe média é supor um a dois carros por família, como é comum, poder viajar de avião para ir a Miami fazer compras, estamos aceitando o colapso dos aeroportos, o cancelamento de vôos por falta de pessoal de bordo, a superlotação dos estacionamentos e o sacrifício alarmante das melhores áreas verdes de nossas cidades.
Dependendo do tipo que se define e do caminho para a igualdade pode-se chegar à irracionalidade econômica e a um conflito insolúvel com a natureza, a ecologia e o ambiente.
Talvez seja fácil perceber a desigualdade dando atenção ao que sucede perto de cada um. Poderia colher como modelo de análise uma funcionária de limpeza de um grande supermercado. Mas prefiro tomar como exemplo a diarista que presta serviços em casa. Serviços que, com bons argumentos, não se quer ou não se pode fazer. Ela, em geral, mora na periferia dos bairros da grande cidade. Para tomar o ônibus das seis horas da manhã para chegar ao serviço às oito, tem que se levantar às cinco. Prepara, antes de sair, o café para o marido e os filhos que, nos melhores casos, vão à escola. A patroa acorda com o timbre do interfone e lhe abre a porta. Nesta primeira etapa do dia, três horas de desigualdade separam as duas mulheres. A diarista é usuária compulsória do ônibus superlotado e do trânsito vagaroso. Suporta condições de higiene e desconforto inalteráveis, dia a dia mais enervantes.
É com este estado de espírito adquirido na viagem que atenderá às exigências de suas tarefas, segundo determinações da dona de casa. Tudo o que acontece durante as oito horas de trabalho estará marcado pelas circunstâncias da desigualdade da etapa inicial do dia. Não se trata de trabalho especializado. O que e como faz em sua casa o repete na da patroa. Por isso, não terá oportunidade de um curso de aperfeiçoamento para manejar os vários equipamentos da casa. Essa especialização traria conforto para ela, maior segurança e economia para a casa. Seu salário aumentaria proporcionalmente aos conhecimentos e seu tempo de trabalho se reduziria. Como isso raramente acontece, o nível de desigualdade se mantém por anos a fio entre a diarista e a patroa. Mesmo que se diga, nas rodas de chá, que ela faz parte da família por antiguidade.
O mais grave é que se mantém a desigualdade entre os filhos da diarista e a filha única da patroa. Quer dizer, a desigualdade fundamental se forja nos diferentes processos de educação e conhecimento que dispõem as escolas privadas e inexistem nas públicas. Como se trata de escala geométrica, a desigualdade se esparrama e se consolida na sociedade contra todos os índices estatísticos.
Para perceber melhor o estado de desigualdade, nada mais concreto do que visitar, de tempos em tempos, a escola, a rua e a casa onde mora a diarista.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

