terça-feira, 30 de novembro de 2010

ENTREVISTA CB HELIODORA

Tendo em vista que os jornais alegam falta de espaço para publicar as respostas a perguntas por eles encaminhadas e, por isso, têm o hábito de higienizar, limpar e pasteurizar os textos, tomo a liberdade de publicar a integra de minhas respostas para o lançamento de HELIODORA. Pequena parte destas respostas foi publicada no jornal.


- Conte um pouco da sua infância: onde passou sua juventude e como surgiu o gosto por escrever?


Sou neto de família italiana que povoou a Serra Gaúcha no início do século passado. Aprendi a ler em casa, ao redor do fogão a lenha, como era costume na época. Nasci em 1934. Guardo do Grupo Escolar a lembrança de coisas simples e óbvias: a ave viu o ovo e o vovô viu a uva. Ali estavam todas as vogais. Estudei em colégio de padres franciscanos, onde enterrei minha juventude. Aos 15 anos, comecei a escrever diário, habito que continua até hoje. É meu primeiro ato matinal. Acumulo dezenas de cadernos cheios de segredos.


- O que trouxe o senhor para Brasília em 1972?


Conheci Brasília em 1967 e me apaixonei pelo silêncio do cerrado e pelos horizontes largos do Planalto Central. Prometi a mim mesmo que Brasília seria meu lugar. Na última viagem do trem que ligava São Paulo a Brasília, transferi-me para cá com a mulher e a filha de dois anos. Infelizmente, o Brasil perdeu o trem.
Com a mudança da capital para Brasília, os ministérios trouxeram para cá todas as instituições a eles vinculadas. Vim como consultor de um projeto da FAO em convênio com o ministério da agricultura. Havia feito pós-graduação na Universidade de Paris e na Universidade Tecnológica de Loughboro, na Inglaterra sobre desenvolvimento de cooperativas e associaições rurais. Terminei sendo convidado pela Organização Internacional do Trabalho para projetos de combate à pobreza na Colômbia e países andinos.


- Conte um pouco de como surgiu a inspiração para esta obra?


Ao longo de 38 anos de vida em Brasília, acompanhei a evolução e a involução da cidade e do Distrito Federal. O sonho de JK tornou-se nacional. O novo, o moderno e o futuro estavam aqui. Os pioneiros que construíram Brasília e a maioria dos imigrantes que os seguiram vieram buscar aqui o que não tinham em sua terra natal. Ninguém abandona sua terra sem dor e sem lágrimas. Estão aqui porque não podem estar lá. Mas quando podem, voltam.  Eu ouvi dezenas de histórias emocionantes de camponeses que lembravam com saudade a roça que ficou e o rebanho magro que morreu.  Vi no rosto a vergonha que sentiam por serem analfabetos na capital da república. Juntei todas essas angustias e esperanças em HELIODORA, filha de ninguém, sem registro de nascimento, fugindo da seca para ocupar uma beiradinha à margem da capital federal.

- É a primeira publicação do senhor?

HELIODORA é meu quarto romance e décimo livro. Meu primeiro romance O HOMEM PROIBIDO é autobiográfico. Conto nele minha trajetória de seminarista a sacerdote, carreira que abandonei  em 1968.  Foi publicado em 1997, em Brasília e traduzido para o espanhol e o finlandês. O segundo - EM NOME DO SANGUE - ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura, em Porto Alegre (RS). No ano passado publiquei AS PEDRAS DE ROMA, romance histórico em primeira pessoa, narrado por um papa agnóstico da Renascença - Giovanni de Medici  - que governou a Igreja católica na época da Descoberta, 1513 a 1521.

- Quem são suas influências literárias?

Tenho lido os clássicos brasileiros e estrangeiros. Sou um homem de antigamente. Dostoievski, Stendhal, Marguerite Yourcenar, Machado de Assis, Graciliano Ramos,  Oscar Wilde, Hannah Arendt, Aldous Huxley são sempre atuais. Eles anteciparam nosso tempo e o tempo de minhas netas. Gosto de escritor que pensa. Alguns leio pelo conteúdo. Outros, pela forma.

- Largou por completo a profissão de sociólogo e filósofo?

HELIODORA prova que não. É preciso ser sociólogo persistente e filósofo atento para entender os economistas de plantão, arquitetos,  engenheiros e especialmente os politicos de Brasília.

- Qual próximo projeto? Algum em andamento?

Escrever tornou-se um prazer irrecusável. Projetos não faltam. Para fevereiro, pretendo enviar à editora Paulo Francis um novo romance, singular e inédito na forma. O personagem é invísível e convive comigo e com todos sem ser percebido. O dia em que paramos para ouvi-lo, nosso pequeno mundo existencial entrara em nova órbita de convivência.

- Se o senhor pudesse traçar um objetivo para seu livro, qual seria, ou seja, o que você busca alcançar com a obra?

É uma singela escultura em homenagem aos que vieram a Brasília, simbolizada em HELIODORA, isto é, nos que se tornaram nossos pedreiros, nossos vigias, nossos garis, nossas empregadas, nossas diaristas, nossos caseiros. É uma história simples, do Brasil atual, desse Brasil profundo que não é captado por uma política humanista nem pelas estatísticas oficiais. As estatísticas se preocupam com números e nào com sentimentos, com dor física e lágrimas de saudade. Quis lembrar o que as estatísticas não dizem.

