quarta-feira, 29 de junho de 2011

DÍVIDAS E DÚVIDAS ECONÔMICAS


Pedro de Montemor, fascinado pela gente criativa de Cascalheira, enviou ao senhor Mantega, ministro da fazenda, uma questão econômica sem precedentes discutida nessa localidade. Cascalheira é um vilarejo pobre, plantado num entroncamento de vias que ligam Brasília a Goiânia, Belo Horizonte e Belém. Situado na fronteira do Distrito Federal e Goiás, o povoado é pobre, mas passa por ele o grande comércio rodoviário, contrabando e drogas. Se faltar crack nos bairros vizinhos, Cascalheira supre os pedidos de urgência. Metade da população está desempregada e a outra metade se vira como pode. Pendura contas na padaria, no açougue, no mercado. As meninas de 13 anos engravidam de graça e as prostitutas oferecem serviços a crédito.

Um traficante, despachado para entrar nos estoques guardados em Cascalheira, disfarçado de empresário se dirige ao hotel despretensioso numa rua sem asfalto. Deixa uma caução de cem reais à recepcionista e pede para inspecionar os quartos.

O dono do hotelzinho pega depressa o bilhete de cem e corre ao açougue pagar o que deve. O açougueiro mandou o filho ao abatedouro clandestino a liquidar a dívida dos porcos comprados. Criador de porcos, o dono do abatedouro pediu à mulher que fosse à agropecuária quitar a fatura do milho e da ração do mês passado. O dono da agropecuária foi à oficina mecânica saldar a dívida de umas peças da caminhonete.

O mecânico aliviado voltou ao hotel com a nota de cem e pagou a diária do quarto onde passara a noite com uma rapariga de Goiás. Nesse momento, o traficante desiste de se hospedar no hotel por falta de segurança ao ver um carro da polícia rondando as ruas. Desculpa-se, agradece, retoma o bilhete de cem reais e sai de mansinho.

Na Cascalheira, a gente vive sem dinheiro e sem dívidas e com uma estupenda confiança no futuro. Descobriu-se o segredo da economia: dinheiro parado não circula.

