segunda-feira, 22 de julho de 2019

CINQUENTA ANOS DE CAMINHADA


CINQUENTA ANOS DE CAMINHADA


Hilkka e eu continuamos na longa caminhada que, hoje, completa  50 anos. Flores e pedras no meio do caminho.
Ficaram pegadas indeléveis para Aino Alexandra e para Luiza e Laura.
A gente imagina que, em cinquenta anos, se pode virar a outra pessoa ao avesso e conhecê-la por dentro. Ninguém vira outra pessoa ao avesso.
A companheira de uma caminhada de cinquenta anos é indevassável. É ontologicamente única, misteriosa, surpreendente. O que está por dentro da pessoa é privado. É inalcançável em sua grandeza.
O segredo da vida é ser livre e não se deixar prender ao longo do caminho.
O eu se esconde no ela. Com astúcia maternal ela guarda o nascituro no tabernáculo sagrado.
O eu e o ela, abrindo caminhos ao andar, dirigem-se a um ponto no infinito. E o infinito não há.
A dimensão humana percebida, que os anos diriam completa, se revela maior diante de manifestações surpreendentes de magnanimidade na convivência do longo andar.
Cinquenta anos, querida Hilkka, são pouco tempo para compreendermos a trama do destino que nos pôs no mesmo caminho sem hora para chegar.
22.7.1969 – HELSINQUE - FINLÂNDIA
22.7.2019 – BRASÍLIA – BRASIL  

quarta-feira, 17 de julho de 2019

CUSTO DA REGENERAÇÃO



CUSTO DA REGENERAÇÃO


Nestes dias, o governo brasileiro discute se mantém ou não o acordo com a Noruega e Alemanha que oferecem alguns bilhões de reais ao Fundo da Amazônia destinados à preservação das florestas originais.
A floresta amazônica, antes de pertencer ao Brasil, à Colômbia e ao Peru, faz parte do planeta Terra, assim como as florestas da Europa, da Ásia e da África devastadas pela espécie humana nos últimos 15 anos.  No Brasil, o contínuo desmatamento da Amazônia empobrecerá o planeta e extinguirá boa parte da biodiversidade necessária à reprodução da vida. Diga-se o mesmo de todos os demais biomas que formam o ambiente natural do planeta.
A preservação da biodiversidade e o lento processo de regeneração, frente à exploração destruidora da espécie humana para a própria sobrevivência, têm um alto custo de reposição e requerem um tempo muito maior ao da destruição. Destrói-se em meia-hora o que a natureza leva anos para regenerar. É comum dizer-se que para cada Real gasto em devastar são necessários cinco ou mais para recompor o tecido da natureza afetada. Entram, então, dois elementos fundamentais no processo de regeneração: custo e tempo.
Como calcular o custo e determinar previamente o tempo, ambos necessários para a lenta regeneração vegetal e recomposição da biodiversidade de um bioma?
Relato, neste documento, minha experiência de 45 anos acompanhando o lento processo de regeneração vegetal e recomposição da biodiversidade de uma área de 70 hectares (700.000 metros quadrados).
Nessas quatro décadas e com o dinheiro invertido, pude conhecer, compreender e colaborar com o processo lento de regeneração. As condições climáticas são determinantes para a regeneração e para empreender ações cooperantes.
Os primeiros dez anos de contato com a área devastada foram de aprendizagem, de observação, de choque de realidade. O ponto crucial, nesse período, foi perceber as reações da biodiversidade frente às decisões culturais e tradicionais da ação humana dirigidas a explorar a oferta da natureza: solo, água, madeiras, aves e animais.
Os resultados catastróficos decorrentes de queimadas, do desmatamento, da introdução de animais vorazes se revelaram na redução da água, na ineficiente infiltração das águas pluviais, na desertificação estrutural da área. Diante desses efeitos nefastos, nos anos seguintes, interrompeu-se essa corrente antiecológica. Impediram-se queimadas com aceiros protetores e pediu-se, para isso, a colaboração de vizinhos. As áreas de possíveis mananciais foram protegidas e consideradas indevassáveis. Um sistema planificado de contenção de águas da chuva foi implantado mediante centenas de barramentos consecutivos nos canais de esgotamento natural e grotas ao longo e largo da área. Retiraram-se os animais domésticos de grande e médio porte (vacas e ovelhas) considerados predadores eficazes da vegetação.
Impedidas as queimadas, e graças ao sistema de contenção de águas pluviais, o período de chuvas sobre a área pacificada fortaleceu, nos primeiros vinte anos, o colchão de gramíneas, multiplicou e expandiu a vegetação.
Auxiliado pelas barragens de contenção, um novo sistema de captação e detenção de águas da chuva se estabeleceu com a expansão da população vegetal.
Passadas mais de quatro décadas, o processo de regeneração vegetal se consolidou. Voltaram os pássaros, aninharam-se e se multiplicaram em mais de uma centena de espécies graças ao aumento da alimentação provinda de frutas, sementes e multiplicidade de insetos. Animais que haviam perdido seu habitat, como gatos selvagens, coelhos, raposas, quatis, saguis, tatupebas, mão-pelada, macaco-prego se refugiaram nas matas ciliares e/ou sobre árvores frutíferas. Tucanos, jacus, curicacas pernoitam sem medo sobre as grandes árvores próximas às casas de moradia e, ao mesmo tempo, compartem a comida de patos e galinhas..
Espécies arbóreas como cajazeiras, jacarandás, jatobás, aroeiras, sucupiras, embiruçus, angicos, mama-de-porca, copaíbas, guapevas, pequizeiros, ingazeiras, jequitibás e outras se agigantaram e deram um ar de floresta especialmente nas partes baixas do Sítio. A formação de húmus resultante do apodrecimento de folhas e gramíneas aumentou e melhorou a oferta alimentar com apreciáveis resultados no desenvolvimento vegetal.
Um passo importante na recuperação regenerativa do bioma é a integração de todos os componentes da biodiversidade, incluído o predador principal – o homo sapiens.
Novas decisões adequadas à regeneração do bioma, novos comportamentos inteligentes e apropriados derivam dessa compreensão da biodiversidade integrada.
Um novo período de paz vegetal, de tranquilidade e silêncio se consolida pela força do armistício que sinaliza o fim da guerra entre o ser humano e a natureza.
Esboça-se um novo olhar sobre a natureza.
O custo da regeneração se compõe de tempo, de compreensão do sistema natural, de colaboração de todos os componentes da biodiversidade, de recursos técnicos, cognitivos e financeiros.
As peças do orçamento aqui apresentado, com as correções de lei, funcionam há quarenta e cinco anos.