- Como o senhor classificaria sua "maneira de escrever"?

Cada escritor conta a história à sua maneira. Por temperamento, gosto da ironia e de pôr em claro as contradições dos discursos e o vazio da retórica dos donos do poder. Tenho profunda simpatia pela liberdade de pôr vírgulas sem me impressionar com a autoridade arbitrária de gramáticos e sintáticos.

 - O senhor compararia seus "trejeitos" de escrita aos de algum outro escritor?

Conscientemente, não. Mas, dominados pelo inconsciente, é provável que ocorram imitações ocasionais. Mas procuro ser original e escrever da forma que me satisfaça e seja compreensível ao possível leitor.

- O que você precisa ter por perto quando escreve (bebida, talismã, música)?

Meu companheiro de escrita, nas primeiras horas da manhã, é o chimarrão. No mais, é o silêncio e o isolamento que me inspiram.

- Algum convidado especial no lançamento do livro, dia 24?

O vigia do meu bloco, Leandro.

- O que o senhor sentiu quanto apertou o ponto final do teclado e percebeu que havia concluído a obra?

Fiquei com saudade de Heliodora, Alcemiro, Gumercinda e do Velho Formiga com os quais convivi 4 meses e meio.

- Mais alguma coisa que o senhor gostaria de ressaltar e que julga importante mencionar?

Heliodora e Alcemiro viviam numa propriedade castigada pela seca. Vivemos num país de grandes chuvas mesmo em áreas de longas secas, capazes de alagar e destruir cidades. A água cai e se perde. Não sabemos cuidar das nascentes, dos rios e dos lagos. Em vez de revitalizar com inteligência o Rio São Francisco, o dessangramos com a transposição. Tira-se sem repor. Reflorestar nosso país é uma das mensagens de Heliodora.

ESTA GUERRA É NOSSA




A guerra do Rio de Janeiro é nossa. Estamos todos convocados pela mídia, com fraseado limpo, higiênico, pasteurizado e acrítico para fazer parte do espetáculo. Noticiários sofisticados, ao vivo, imagens obtidas de helicópteros nos dizem que a guerra é nossa. Esta guerra não ataca a ponta da produção nem a do consumo. É uma guerra sem fim, situada no extenso corredor da distribuição que se camufla de mil modos para chegar ao consumidor.
Nossos impostos são vistos e ouvidos na rua em forma de tanques, blindados, helicópteros, centenas de viaturas e caminhões carregando soldados, telefones, rádio e canal de TV e, no front de combate, mais de 20 mil homens.
Por melhor aparelhados que estejam esses meninos da droga –  também ditos e repetidos por autoridades e jornalistas: “elementos, bandidos, traficantes, criminosos, terroristas” – serão exterminados ou presos em pouco tempo. Alguns escaparão e se tornarão, com o tempo, os novos chefes da intermediação do crack, da maconha ou da coca fina.

As drogas

As drogas, sua evolução e aperfeiçoamento, são mais antigas do que a Igreja católica. No andar dos séculos, seu comércio se consolidou em grandes negócios, transformados em empresas transnacionais e laboratórios gigantescos onde o produto é elaborado. A produção de remédios, – também chamados drogas e vendidos em drogarias – é apenas um dos braços. Umas drogas amenizam a dor do corpo. Outras, a da alma. Como ambas as dores não podem ser eliminadas, drogas continuam sendo preparadas, vendidas e consumidas.
Drogas lícitas e ilícitas foram declaradas por critérios legais. Segue-se o comércio lícito ou ilícito. Ambas incluídas no largo conceito de comércio. O comércio de órgãos humanos, ilícito, existe e fala-se em bilhões de dólares. O comércio de drogas, ilícito, repete-se todos os dias, também alcança bilhões de dólares.
Por trás do comércio de drogas estão os fabricantes de armas (Alemanha, Estados Unidos, Rússia, Brasil...), organizações paramilitares, fiscais da alfândega, fronteiras desprotegidas, aeroportos clandestinos e oficiais, laboratórios químicos, polícia corrompida ( no Rio, a policia esteve associada aos traficantes intermediários durante dezenas de anos, impedido a ação do Estado), deputados, juízes, advogados, laboratórios produtores e, obviamente, consumidores espalhados pelo país e pelo mundo. Como se combate o comércio de drogas? Leis que o brasileiro costuma desprezar. Fiscalização da polícia rodoviária e aeroportuária por amostragem e golpes de sorte. No Rio de Janeiro, a aliança entre consumidor, polícia corrupta e intermediários da droga garantiu, ao longo de dezenas de anos, a consolidação do negócio de bilhões. Por que o Rio de Janeiro? Por que ali estão os cabeças?