terça-feira, 28 de junho de 2011

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL OU CRESCIMENTO ZERO

O bom senso da humanidade aponta para a redução do crescimento econômico e a busca do equilíbrio das relações entre os seres vivos e a natureza e conquista importante espaço na consciência mundial. Um dos gritos de alerta anunciando os perigos da exploração exaustiva do planeta foi o da insustentabilidade dos processos de produção que esgotam as riquezas disponíveis aos seres vivos. O desenvolvimento precisa ser sustentável.
Sustentável, sustentabilidade, tantas vezes usados e abusados na forma de adjetivo ou substantivo, esses termos se enfraqueceram com discursos confusos e práticas contraditórias. Mas fica bem dizê-los em qualquer tempo, situação ou circunstância. Candidatos a qualquer posto os empregam. De vereador de minúsculo município ao secretário geral da ONU, ministros, deputados, altos funcionários públicos, executivos bem pagos, donos de empreiteiras e construtoras, grandes proprietários rurais e líderes de movimentos sociais de diferentes orientações e propósitos todos se dizem preocupados com a sustentabilidade.
As boas intenções originais brotadas de gabinetes ou escritórios climatizados do Banco Mundial, iluminados com energia atômica, diante do crescente esgotamento de áreas agrícolas em todos os países, frente à poluição generalizada e uso maciço de agrotóxicos, perderam-se no emaranhado da retórica ambientalista. O alerta original apontava para os efeitos de longo prazo se a natureza continuasse maltratada com queimadas, exploração intensiva e extensiva da terra, uso de agrotóxicos mais e mais eficazes. Que efeitos? Redução da quantidade e qualidade de produtos alimentícios e catástrofe ambiental.
Que tem a ver queimadas na Amazônia com sustentabilidade? Ou a transformação de milhares de hectares de florestas e cerrado em campos de soja ou cana-de-açúcar? Que tem a ver o crescente estimulo do governo brasileiro à produção e venda de automóveis com o conceito original de sustentabilidade? Que tem a ver com sustentabilidade o inchaço descontrolado de nossas cidades inundadas a cada ano, cortadas por avenidas, viadutos, estacionamentos, trânsito caótico e criminoso? Nada vezes nada.
O termo se tornou ridículo na boca de presidentes e ministros e chegou ao cúmulo da zombaria conceitual ao associá-lo ao desenvolvimento. Frases como a da ministra do meio ambiente soam à irresponsabilidade: “O Brasil tem todas as condições para ser líder em sustentabilidade”. O novo código florestal, como quer que se aprove, é garantia da insustentabilidade.
O conceito de sustentabilidade foi sequestrado pelo autoritarismo econômico do mercado. Tomam-se todas as precauções para colocar os mecanismos da máquina de produção de bens como créditos bancários, juros suportáveis, subsídios e redução de impostos com dinheiro público para favorecer o consumo intenso de milhões de consumidores com os artifícios de políticas públicas. A guerra contra a miséria e a pobreza não visam diretamente às pessoas no que têm de mais nobre: liberdade e participação democrática nas decisões políticas. Essa guerra objetiva levar multidões de consumidores aos supermercados e centros comerciais, às empresas de construção, aos bancos, às agências de automóveis, aos aeroportos para apaziguar a fome do PIB. A sustentabilidade se reflete e se resume no PIB. Se o PIB cresce, a sustentabilidade do lucro econômico está garantida. Até quando?
Por fora desta raia correm os ambientalistas com voz rouca e pernas cansadas. Por quê? Nesses debates, nas propostas que põem a sustentabilidade em jogo, raramente se aponta o cerne da questão: crescimento da população. Os ambientalistas, por medo de ofender a humanidade, se alinham aos comportamentos estimulados por instituições ideologicamente conservadoras. O sistema econômico, ao contrário, por estratégia intrínseca de sobrevivência precisa de grande população, propositalmente diversificada e a transforma em peça de mercado.
Em qualquer parte do mundo e em qualquer nível de capacidade de atender e suprir suas necessidades de sobrevivência, o crescimento da população é o maior desafio da sustentabilidade no que respeita à reprodução das riquezas naturais disponíveis aos seres vivos. A população cresce em ritmo maior do que a capacidade humana de administrá-la eficaz e equitativamente. Ao mencionar população, o termo deve estender-se a todos os seres vivos, todos eles implicados na sustentabilidade dessas riquezas disponíveis. População humana, população animal, população vegetal. A sobrevivência dessas três categorias de seres vivos depende de um elemento básico: água. Para sobreviver, essas populações competem entre si no consumo de água. A interdependência dessas populações – a cadeia trófica – depende do equilíbrio do consumo de água e da proporcionalidade de tamanho de cada um dos grupos de seres vivos. Um exemplar bovino precisa consumir 15 mil litros de água (compreendida a recuperação ambiental que ocupa) para construir um quilo de massa corpórea. Isso equivale a 18 milhões de litros durante seus quatro anos de vida. Uma pessoa consome, em média, 200 litros diários em seu ambiente, o que representa ao final de 70 anos, pouco mais de 5 milhões de litros de água. Só o rebanho bovino, no Brasil, é estimado em 198 milhões de cabeças, maior que a população brasileira, com um consumo de água superior a 3 vezes a necessária para os cidadãos.
São essas as questões fundamentais da sustentabilidade. Como imaginar o desenvolvimento sustentável devastando florestas e destruindo esses laboratórios de produção de oxigênio? Como imaginar o desenvolvimento sustentável arrasando a Amazônia e o Cerrado, comprometendo e extinguindo nascentes? Como imaginar o desenvolvimento sustentável abrindo poços artesianos no campo e nas cidades, esvaziando as reservas subterrâneas como está acontecendo com o Aquífero Guarani nas áreas de fronteira entre Paraguai, Argentina e Brasil? Como imaginar o desenvolvimento sustentável com 16 milhões de miseráveis no Brasil e mais de 2 bilhões no mundo que ainda não alcançaram ver um prato de comida decente?
Parece evidente que o bom senso das gerações futuras optará pela redução do consumo predador e pela diminuição mais eficaz de populações que desertificam o planeta. Há de se alcançar, de forma equilibrada, o fornecimento de bens essenciais, materiais e não materiais, necessários à sobrevivência de todos os seres vivos. Salvam-se as árvores, poupa-se água. Hoje, se gasta um real para exaurir a terra e investem-se cinco reais para recuperá-la. O futuro inverterá a tendência insana do crescimento econômico baseado no PIB e nas esdrúxulas leis do mercado. Investirá para proteger preventivamente a natureza e os seres vivos e desfrutará com tecnologias limpas as riquezas do planeta.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A MENTIRA DA MERENDA ESCOLAR