            ORÇAMENTO ANUAL - 2018
ITENS
VALOR R$
Administração
19.882,00
Impostos
5.103,00
Limpeza, coleta de lixo
4.860,00
Manutenção/barragens 60h x 20,00 reais

1.200,00
Aceiro anual
2.000,00
Desobstrução/trilhas, córregos.20h x  20,00 reais

400,00
Transporte/combustível
5.760,00
TOTAL
39.305,00
Custo por hectare
559,90

NOTA:O investimento realizado para acompanhar o processo de regeneração e  preservação é de origem particular, sem apoio de órgãos oficiais ou outras fontes.
Área do Sítio – 70 hectares – 700.000 m2
No ano 2018, a área do Sítio recebeu 1.700 mm de chuva, somando 1 bilhão, 190 milhões de litros de água, com aproximadamente 75% retidos na vegetação e barramentos, facilitando a recarga dos aquíferos e consolidando os mananciais.

(Informações mais detalhadas sobre o paciente esforço da natureza em encontrar o tempo de sua regeneração encontram-se em alguns livros que publiquei sobre o tema: A saga de um Sítio, O retorno das águas, As árvores falam, Ecossociologia, Reencontro – o que aprendi da natureza, Uma obra em verde. Ecologia).

quinta-feira, 4 de julho de 2019

AS PEDRAS DE ROMA POR EDMILSON CAMINHA


Nota: Comentários do escritor e crítico literário EDMILSON CAMINHA sobre AS PEDRAS DE ROMA, traduzido para o inglês.