Complexo do Alemão

Não podemos acreditar que no Complexo do Alemão ou no Cruzeiro estejam os cabeças do tráfico, também chamados narcotraficantes. Ali está um grupo de malandros aventureiros intermediários, como são intermediários os vendedores de geladeiras numa cidade do interior ou um restaurante que usa uma franquia internacional como McDonalds. A batata frita transgênica oferecida num desses restaurantes pode ser proibida e o proprietário da franquia, multado ou preso. Mas a batata frita continua sendo pedida pelos consumidores. E os tubérculos transgênicos serão produzidos em algum lugar. Quem é o cabeça?
No Rio, os intermediários da droga caíram no conto das armas. Os meninos dos morros são uma cópia dos muchachos de El Mexicano ou de Pablito Escobar. Alguém lhes fez acreditar que não há poder sem exército e sem armas. Como o negócio da droga rende bilhões, há que reparti-los com alguém. Esse alguém é o produtor e o intermediário do bilionário negócio das armas. Nascem os chefetes. Na Colômbia, os cabeças não se concentraram nos picos da Cordilheira que enlaça Bogotá. Medellin sediava o quartel general de Pablo Escobar e Cali, o da família Orejuela. Sucursais invisíveis atuavam em todo o território colombiano. Como eram negócios de bilhões, eles precisavam de defesa do produto e criaram as milícias paramilitares, com um pé nas forças armadas oficiais e o outro no sistema judiciário para defendê-los na justiça. Pablo Escobar foi morto por uma facção do exército que não pôde ou não quis participar do butim do “crime organizado”. Antes dos cabeças, porém, morreram milhares de braços armados, fiéis ao negócio rendoso.
A meninada do Rio de Janeiro tentou fundar as repúblicas da droga baseadas na força das armas cada vez mais modernas, superando as dos militares que futuramente se associariam a eles por serem mais fracos e por quererem participar desse poder paralelo com a força da lei. Os homens da polícia não tinham armas nem salários, mas tinham a lei a seu favor. A lei elástica. A proteção aos testas de ferro era manipulada acima e à revelia da lei.
Os morros do Rio de Janeiro são um dos elos entre o produtor e o consumidor. Esses bilhões de que se fala vêm dos consumidores. É necessário insistir que os bilhões faturados por agências de automóveis, celulares, geladeiras, máquinas de lavar ou televisões saem do bolso do consumidor? Pois, essa é uma das pontas que demanda, pede, suplica, implora qualquer tipo de droga. A outra ponta, a que investiu no laboratório de produção, o fez na certeza de que recuperará com folga a fortuna aplicada.
É preciso dizer que esses bilhões também entram no PIB. Com eles constroem-se castelos, mansões, piscinas, campos privados de esporte, hospitais privados, com a colaboração de cartórios, juízes, políticos, constituindo-se num labirinto de acumulação de riqueza lavada em invisíveis lavanderias.
Nesses dias que passaram, quantos bilhões foram despendidos para acabar com um negócio que rende bilhões? E quem está sendo destruído nesta guerra? Vamos lembrar que os da frente de batalha são sempre jovens cidadãos – também chamados soldados, policiais, militares. Na frente de batalha não se veem generais. Eles transmitem ordens por rádio. Dão entrevistas, informações e contrainformações.
 O cidadão soldado é enviado ao morro com uma arma na mão. Diante de uma R15 do menino do morro – cidadão espúrio, elemento, bandido, criminoso, terrorista sem pai nem mãe – diante da R15 apontada para ele, certamente, o cidadão soldado não esperará ordem do general ou do secretário de segurança para atirar e se possível matar. Vai à guerra quem tem débitos. E os meninos do morro e os policiais do BOPE têm débitos. Foram treinados, ensinados, juraram defender o chefete ou a pátria. Ir à guerra tornou-se um dever. Os que têm crédito não vão à guerra. Nem o general, nem o comandante, nem o secretário de segurança, nem o Ministro da Defesa precisam mostrar sua coragem. É suficiente aplaudir e enaltecer a valentia de seus comandados.

Essa guerra é nossa.

É nossa porque os consumidores da droga são nossos, os importadores são nossos e os distribuidores são nossos. Os soldados e os meninos do morro são nossos. Muitos ingredientes de fabricação das drogas são nossos. Foram comprados com o dinheiro das drogas. Parte das armas é nossa. A outra parte que veio de fora, em poucos dias, será nossa. Os que morrerem nessa guerra se dividirão em dois grupos: os nossos inimigos e os nossos heróis. A paz nos morros será imposta e garantida com nossas armas. A mais objetiva das alternativas que soubemos encontrar para destruir a organização dos criminosos que vendem drogas para o rico cidadão de Ipanema ou Copacabana, cansado de ir à praia, a Paris, Londres, ou de ver televisão, ou escrever estultícias no twitter.
Dirão que o Rio é o Rio. É diferente de tudo o que existe no mundo. São circunstâncias especiais. E além de tudo, será sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Os criminosos estavam dominando a polícia com polpudas propinas e abastecendo os consumidores com tremenda eficiência. Era dinheiro demais, era um poder soberano. Tal era a fama dos meninos dos morros.
As facções ditas terroristas que dividiam o dinheiro e o poder poderão ser extintas. É essa a intenção e a ação. Mas que parte da organização que controla as drogas está sendo debelada? A que tem armas? E a outra parte da organização, a que tem seus chefetes na ponta do consumo, com que armas será combatida? Com o divã do Gikovate? Com internação de dois anos num Spa de luxo? Quem não sabe que, no Distrito Federal, o comércio de drogas é intenso? Se o estoque acaba no Gama, o Engenho das Lajes, que recebe de outra fonte, pode repor. Em Santo Antônio do Descoberto, já em Goiás, está equipado para contribuir com a expansão do negócio.
Então, a pergunta é obvia. Por que só no Rio de Janeiro? Só lá existe o “crime organizado”? Ou há outras razões escondidas sob as armas dos meninos dos morros do Rio?
Quanto representam do PIB os tanques, os blindados, os navios, os aviões Rafale, o efetivo permanente do exército e o temporário? E essa operação de guerra, no Rio, com mais de 20 mil homens em combate, incrementa o PIB ou o reduz?