LIMA -PERU




Em Lima, uma das anedotas quase inacreditáveis e simpáticas, é discutir com um dos milhares de taxistas o valor da corrida para o local que o cidadão quer alcançar. Na capital do Peru, o diálogo, a negociação e os acordos bilaterais fazem parte da vida da cidade.
Visitei Lima quatro vezes, desde 1978 até esses últimos dias de 2010. Há horas em que Lima é asfixiante. Nove milhões de habitantes esparramados à beira do Pacífico, sobre areais desérticos, em altos edifícios, em casas baixas. O verde, como em quase todas as grandes cidades foi sacrificado pelo aumento descontrolado da população, pelas migrações campo-cidade, pela incúria e falta de  previsão dos administradores.
Peru e suas cidades vivem sob a influência de culturas milenares que apontam a destruição do passado e resistem aos atropelos do presente. O Inca está por toda a parte. No rosto, na fala, na estatura das pessoas, nas receitas culinárias mais e mais famosas no mundo gastronômico, nas confecções artesanais e na lenta adaptação ao modernismo urbano. Chineses e japoneses vieram cruzar seu DNA com o povo e a cultura peruana, de onde brotou uma singular mistura de comida oriental condimentada com saborosos produtos locais.
Lima enfrenta, tardiamente, os desafios da metrópole superpovoada. Está diante de dois megaproblemas: escassez de água e déficit habitacional. Mais de um milhão de limenhos vive sobre areias desérticas que circundam a cidade com precário abastecimento de água e deficiente serviço de esgoto. Outro desafio gigantesco será ordenar o tráfico urbano, invadido por automóveis individuais, micro-ônibus e kombis de transporte de passageiros, taxis sem taxímetro, enchendo as ruas e dominando os espaços públicos. As linhas diretas de transporte público ainda estão no início e o plano do metrô se arrasta por dezenas de anos.
Lima, ã exceção de algumas garoas, que se escondem nas altas massas de nuvens cinzentas, não recebe o conforto de chuvas tropicais reparadoras das energias perdidas durante o ano. Este fenômeno, por sua excentricidade, subtrai a preocupação pela cobertura dos edifícios e casas podem ser construídas sem teto. Mas isto não impede que a capital de Peru seja irrigada de música, de vida literária, de riquíssimos museus e casas de cultura fazendo jus ao Nobel de Literatura. A cidade, voltada para as águas misteriosas do Oceano Pacífico, onde moram os travessos El Niño e La Niña, encanta por suas praças monumentais e por parques aprazíveis para orgulho e descanso de seus habitantes e admiração dos visitantes.
Lima revolucionou a gastronomia. Seus chefs estão nas graças das melhores avaliações culinárias do mundo e oferecem uma imensa variedade de pratos com sabores raros extraídos de suas especiarias. Satisfazem os melhores paladares e acalmam a gulodice dos gourmands mais exigentes.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ACORDOS OPORTUNISTAS

Amiga mandou-me Manifesto em favor de um candidato à Presidência da República, no qual uma lista enorme de religiosos figura como assinantes. Pediu a todos os que tem fé cristã que o lessem e refletissem.
Eis minha reflexão.

Embora não professe religião alguma, li o texto.
Estamos elegendo apenas uma pessoa para Presidente da República.
As leis são elaboradas no Congresso Nacional e não na presidência da república.
As instituições religiosas têm compromisso com seus membros e os temas de consciência são debatidos entre eles e não podem ser estendidos à sociedade laica.
Os dogmas e os princípios que apresentam a seus fiéis se originam de supostos preconceitos arrancados da inteligência divina.
O equívoco está em discutir o aborto em nome da vida.
Não passa e não querem que passe pela cabeça dogmática que a melhor forma de evitar aborto está na educação sexual, no planejamento familiar, formas civilizadas de controle da natalidade. E não se ouve uma só palavra sobre isto.
No Engenho das Lajes, a 50 km do Palácio do Planalto, numa população de 500 famílias, há 17 meninas, entre 13 e 15 anos, grávidas. Há, nessa Agrovila, 7 igrejas. Todas defendem a vida! Nenhuma trata de educação sexual, uso de contraceptivos. Mas todas prometem carro novo, emprego, sucesso, se pagarem o dízimo.

Acordos como esses foram firmados na Itália, nas barbas do papa, e em outros países, e a sociedade não deu atenção. Dilma e Serra podem se comprometer pro forma, sem convicção, para ganhar mais votos. Mas isto é politicamente, eticamente ridículo.

Essa discussão não pode ser domínio exclusivo de igrejas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O VOTO DA COERÊNCIA