O PAPA QUE NÃO GOSTAVA DE DEUS

Edmílson Caminha

Eugênio Giovenardi é dos poucos brasileiros capazes de escrever um livro com a riqueza humana e a magnitude literária que põem As pedras de Roma (Porto Alegre : MaisQNada, 2009) entre os mais expressivos romances da nossa literatura, nos últimos tempos. Teólogo, filósofo e sociólogo, o autor detém profundo conhecimento da Igreja Católica, a que apela para contar a história impressionante de Giovanni de Medici, feito cardeal com 13 anos de idade, e que governou o Vaticano, como Papa Leão X, de 1513 a 1521, quando se suicida envenenado, aos 45 anos.
Tempo da maior importância na história da humanidade, nele se assistiu ao esplendor da Renascença, à Reforma de Lutero, ao surgimento das grandes nações da Europa, à consolidação de monarquias, à decadência do feudalismo, à perda do poder secular da Igreja, à descoberta de caminhos para o novo mundo ocidental. Matérias valiosas, que, na pena de historiadores acadêmicos, renderiam páginas burocráticas e enfadonhas. Ocorre que Giovenardi, além de grande pesquisador, é escritor admirável, que prima pela elegância do estilo, fluidez da narração e apuro da linguagem. Ideia relativamente comum a romancistas, o texto é de “segunda mão”, pois veio a quem o publica, no caso, de um ex-diretor da Biblioteca Vaticana. São os “Rapporti confidenziali”, lembranças, pensamentos e relatos de Leão X talvez anotados, e guardados, por um anão que lhe prestava serviços. Filho de Lourenço, o Magnífico, de quem viera o gosto das artes, das letras, das ciências, o herdeiro Giovanni cedo se descobre mais voltado para as pompas do mundo que para o despojamento do espírito:

Quando concorro aos ritos, o faço como ator de teatro, com vestuário adequado, movimentando-me como um personagem no palco iluminado. (...) Cardeal adolescente, na pompa do cerimonial, vestido de seda escarlate, portava-me com a dignidade postiça exigida pelo ato litúrgico. Encenava uma peça que reunia o cômico, o trágico e o dramático num estrado suntuosamente decorado, sob os olhares ocultos das divindades e, ao mesmo tempo, dos espectadores encantados. Ainda me seduz a arte do religioso, a poesia do misticismo, embora dele não participe com o entusiasmo de um místico. Sou um homem da terra, não do Olimpo.

Prefere os prazeres intelectuais ao exame da teologia:

A especulação teológica não me entusiasma. Aborrece-me gastar o tempo em ouvir discussões sobre teses que escarafuncham as entranhas da divindade. Deixo aos dominicanos e agostinianos a tarefa de provar a verdade da ressurreição de Cristo e sua reencarnação.

Não se ilude quanto aos possíveis méritos com que lhe é dado exercer o poder papal:

Das virtudes que se exigem de um papa, nenhuma delas é mais eficaz do que a sorte. A esperteza política está em manter os efeitos da sorte a seu lado. A virtude do político é ser contraditório. As circunstâncias nos contradizem e nos traem. Aposto nos erros e fracassos alheios mais do que em minhas virtudes.

E chega a questionar, com um amigo poeta, o conhecimento que se possa ter do Criador: “Sinceramente, Bembo, quem conhece Deus? Quem sabe o que ele pensa? Deus não pensa. Pensar é humano. Pensar é desvendar o desconhecido. (...) Se Deus fala por mim não tenho certeza, é suficiente que os outros a tenham.”


Sensível aos prazeres da carne, com a princesa Porzia Dupuy tem um filho, que fará cardeal, e entrega-se na cama a experiências homoeróticas com o cardeal Petrucci:

Fâmulos e serviçais do palácio divertiam-se com as cenas de meus ciúmes, nutridos pelas leviandades de Petrucci. (...) Na festa da colheita das uvas, foi trazido ao castelo desfalecido e bêbado. Recusei-lhe o quarto, desprezei seu arrependimento, assinei um lacônico despacho e o mandei de volta a Roma.

A fazer contraponto com a grandeza de Sumo Pontífice, a fragilidade humana representada pela fístula anal que o atormenta ao longo da vida:

O cardeal Petrucci me untava com unguentos de zinco e essências de sândalo. Tornei-me um peso e um estorvo para seus dias de repouso e suas vaidades. Por isso, aceitei de bom grado que os curativos me fossem feitos por jovens enfermeiros do nosocômio Santa Madalena.