Alternativa

Vamos supor alternativa diferente. Como se trata de uma guerra que é nossa, por que não investir metade dos milhões que se gastam em armas, soldados, tanques, helicópteros, operações espetaculares de ataque, mortos e feridos, na ponta privilegiada do consumidor. Não com o instinto cego e suicida do crescimento econômico, mas com a inteligência do desenvolvimento humano. Se, em cinco anos, conseguíssemos reduzir o consumo de drogas, em todo o território nacional, em 80%, que aconteceria com os chefetes e os meninos do morro?
Para pensar desta forma é preciso não ter sido treinado para a guerra e não ter sido eleito para resolver tamanho problema com guerra. Claro, sou ingênuo. Não compreendo o Rio nem esse negócio de armas e de guerra. Dez anos de trabalho, na Colômbia, dirigindo projetos de combate às causas da pobreza (meu livro “Por que son pobres los campesinos” teve tiragem de 10 mil exemplares) e participado de comissões de paz, não me ajudam a compreender essa nossa guerra.
Como todas as guerras, a do Rio também tem suas verdades e inverdades. A facilidade com que a Grande Aliança de todas as forças armadas do Rio entrou nos redutos considerados intransponíveis pela inteligência estratégica da guerra produziu na opinião pública um sentimento de frustração. O castelo era de areia e os moinhos, de vento.
Diante desta guerra do Rio, “por que não dizer do Brasil” e, portanto, nossa, eu me escondo do tiroteio e me pergunto: O que estamos combatendo? A droga? Os chefetes-gerentes do mercado da droga nos morros do Rio? Os supostos traficantes e sua rede nacional de distribuição? Armas modernas que faltam à polícia? A empresa invisível que atua no mercado mundial da droga? Os pontos de venda de droga que estão em mãos dos meninos “bandidos” dos morros do Rio? Os que se corromperam e enriqueceram com a extorsão do dinheiro grande pela polícia, por milicianos, advogados, juízes, altos executivos, políticos? O consumidor que garante o fluxo de bilhões de dólares aos fabricantes da droga?
Uma vez conquistada a paz pelas armas, os soldados e as armas permanecerão nos morros como libertadores? Não tendo mais inimigo armado, a quem combaterão os policiais? Até agora só ouvimos falar em armas e guerra. Todo este espetáculo gira em torno de armas. Primeiro, traficantes armados. Depois, milicianos corruptos, ex-policiais armados. Agora, a polícia pacificadora armada.
Minha conclusão é que as armas mais poderosas são frágeis para garantir a paz. É surpreendente, quase inacreditável que autoridades do governo confessem que, nos últimos 30 anos, os bandidos do tráfico não permitiram a entrada do Estado nas repúblicas da droga. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO

SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO I

A superpopulação se defronta com distintos aspectos da organização social e as soluções para administrá-la são complexas. Desembocam, em última análise, numa medida drástica e constante de controle dos nascimentos. Um bebê implica em inúmeros cuidados, a começar com a necessária disponibilidade de 200 litros de água por dia. Por isso, o planejamento para racionalizar a expansão da população é decisão preventiva a fim de evitar os efeitos e os requerimentos da superpopulação.
Hoje, a superpopulação é um fato local, regional, nacional e mundial. Há projeções otimistas do ponto de vista estatístico porque a curva dos números percentuais é descendente ao longo de algumas décadas vindouras. Mas os números continuam a crescer mesmo que para os demógrafos os percentuais menores lhes dêem satisfação matemática. Há projeções pessimistas da superpopulação pelo singelo fato de que esses números respiram, são vivos, dotados de carne, osso e sentimentos. Esses números se movem no espaço e no tempo. É no espaço que se realiza a vida temporal. É com as múltiplas vidas espalhadas pelos espaços que se determina o tempo e se expressam os sentimentos desses números vivos.
É do espaço que se obtém o alimento, o ar, a água. É no espaço que se ergue a casa. É desse espaço que se eliminam ou retiram vidas para a sobrevivência das espécies. É nesse espaço que se processa a interdependência das espécies, na medida em que se salvaguarda a biodiversidade. É nesse espaço que se cria o ambiente favorável ou desfavorável para a reprodução da vida. Quando, nesse espaço, se limita a interdependência das espécies, se compromete a sobrevivência, se descontrola a reprodução e se obstrui a expressão dos sentimentos humanos, os sinais da superpopulação indicam situação de alarme.
A tendência da superpopulação é concentrar-se em espaços onde as condições de sobrevivência, ainda que ilusoriamente, se apresentam mais favoráveis. A incapacidade das instituições locais, regionais e nacionais de administrar a população e o desinteresse desta em assumir a liberdade de se conduzir levam à concentração em grandes cidades onde se alojam o poder, a autoridade, os altos negócios e os serviços básicos. Resulta, dessas megaconcentrações causadas pela superpopulação, a superorganização dominada por um poder central de onde partem as mais diversas e surpreendentes decisões. As necessidades próprias de cada grupo etário, de gênero, a diversidade de atividades econômicas, políticas, culturais e sociais, a mobilidade e o intercâmbio entre comunidades, centros de serviços e locais de trabalho criam uma rede intrincada de administração nem sempre adequada a atender equitativamente o universo da população.
O poder político, responsável pelo ordenamento e cumprimento das leis, se concentra, via de regra, em oligarquias dirigentes sustentadas pela força da organização econômica produtora de bens e serviços.



SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO II

As metrópoles e as grandes cidades que a elas se assemelham são resultados da superpopulação expulsa de algum espaço. Ela requer a montagem de uma superorganização. As relações pessoais e o potencial de expressões individuais nas megalópoles  dão lugar aos obrigatórios contatos formais e burocráticos no cumprimento de contratos não assinados de prestação e uso de serviços.
Nem o lar, nem a rua, nem o banco da praça são lugares onde as pessoas podem dizer e mostrar que são humanas ou ousam tratar da condição humana. O carro novo, a tevê, o celular, a empregada doméstica, o roubo da joalheria, o material escolar das crianças, o precário atendimento no posto de saúde, o transporte público deficiente, o preço da carne, o desemprego ocupam os diálogos rápidos pressionados pela correria diária.
A última palavra é de desânimo e paciência. Mesmo sendo comuns as dificuldades, cada qual busca safar-se delas como pode, ainda que em prejuízo do outro ou passando por cima dele. Tem-se observado, ao longo décadas, tentativas e esforços para criar no bojo tumultuado das metrópoles, com o fim de humanizá-las, alguns quarteirões em comunidades solidárias. Os atuais condomínios fechados podiam ter esta função, não se tivessem transformado em guetos e prisões disfarçadas de proteção contra roubos, guardados por exércitos de vigilantes, controlando entradas e saídas de carros conduzidos por indivíduos que mal se conhecem.
A comunidade de pessoas completas, de carne, osso e sentimentos, incentiva os indivíduos a cooperarem em todos os aspectos da condição humana e não apenas a competir como executores de funções específicas. Há mais de cem anos, humanistas como Hilaire Belloc, Mortimer Adler, Dubreuil, Arthur Morgan, Baker Brownell, Marcel Barbu ou Pechkam, cada um em seu campo alertaram para a massificação do homem na grande cidade, na grande organização industrial e na superorganização da burocracia governamental. O Banco Mundial, o FMI, os bancos centrais, os polvos multinacionais, os cardeais da globalização, os defensores intransigentes do mercado invisível e ordenador de todas as decisões econômicas, os fanáticos do crescimento econômico e os adoradores do PIB apagaram todos esses esforços de construção de um mundo de pessoas e se entregaram à feira de consumo onde as mãos substituem a cabeça.
A superpopulação está dopada pela superorganização que antecipa grandiloquentes soluções antes mesmo de analisar os problemas. O cidadão que sofre as dificuldades mais surpreendentes do dia a dia se vê atropelado por decisões políticas, jurídicas, econômicas, sanitárias, sociais, comerciais e fiscais de resultados cada dia mais insatisfatórios.
As barreiras levantadas diante do cidadão são tão sólidas e intransponíveis que, aos poucos se acomodam aos ditames dessa escravidão política. A indiferença generalizada parece dizer: usem nossa liberdade, decidam por nós e deixem-nos em paz.



SUPERPOPULAÇÃO E SUPERORGANIZAÇÃO III

Dostoievski previu o caminho da insensatez e da abdicação da liberdade na organização da vida política e social da sociedade. Diz o Grande Inquisidor: “No fim, hão de depor a liberdade aos nossos pés e hão de dizer-nos: torna-nos teus escravos, mas alimenta-nos”. Aliocha Karamazov pergunta ao irmão se o Grande Inquisidor (presidente ou imperador) está falando ironicamente. Ivan responde: “Absolutamente nada! Ele reivindica como mérito para si próprio e para sua igreja (governo, império) o fato de ambos terem usurpado a liberdade dos súditos, e assim o fizeram para tornar felizes os homens”. E acrescenta o Grande Administrador: “Nada foi tão insuportável para um homem ou uma sociedade humana quanto a liberdade”.
Que fazer com a liberdade além de protestos, cartas de repúdio, baixo-assinados, queima de ônibus, passeata de alerta? O risco de perder a liberdade é deixar aos governantes decidirem o caminho de nossa felicidade. Deixar à propaganda da grande indústria e do alto negócio convencer-nos de que seremos felizes consumindo o que produzem e vendem. O risco de perder a liberdade, se já não a perdemos, é autorizar a superorganização a nos dizer todos os dias que deles depende nossa felicidade. O risco de perder a liberdade, se já não a perdemos, é aceitar que os novos educadores, escondidos atrás de sagazes aparatos eletrônicos, nos convençam sem dor de que é melhor amar a servidão, alimentada com pão e circo, do que assumir responsabilidades pessoais dedicando alguns momentos do dia a pensar. O risco de perder a liberdade é entregar-se à ditadura democrática de instituições elásticas dirigidas por prestidigitadores políticos acima de qualquer controle.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