No Brasil, se mente a grandes e a pequenos. Mentem os presidentes acobertados por estatísticas, ou quando dizem que nada sabem do que se passa dentro da própria casa civil. Mentem os ministros quando dizem que já foram tomadas as providências cabíveis. Mentem os funcionários aos chefes e aos jornalistas. Sobre a merenda escolar, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, pela voz de seu presidente, assessores, coordenadores e diretores da Escola Classe 304 Norte, em Brasília, com requintes de mentira televisionada enganaram a esposa do Secretário Geral da ONU.
A Escola Classe 304 Norte é modelo do que se deveria fazer em todas as escolas do país. Parte dos ingredientes da merenda escolar é produzida na horta do educandário. Essa prática elogiável não representa a situação das demais escolas do Distrito Federal. Das 560 escolas públicas, talvez dez, se tantas, produzem alguns alimentos para a merenda escolar. A compra de ingredientes para a merenda escolar é uma fonte de descaso e corrupção amplamente conhecidos no país. O que se mostrou à ilustre senhora da ONU foi um protótipo experimental, um fato isolado do conjunto subsidiado pelo Fundo Nacional e, com base nele, foi transformado pela malandragem burocrática em “paradigma para o mundo”.
As explicações de assessores e coordenadores do FNDE envergonham quem conhece a qualidade da merenda servida nas escolas do DF e do resto do país. Que paradigma é esse para ser copiado pelo mundo? Nossa malandragem sabe enganar ilustres visitantes que nos abordam sem informações prévias e o faz com categoria. Ninguém percebe em que gráfica foram impressos nossos cartões de visita. Todo mundo finge acreditar que daquele chapéu saem dezenas de coelhos.
O mais espetacular é ver no rosto do funcionário a seriedade e a convicção dos apadrinhados políticos que exercem o poder de informar. Seria inimaginável que um comissionado do governo, cujo mérito é pertencer ao seleto grupo de cabos eleitorais, mostrasse à esposa do Secretário Geral da ONU a verdadeira merenda escolar servida no Centro de Ensino Fundamental da Agrovila Engenho das Lajes, a 50 km do Palácio do Planalto. Lá encontraria o paradigma dessa atividade incluída no desenvolvimento educativo. Outra seria a impressão da ilustre senhora.
Não há que estranhar se, amanhã, o ministro da educação da Etiópia ou da Somália vier, a convite do Itamarati, apreciar o paradigma da merenda escolar brasileira na Escola Classe 304 Norte do Plano Piloto da cidade mais bem paga do Brasil.