Tão bem escrito é o romance que chegamos a crer na veracidade do diário, como se fora mesmo um documento histórico, por entre personagens como Erasmo de Roterdam, Rafael e Leonardo da Vinci. As reflexões são de tal maneira lúcidas ‒ e surpreendentemente atuais ‒ que lembram o Maquiavel d’O Príncipe, embora reduzido por Leão X a “funcionário ambíguo, humilde e calculista”:

O poder é o laço que une a cabeça do Vaticano ao corpo da Ecclesia. (...) Se um dia for subtraído ao Papa o poder de coroar reis e imperadores, sua autoridade será meramente decorativa. Sua voz será ouvida com respeito, repetida por reis, retransmitida por bispos e cardeais, sem ser obedecida.
A política é a arte de enganar com prestidigitações do possível a obtenção do incerto.
A cristandade precisa mais de poetas do que de padres.
O espiritual e o sensual convivem. Separá-los é querer desunir o corpo da alma. Condenar a vida à morte.
Se todos os cristãos fossem honestos e castos a Igreja de Roma seria pobre como os camponeses.
Ao governar, percebe-se que não necessariamente se tem o poder.
Nada que se diga diante de um copo de vinho, e, principalmente, depois dele, tem caráter sigiloso.
Não há que temer pelo futuro. A história é feita de fatos.
É preferível ter inimigos que acusam a amigos que silenciam.
Equívoco imperdoável é estar no lugar errado com pessoas erradas.
Os teólogos costumam envolver em complexas e belas frases o que não entendem.
Não se chega a segredos de Estado sem uma alcova e lençóis limpos.
Que pode haver de herético em alguma interpretação da Bíblia, ela mesma um amontoado de fatos contraditórios?

Os capítulos, elegantemente titulados em latim, são encimados por imagens reduzidas de quadros famosos, que em outra edição merecem, para que melhor apreciem os leitores, reproduções coloridas, em página inteira. É o cuidado devido ao romance com a excelência deste As pedras de Roma, cuja grandeza nos lembra o primoroso ensaio Amor a Roma, de Afonso Arinos de Melo Franco. Dois livros notáveis, belas homenagens à urbe amada por Goethe como a capital do mundo. Sobre as milenares pedras de Roma, Eugênio Giovenardi faz o Papa Leão X desfilar silencioso à frente do seu purpúreo préstito de cardeais, como símbolo de uma ilusória santidade e da triste pequenez a que todos somos reduzidos pela humana condição.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

CRESCER PARA ONDE?


CRESCER PARA ONDE?

Crescer e crescimento, verbo e substantivo que atordoam economistas, deputados, ministros e leigos forçados a repeti-los.
As árvores crescem para cima, garantidas pelas raízes que se ocultam no subsolo.
Só a espécie sapiens se aventura a crescer insensatamente para cima (produzir/consumir) sem dispor de raízes sólidas que sustentem suas ambições. Os adoradores do PIB sonham com o céu da produção de qualquer coisa para que se consuma qualquer coisa. Segundo eles, a sustentabilidade das árvores está em cortar seus galhos para forçar as raízes a resolverem o rebroto. Assim se desfigura a árvore até matá-la.
Crescer para onde? Para baixo! Para as raízes, onde se encontra a origem da semente da felicidade! Para a educação que leva ao saber, ao conhecimento, à virtude sábia da convivência universal, para a contemplação do universo representado por nosso planeta.
Crescer para a saúde mental e física, integrando-se à natureza das coisas e às coisas da natureza.
Crescer na direção das ações criativas e dignificantes, culturais e artísticas, e não apenas na promoção do trabalho repetitivo, abrutalhado, escravizador, com o fim de satisfazer à circulação do dinheiro e cortar os galhos da árvore da vida em nome do poder enlouquecido.
É  necessário, para sustentar a regeneração da vida e da felicidade da existência, um novo olhar sobre a natureza e sobre a sofrida espécie humana sapiens no longo caminho cujo fim ninguém sabe.