PENSAMENTO ÚNICO



Ouvi, ontem, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, análises de uma cientista política e de um jornalista sobre o resultado do segundo turno das eleições presidenciais do Brasil. Ambos, cada qual com seu conjunto de informações que comprovavam suas conclusões, se restringiram a peças do quebra-cabeças que eles mesmos montaram.
A cientista política tentou, poupando a inteligência, justificar o comportamento do governo Lula, o projeto do Partido dos Trabalhadores que o sustenta e os programas sociais cujo objetivo primordial é “governar a pobreza” e “eliminar minimamente a pobreza”. Não explicou o que significa governar a pobreza nem até onde vai o eliminar minimamente a pobreza. Esforçou-se por diferenciar dois sistemas antagônicos de governo: o da igualdade, representado pelos partidos alinhados à esquerda (PT, PMDB, PSB...); e o da liberdade econômica, sinônimo de liberalismo e Estado enxuto, defendido pelos débeis partidos de direita (PSDB, DEM).
Em nome da igualdade (conceito não definido) ou da redução das desigualdades, todos os programas de governo estão justificados, do Bolsa Família à aplicação do Enem como este é hoje. Para a cientista política, trata-se de inovações estratégicas do atual governo que precisam de aperfeiçoamento. Conseguiu distinguir o significado de cidadania para os defensores da liberdade e para os que propugnam a igualdade. Os da direita querem um cidadão competitivo para enfrentar as forças cegas do mercado. Os da esquerda conduzem o cidadão a obter seus direitos com políticas públicas amparadas com massivas doses de assistencialismo.
O pensamento único, contra o qual a sociedade se rebelou durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, volta com toda a força. Tudo o que está sendo proposto no atual governo está certo e é incontestável. Não há espaço para a crítica filosófica digna de um intelectual. A vitória da candidata imposta por Lula garante essa verdade absoluta.
O jornalista experiente limitou-se a arrolar fatos publicados na mídia para historiar a trajetória da indicação solitária da candidata da continuidade. Lembrou a estratégia de marketing, da propaganda oficial e do uso intensivo da máquina governamental e dos aparatos institucionais postos a serviço da candidata pelo presidente em exercício. Lula incentivou a criação em série de programas e projetos (PAC 1, 2, Minha Casa) que dessem visibilidade à candidata. Essa atitude destemperada do presidente, alimentada por sua alta popularidade, o levou a desrespeitar as leis eleitorais a ponto de lhe valerem, pela primeira vez na história eleitoral do país, multas pecuniárias impostas pelo Tribunal Superior Eleitoral, pagas por seu partido.
Nenhuma palavra, durante três horas, sobre democracia participativa, tendências do crescimento econômico depredador da biodiversidade e da interdependência ecológica das espécies vivas e modificações ambientais.
Nenhuma palavra sobre valores éticos, sociais, educativos e políticos, ficha limpa, impunidade e escândalos que atingem o coração do poder. Não ouvimos nada de novo porque a inteligência prospectiva foi poupada em benefício da exaltação da conquista do poder e da continuidade pragmática do governo vitorioso nas urnas que deixaram 30 milhões de eleitores sem opção e fora do processo eleitoral, além dos 44 milhões que se opuseram à candidata oficial.
Nenhum dos expositores ousou prever como será o próximo governo pelo simples fato de que “ainda não começou”. Assim, será mais fácil prever o passado do que prognosticar tendências para o futuro. Ouviremos chavões cotidianos sobre o direito de os pobres comprarem carro já que, pela primeira vez na história deste país, as elites não estão no poder. Ou de criar uma classe média abobada, incapaz de ler um livro por ano, mas feliz por poder consumir toda sorte de quinquilharias e encher a casa de produtos desnecessários que garantam o crescimento econômico e engordem o PIB.
Não é o cidadão que tem direitos constitucionais à educação igualitária, ao transporte público eficiente, limpo e confortável, à atenção médica preventiva, à participação consciente nas decisões políticas sobre prioridades nacionais. Joga-se com a emoção estimulada por todos os meios de propaganda acima e abaixo da consciência para dar lugar a esse conceito indecente de “eliminar minimamente a pobreza”.
O que se poderia esperar do novo governo é, em meio à turbulência administrativa de um país imenso e superpovoado, que se dê espaço não apenas aos números estatísticos, mas principalmente ao uso da inteligência para que o futuro de nossos filhos e netos seja vivido com mais fraternidade e solidariedade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