A maioria dos candidatos eleitos para exercer cargos públicos, isto é, decidir sobre o uso do dinheiro provindo dos impostos, rapidamente se enriquece.
Se não forem tomadas as vacinas adequadas, o clima político, úmido e quente, emascula o caráter do eleito, confunde critérios, degenera princípios, apodrece ideais, suprime a honestidade, altera convicções.
Contaminado pela bactéria da mentira cotidiana, atacado de anemia profunda, o político se transforma num disseminador do vírus da apatia democrática resistente a qualquer tratamento, produzindo uma pandemia de indignação e desilusão no espírito do cidadão.
O clima político, úmido e quente, deixa pouco espaço para o voto da coerência destinado ao ideário, ao pensamento, às propostas evolutivas que deveriam manter a lógica dos argumentos e das assertivas.
Ao invés de adaptar processos de ação e métodos de análise do que é a essência da vida e dos comportamentos humanos, opta-se por mudar o pensamento, substituir convicções para melhor responder às tentações do poder.
O casulo do poder metamorfoseia o candidato num travesti político sem identidade, balançando-o na gangorra de valores contraditórios, dando-lhe a aparência moral de um camaleão em busca da cor que o confunde com os diferentes matizes da selva para sobreviver.
Sinto-me feliz por ter votado em Marina Silva. Ela me deu a oportunidade do voto coerente. O mesmo pensamento ecológico que defendeu nos seringais do Acre o expôs durante anos no Senado, aplicou-o no Ministério do Meio Ambiente e o propôs aos eleitores do século XXI, adaptando processos e aperfeiçoando métodos.
Alegro-me com amigos que buscaram, em reduzido número de candidatos, a virtude da coerência. É a ausência desta virtude, na maioria dos candidatos, que dificulta, hoje, expressar o voto da coerência.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

TIRIRICA

A eleição do palhaço Tiririca para deputado federal deixou o rei nu. A Constituição Brasileira faculta o voto aos analfabetos. Os argumentos referem-se à inclusão eleitoral de cidadãos que não tiveram oportunidade de freqüentar a escola, ao respeito à sua capacidade de discernimento, pois são pais de família, trabalhadores honrados, pagam impostos diretos e indiretos.

Podem, portanto, eleger doutores, sábios, políticos profissionais, empresários, mas a Constituição não permite que sejam eleitos. Os argumentos que servem para que eles elejam tal ou qual candidato que vai tratar de superávit primário, inflação, taxa de cambio, exportação de commodities e outros temas misteriosos, cerceiam sua participação na faina de preparar leis.

Para tomar decisões sobre o uso de nossos impostos, para discutir nossas leis, para promover o bem comum, para eliminar a corrupção na administração pública, prover escolas e equipar hospitais, o analfabeto precisa saber ler e escrever. Pede-se, então ao Titirica que escreva uma petição ao Tribunal Regional Eleitoral para comprovar que sabe escrever. Alguém viu a petição escrita por Lula ao mesmo TRE? Ou alguém já viu alguma coisa escrita por Lula, à exceção de sua assinatura nas MP’s?

Temos, diante da nudez do rei, duas democracias: a eleitoral que elege sábios, empresários, advogados, médicos e a democracia aristocrática que governa, no Brasil, mais de 60% de analfabetos funcionais e milhões de cidadãos que se dizem alfabetizados por saberem desenhar o nome.

Se não há discernimento nos analfabetos para serem eleitos como confiar no discernimento dos mesmos analfabetos para elegerem Sarney, Collor, Barbalho, Calheiros, anões, mensaleiros, meieiros, bolseiros e cuequeiros?

Eis aí uma das razões porque Marina Silva teve mais de 20 milhões de votos.

È desse atraso que o Brasil tem que sair.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

ORAÇÃO DA CANDIDATA

A candidata, imposta por seu padrinho todo-poderoso, sabe que, se eleita, governará um país biomicamente riquíssimo, socialmente desigualíssimo, politicamente corrupto e atrasadíssimo. Precisará de forças extraterrestres, por isso se reuniu com evangélicos, com pastores e bispos de igrejas com ligação direta com Deus para comercializar fé, esperança, carro zero importado e fez compromissos com associações católicas contra o aborto.

Culminou sua religiosidade num ato público na Basílica de Aparecida do Norte para implorar a intercessão da Virgem Maria na decisão dos eleitores. De pé, no palanque levantado em frente à Basílica, rodeada da elite católica hierárquica, de olhos úmidos na Padroeira Negra do Brasil, a candidata ateia moveu os lábios e todos leram as palavras de seu ato de fé.

“Meu Deus, você não existe. Eu creio. Mas este povo que pretendo governar crê que você existe e acredita que eu também creio. E isto basta para mim. Perdoai-me por ludibriá-los. Perdoai a ignorância deles, pois não sabem o que eu penso de você.

Meus Deus, abençoai este povo que acredita em você e crê, ingenuamente, que eu também creio. Meu Deus, você não existe, mas no meu governo, respeitarei a fé deste povo bom e cordial. Amém!”