domingo, 19 de junho de 2011

SOCIEDADE


Quando a oposição, ou organismos não governamentais, ou sindicatos e associações de classe vêm a público reclamar que a sociedade não foi consultada sobre uma extravagante decisão do governo central ou de algum de seus brilhantes ministros a que se referem? Esse ministro ou o governo inteiro não pertencem à sociedade? De onde brotaram para espinhar a sociedade com propostas inaceitáveis? A sociedade não os reconhece nem compreende sua língua?
O pré-sal foi lançado como um programa salvador da pátria e da pobreza brasileira. Todos os estados da federação requisitaram parte do futuro dinheiro extraído de uma profundidade de seis mil metros. Esse dinheiro do futuro chegou a ser emprestado ao BNDES e devolvido ao governo num gesto administrativo espetacular justificado como sábio truque de “contabilidade criativa” para beneficiar milhões de brasileiros. A sociedade brasileira não foi ouvida e não sabe até hoje o que é o pré-sal. As empresas de petróleo devem saber. Elas pertencem à sociedade? A qual sociedade?
Dizem que a sociedade organizada deve ser consultada em audiências públicas. Qual é a sociedade que vai às audiências públicas? O governo e as petroleiras pertencem à sociedade desorganizada e, por isso, precisam consultar a sociedade organizada?
O governo quer esconder o volume de dinheiro que jogará pelos ares para ser aplicado em estádios de futebol, transporte público, trem-bala, aeroportos. Vai fechar num quarto escuro todos os segredos de Estado, do Lula, do Sarney, do Collor, da Guerra do Paraguai, das falcatruas dos bancos, das torturas passadas e presentes, dos assassinatos do tempo da ditadura. Tudo isto está fora da sociedade. De qual sociedade? Onde está a sociedade? E essas passeatas diárias são organizadas por qual sociedade?
O certo é que temos de ouvir a sociedade.

sábado, 18 de junho de 2011

MINHA QUERIDA

Os cacoetes da amabilidade assumidos pela linguagem de tratamento expressam a sutil hipocrisia da alma brasileira. O que se esconde por trás desses biombos delicados, amaneirados e cordiais nem sempre é revelado no cara a cara.
– Dulcimar, meu bem, seu chefinho está?
– Xavier, meu querido, ele acabou de entrar numa reunião,
– Preciso falar com ele, urgente. É aquela licitação, minha querida.
No dia seguinte.
– Dulcimar, minha rainha, consegui os parceiros que seu chefe sugeriu. Ele está?
– Um momentinho, meu anjo.
– Grande chefe! Como é que vai essa força?
– Agora bem melhor. É uma honra ouvi-lo.
– Aqueles detalhes foram resolvidos. Tudo dentro da lei.
– Você não existe, Xavier. Amanhã a gente se fala, no Bar Boteco.
– Dulcimar, minha pérola, corta esses telefonemas do Xavier. Ligo pra ele do meu celular.
– Entendo, chefe. Faço o que posso. Ele é um carrapato. Não desgruda do telefone.
– Está bem, minha querida, mas você sabe por quê.
Três dias depois.
– Dulcimar, minha princesa, posso dar uma palavrinha com seu adorável chefe?
– Meu amor, ele foi chamado ao gabinete do ministro. Ele te liga no celular.
– Essa sem vergonha não quis me passar o Sarmento, disse Xavier ao sócio. Ela tem cara de ....Não me engana.
– Consegui despachar o Xavier, disse Dulcimar ao chefe. Ele está se tornando inconveniente.
– Deixe, meu bem. Eu trato daquele safado lobista.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

MULETAS GENTIS

– Às suas ordens, meu jovem!
Sou recebido com amabilidade na loja. O balconista não me perguntou o nome nem me estendeu a mão. Sorriu-me como se fôssemos amigos desde a infância. Olhei os produtos da loja, sempre acompanhado de perto pelo vendedor, certo da comissão que iria ganhar. Nada comprei e me despedi dele. Ele era jovem. Eu, não.
Tenho várias denominações: cliente, consumidor, contribuinte. Nestes casos, o PIB depende de mim. Além desses tratamentos comuns, poderia ser chamado de Senhor, Idoso, Velho, Terceira Idade ou dessa ridícula Melhor Idade na qual tudo se esquece e tudo beira à incontinência. O jovem vendedor preferiu equiparar-me a ele em vez de me alcançar uma muleta.
Todo mundo sabe o que se pensa e se diz dos idosos ou dos velhos quando estão ao volante, no caixa do banco ou do supermercado. A Terceira Idade é tratada com privilégios e com linguagem jurídica. Está nas placas ao lado de gestantes e deficientes físicos. Já a Melhor Idade é vista em reuniões dançantes de abrigos de velhos ou cerimônias promovidas por organismos oficiais para fazê-los esquecer das câimbras e da rigidez dos movimentos.
Entrei jovem naquela loja e, como saí sem comprar, ouvi a verdade nua e crua quando já estava fora da porta: Velho é assim!
Parei na calçada, cocei o queixo e me perguntei secretamente: Assim, como?