CARTA A ALDO



Tenho acompanhado alguns debates entre professores da UnB com sua participação. Os gloriosos feitos da economia, especificamente creditados ao governo do presidente Lula, não podem ser ignorados. Seria humilhante para o povo brasileiro se o país não andasse para frente. Todos os governos tiveram momentos de céu de brigadeiro na economia e também de tormentosos ciclones como o de 2008/09.
Um governo prepara caminhos para o outro. E há caminhos que precisam de reconstituição. Espera-se que Dilma faça mais e melhor, uma vez que seu antecessor, é opinião geral, deixou as pistas abertas.
O que parece estranho é a débil interpretação que se faz de aspectos importantes da vida atual, especialmente a ênfase que se está dando ao consumo e às facilidades de crédito. A propaganda, as formas de sugestão quase autoritárias canalizadas pelos governantes, pelos analistas e pela mídia criaram tal obsessão consumista a ponto de provocar má consciência e acusar de lesa-pátria os que não compram, ou resistem em intumescer os percentuais estatísticos nas datas comemorativas ao longo do ano.
 O pobre tem direito a carro, geladeira, máquina de lavar! Essa ordem foi dada em praça pública sob aplausos. O pobre ou o cidadão têm direitos? Por que o carro é um direito? Por que não um transporte coletivo eficiente, barato, limpo e confortável? Essa técnica de propaganda está contaminando os cérebros.
Estamos sufocados por números e percentuais e, pior que tudo, os aceitamos e acreditamos neles como se fossem oráculos da verdade. Eles chegam a alterar o funcionamento do cérebro e a capacidade de pensar. Acreditamos que a economia capitalista, como a nossa, serve aos pobres e será capaz de diminuir a desigualdade que separa os cidadãos de nosso país. Querem nos vender uma receita demasiadamente fácil.
Aceitamos o argumento de que a desigualdade diminuiu quando 1 passa para 2 e 100 passam só para 150. E nos contentamos com o 100% e o defendemos como êxito e, ao mesmo tempo, acreditamos que o 50% é prova de diminuição da desigualdade.
Vamos supor que o SM aumente de 10%, passando de R$ 510 para R$ 561 e que o aumento de um ordenado de R$ 30 mil seja apenas de 5%. Os R$ 1.500 acrescidos representam três vezes o SM. Onde está a igualdade ou como diminuiu a desigualdade? Que se compare o grupo de SM e sua trajetória de renda é um aspecto lógico importante. Mas tomar essa trajetória de renda para comprovar a diminuição da desigualdade afigura-se como falsidade ideológica e atentado à lógica da realidade. Estamos consciente ou inconscientemente defendendo o status quo, os nossos privilégios.
Somos vítimas da propaganda subliminar de que o consumo vai salvar a economia e que o grande trunfo é levar as massas aos centros comerciais. A loucura do poder está dominando o inconsciente político de intelectuais e da população por essa propaganda veiculada abaixo do consciente e acima do consciente traduzido pela palavra felicidade. Felicidade de consumir.
A proposta de novos impostos segue a mesma lógica. Os impostos caem no BNDS e, daí, para o pré-sal ou tomam caminhos por decisões incontestáveis.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

DILMA, PRESIDENTE



Passado o furacão da propaganda eleitoral e realizado o voto universal, emergiu das urnas uma mulher para presidente do Brasil. O povo estará cansado de homens emasculados pela tortura política e, por isso, elegeu uma avó para presidir o país? Ela cuidará da política e os homens da economia? Ou vice-versa?
Os meses que precederam as datas de votação popular foram marcados por tumultos verbais no campo eletrônico da guerra virtual. Viram-se agressões nas ruas, acordos espúrios entre inimigos históricos, bate-boca sonolento em debates de TV. Ouviram-se muitas promessas do tipo “eu vou fazer”, “eu acho” e nenhum plano de governo com horizonte previsível.
Esse tornado eleitoral não logrou mover o interesse dos eleitores e uma boa parte deles foi às urnas para cumprir o ritual da democracia. Dos 135,8 milhões de cidadãos inscritos, com direito e dever de votar, 38,5 milhões se abstiveram ou anularam o voto. Dos 97,2 milhões de votos válidos, 54,4 milhões (40%) foram para Dilma e 42,7 milhões (31%), para Serra.
Nenhum desses números é exato como, alias, pouco é preciso no país do jeitinho. Somos o país do mais ou menos. Bom, bom, não é, mas... passa. Escondemo-nos matreiramente atrás da margem de erro. Três pontos para mais ou para menos.
A democracia eleitoral brasileira busca salvar-se com duas tentativas para se colocar acima da metade dos eleitores. Metade mais um é indício de maioria e, portanto, de aceitação democrática das futuras decisões que ninguém adivinha. Os candidatos, ou por serem muito bons ou muito ruins, mesmo com dois turnos, não conseguiram que um deles alcançasse, pelo menos, metade dos eleitores inscritos.
A democracia sobrevive de povo. Não se pode crer que os candidatos estejam satisfeitos com esse fracasso eleitoral. Acostumamo-nos ao mais ou menos e à imprecisão, às promessas e às mentiras. Por isso, 38,5 milhões de pessoas, cidadãos, eleitores não nos comovem nem inquietam. Esse número representa uma população maior que a de todos os países escandinavos ou quase oito vezes a da Finlândia e pouco menos que a da Colômbia.
A presidente eleita com 40% dos votos do eleitorado brasileiro, com sua experiente trajetória de mãe e avó, terá que lançar um olhar maternal para os desejos ocultos e insatisfeitos da expressiva população que jaz à margem da democracia.