A candidata, com um sorriso pálido, abanou para a multidão que gritava:

VIVA NOSSA SENHORA APARECIDA, RAINHA DO BRASIL!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

3 DE OUTUBRO, 2010

Apesar das previsões e sondagens dos Institutos de Pesquisa, que forçavam a vitória de Dilma no Primeiro Turno, os eleitores surpreenderam, diante da urna, aos mais confiantes. Percebia-se essa tendência geral de jornalistas, analistas políticos e especialistas de aceitar os dados extraídos dos levantamentos científicos dos Institutos e impor o sucesso da apadrinhada de Lula.
Chegava a ser enfadonho ler todos os dias essas opiniões de quem tem coluna cativa em jornais sobre a certeza da vitória da candidata fabricada nas oficinas do Palácio do Planalto.
Conhece-se mal o povo e, às pressas, tomam-se números como verdades. O pensamento do povo é um caleidoscópio. Diaristas, empregadas domésticas, vigilantes, zeladores, choferes de taxi, comerciantes de frutas, cabeleireiros, garis, jornaleiros, balconistas, bancários, sindicalistas, desempregados, feirantes e uma dezena de outras profissões formais e informais, com distintos acessos à informação compõem um mosaico irregular na forma e nos ingredientes. Nem sempre o que dizem é o que pensam. Cores, traços, tamanho, circunstâncias de clima e pressão tornam frágil e difícil assentar esse azulejo. O brasileiro tem sangue índio e árabe. Olha, escuta, ri e faz o que melhor lhe apetece.
Hoje, é possível duvidar da cantilena mil vezes entoada e divulgada em todas as sondagens de opinião sobre a estabilidade econômica e a felicidade geral da nação que atribui ao senhor Lula 80% de aprovação.
As previsões generalizadas de vitória de Lula no primeiro turno com o pseudônimo de Dilma fracassaram. No Distrito Federal, às portas do Palácio do Planalto, diante das barbas do maior presidente que este país conheceu, os eleitores preferiram Marina Silva.
Há outros objetos voando no ar além dos aviões de carreira e do aerolula.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

3 DE OUTUBRO, 2010

Apesar das previsões e sondagens dos Institutos de Pesquisa, que forçavam a vitória de Dilma no Primeiro Turno, os eleitores surpreenderam, diante da urna, aos mais confiantes. Percebia-se essa tendência geral de jornalistas, analistas políticos e especialistas de aceitar os dados extraídos dos levantamentos científicos dos Institutos e impor o sucesso da apadrinhada de Lula.

Chegava a ser enfadonho ler todos os dias essas opiniões de quem tem coluna cativa em jornais sobre a certeza da vitória da candidata fabricada nas oficinas do Palácio do Planalto.

Conhece-se mal o povo e, às pressas, tomam-se números como verdades. O pensamento do povo é um caleidoscópio. Diaristas, empregadas domésticas, vigilantes, zeladores, choferes de taxi, comerciantes de frutas, cabeleireiros, garis, jornaleiros, balconistas, bancários, sindicalistas, desempregados, feirantes e uma dezena de outras profissões formais e informais, com distintos acessos à informação compõem um mosaico irregular na forma e nos ingredientes. Nem sempre o que dizem é o que pensam. Cores, traços, tamanho, circunstâncias de clima e pressão torna frágil e difícil assentar esse azulejo. O brasileiro tem sangue índio e árabe. Olha, escuta, ri e faz o que melhor lhe apetece.

Hoje, é possível duvidar da cantilena mil vezes entoada e divulgada em todas as sondagens de opinião sobre a estabilidade econômica e a felicidade geral da nação que atribui ao senhor Lula 80% de aprovação.

As previsões generalizadas de vitória de Lula no primeiro turno com o pseudônimo de Dilma fracassaram. No Distrito Federal, às portas do Palácio do Planalto, diante das barbas do maior presidente que este país conheceu, os eleitores preferiram Marina Silva.

Há outros objetos voando no ar além dos aviões de carreira e do aerolula.