sábado, 11 de junho de 2011

CRESCIMENTO ZERO

Apesar da obsessão incontida do consumo, estimulada por todos os meios de divulgação, incluindo-se subsídios oficiais, as pessoas sentem que algo está errado nessa volúpia de comprar. Intuem, mas são intimidados pelo próprio conformismo de expressar seu sentimento sobre esse perigo que se anuncia.
O delírio do crescimento econômico que incita a produzir mais para consumir mais, está nos levando para o impasse, a frustração e o desastre. Há que deter a expansão econômica impulsionada a qualquer custo, pois a mina de ouro – a natureza – é limitada. A tendência inteligente aponta para o decrescimento gradativo rumo ao estágio do crescimento zero, equilibrado, sensato para chegar ao ponto ômega em que o corpo se encontre com a alma e vice-versa.
Uma nova atitude diante das ameaças à vida no planeta poderá encontrar formas radicais de contenção do crescimento econômico sem perder a ternura. Deverá ser possível buscar o caminho do decrescimento inteligente ou a inteligência capaz de alcançar o estágio do crescimento zero (CZ). O primeiro passo é programar o crescimento zero da população. Menos gente, menos agressão à natureza, menos tudo. A economia pode mudar seu enfoque para se desligar dos sentimentalismos religiosos e do assistencialismo político da opção pelos pobres e declarar corajosamente sua opção pelos ricos. Eles são minoria no mundo. Isto significa drenar em profundidade a riqueza acumulada em poucas mãos para aplicá-la na contenção demográfica através de incentivos públicos à redução da expansão da população. Trata-se de inverter os papéis estratégicos das funções do Estado: administrar a riqueza e não a pobreza.
Por outro lado, expande-se cada dia mais, entre as mulheres, a sensação benéfica de que a felicidade feminina não precisa de cinco gravidezes para consolidar a maternidade. Há, portanto, condições favoráveis para o crescimento zero da população e, consequentemente, o crescimento zero da economia. Há que se caminhar na direção de prover a sociedade humana de bens socializáveis e reduzir os bens materiais individualizáveis. A tecnologia eletrônica de comunicação mundial é um dos exemplos de bens socializáveis. Dá-se, dessa forma, mais amplo espaço às pessoas para desfrutarem o essencial da existência que é a própria vida, um bem intransferível.
(Introdução a outras crônicas sobre o mesmo tema)