Observação:Quem quer saber por que ressurgiu a CPMF é só olhar para o mapa resultante das eleições. O vermelho na parte de cima e o azul, na de baixo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

HELIODORA

TENHO O PRAZER DE COMUNICAR AOS QUERIDOS BLOGUEIROS E BLOGUEIRAS QUE
HELIODORA - MEU QUARTO ROMANCE E DÉCIMO LIVRO,  SE OFERECE PARA POSSE

 NO CARPE DIEM, DA 104 SUL,
NO DIA 24 DE NOVEMBRO
A PARTIR DE 19 HORAS
COM DIREITO A UMA TAÇA DE VINHO.

HELIODORA MORA EM BRASÍLIA E FESTEJA O CINQUENTENÁRIO DA CIDADE.
A TODAS E A TODOS UM BEIJO DE

HELIODORA

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

CARRO, DIREITO DO POBRE



Esse decreto foi emitido publicamente pelo presidente Luiz Inácio. Em sua filosofia sindicalista de que tudo tem que ser negociado, fundamenta-se em direitos.  Frente a frente, patrão e operário, capital e trabalho. Todo cidadão é igual perante a Constituição e as leis do país. É um princípio consagrado e indiscutível. O pobre não só tem o direito de ter carro. Acima de tudo, tem o direito de ser pobre e ser defendido e protegido como tal pelo poder público.
Quando se afirma que o pobre tem direito a comprar geladeira, máquina de lavar e carro, significa dizer que a pobreza é uma virtude invencível e indestrutível. Pode-se permanecer pobre. O importante é consumir. Não há carro nem máquina de lavar e, agora, casa de 32m2 que possam eliminar o direito de ser pobre. Nunca antes neste país se havia proclamado que a TV era direito do pobre. Os pobres exerceram esse direito há dezenas de anos e criaram uma floresta de antenas espinha-de-peixe sobre suas casas sem a chancela da autoridade pública.
Na classificação sociológica do presidente, auxiliar de sua comunicação habilidosa com as “massas”, há pobre com dinheiro e pobre sem dinheiro. O pobre com dinheiro tem direito a carro e, o sem dinheiro, a auxílio financeiro para comer três vezes ao dia. Compreende-se a boa intenção do presidente. Ele conseguiu emprego na indústria de automóveis, um dos pilares da economia brasileira. Ele sabe o valor do carro, não só em dinheiro como e, principalmente, em prestígio e autoestima. “Fulano já tem seu carrinho” é a sentença confirmadora do sonho mais alto do trabalhador. Não é propriamente a necessidade inadiável de ter carro e, sim, assegurar um lugar entre os privilegiados que compõem a academia dos vitoriosos.
Poucos como o presidente Luiz Inácio compreendem o prazer de estar nessa academia, permanecendo pobre. De presidente do sindicato passou a presidente da república. Do volante de seu carro chegou ao comando de um avião. Talvez se considere pobre, trabalhador e abençoado por Deus com duas ou três aposentadorias e indenizações merecidas. E, sem dúvida, quer isso para todos os pobres.
Mas, na vida real, em contraposição aos desejos honestos do presidente em sua maneira direta de falar ao cidadão, o automóvel nem sempre confere benefícios a seu dono. Josivan é pedreiro independente. O contrato de trabalho depende de sua habilidade, da qualidade do serviço, dos conhecimentos práticos que adquiriu e da capacidade de negociar o preço da mão de obra. A outra folha do contrato, a mais forte, está com o contratante. Josivan não completou o ensino fundamental. É casado. Tem três filhos, um aparelho de TV e som. Os serviços de saúde são os da conhecida rede pública de hospitais e postos locais. Paga aluguel, água e luz.
Recebeu, por uma obra executada, algum dinheiro e deu entrada na compra do primeiro carro de terceira ou quarta mão, na periferia do DF. Confiou em seu trabalho para pagar o restante da dívida. Não conseguiu licenciar o carro. Os gastos de oficina para satisfazer os requerimentos do Detran deixaram o carro na ilegalidade. Despejado por não poder pagar o aluguel, Josivan mudou-se para outra casa. Mas o direito de comprar automóvel soou novamente. Com o pagamento de um serviço e a perspectiva de outra empreita já acordada, adquiriu outro carro de terceira mão, uma vez que o anterior já fora vendido. Demoliu parte do muro da varanda da casa alugada e abrigou nela o sonho a que tem direito.
Em frente à casa, protegido da chuva, do vento e do sol, repousa, cuidadosamente encerado, o automóvel de Josivan. Não pode sair nele. Falta dinheiro para o combustível e o carburador entupido precisa reparo. A conta da luz está atrasada de dois meses, ameaçada de corte pela Companhia Energética de Brasília. Os aluguéis de três meses estão sendo protelados. A mulher do Josivan precisa do arroz e do feijão. O contratante, segundo Josivan, é mau pagador e o está “enrolando”.
Quem ousará negar ao pedreiro independente Josivan o direito a comprar um carro?