quinta-feira, 9 de junho de 2011

CORPUS CHRISTI

Recebi pela Internet e por mensagem eletrônica um aviso sobre a possível preparação de filme intitulado Corpus Christi (O Corpo de Cristo), pelo cineasta Richard Kelly, autor de Donnie Darko, Southland Tales e A Caixa. Nesse novo filme Jesus seria caracterizado como homoafetivo, nova denominação de pessoa gay. Antecipadamente à elaboração, o filme está sendo denunciado como “paródia repugnante de Jesus”. Há quem proponha já uma campanha para “evitar a projeção deste filme no Brasil e até em outros países”. O dramaturgo americano Terrence McNally, com a peça teatral de mesmo nome, Corpus Christi (1999), provocou uma sentença de morte pronunciada pelo mulá Omar Bakri Mohammad.
A história humana foi e será muitas vezes reinterpretada. Os tempos correm e distanciam os fatos históricos de suas origens. As lendas que se arrastam por séculos recebem nova interpretação e redação. Até canções infantis, cuja letra reproduzia sentimentos de sadismo, hoje, são revisitadas e modificadas. Minha filha, na creche, aprendera a cantar: “Atirei o pau no gato to to...” Minha neta, 34 anos depois, no embalo da volta à natureza, tem nova versão: “Não atire o pau no gato to to, pois o gato to to é nosso amigo go go...”
Lendas e doutrinas religiosas que, em sua origem, expressam espiritualidade, medo, ânsia do desconhecido, necessidade de vencer a morte, conceber e crer num ser poderoso e superior capaz de proteger as pessoas também se confrontam com novos tempos. Jesus, por suas características taumaturgas, ampliadas pelas interpretações de seus seguidores, ao longo de dois milênios, não escapa à curiosidade de exploradores de lendas.
A Igreja católica, principalmente, sempre apresentou Jesus como uma das três pessoas divinas, sem começo nem fim, referidas no gênero masculino: Pai, Filho, Espírito Santo. São pessoas homogêneas, igualmente divinas e eternas, indissoluvelmente homoafetivas. Uma delas é personificada como Amor. Conclui-se que é próprio da natureza divina de Jesus ser homoafetivo. Ensina-se, na teologia, que ele se dispôs a integrar-se à humanidade, principal obra do Criador. O fato de cumprir sua missa na Terra, amparado em doze pessoas do gênero masculino, sugere que a felicidade e a paz da humanidade dependem do amor entre os homens. Entre esses doze, um deles, João, era o discípulo amado mais que os outros. O ciúme de Judas teria corroído sua fidelidade não correspondida por Jesus a ponto de entregá-lo aos inimigos por pregar doutrinas contrastantes com as dos deuses romanos em decadência.
Não há crime em interpretar uma lenda milenária à luz dos comportamentos modernos. A forma de olhar antigas tradições de origem oral e, posteriormente, registradas em documentos, repõe os fatos diante da realidade que se apresenta nos dias atuais. A tolerância foi ensinada por Jesus que, sendo pessoa divina homoafetiva, no conjunto da Trindade, ensinou a homoafetividade como atitude sã na convivência humana. Em geral, as igrejas cristãs são homofóbicas, contrariando a principal lição de tolerância e compreensão entre as pessoas. A Jesus são atribuídas a natureza divina e a humana em sua perfeição máxima. É, portanto, dupla a homoafetividade do Nazareno. É, ao mesmo tempo, heteroafetiva amando Maria Madalena e homoafetiva retribuindo o amor de João na última e íntima ceia.
Se Richard Kelly rodará o filme segundo os roteiros que circulam em mensagens eletrônicas só o tempo aclarará. Estranhamente, porém, a informação que se tem, até o presente é de que a trama se passa no Texas, na qual um veterano da Guerra do Iraque, mentalmente instável, forma uma amizade estranha com seu chefe, um político rico e ambicioso, dono de uma cadeia de supermercados. Qualquer semelhança com o evangelho será mera coincidência.

RELEMBRAR

Sugeri várias vezes, neste espaço, que o senhor Lula seria o principal responsável pelo desmantelamento moral no exercício do poder, da degeneração do caráter do seu partido e de grande parte dos petistas e aliados. Criou a geração de aloprados, inventou a mentira dos "recursos não contabilizados", também ditos caixa dois, a "contabilidade criativa" para esconder rombos no orçamento, encomendou estatística dirigidas, ocultou corruptos no palácio presidencial, asilou figurões traidores da ética política, comprou favores e privilégios a familiares.
Aos que frequentam este blog, tomo a liberdade de remetê-los a três crônicas aqui publicadas: Barbas de molho, Ovo da serpente e Martírio da democracia.

terça-feira, 7 de junho de 2011

EXTREMA POBREZA

Louve-se a presidente Rousseff pelo anúncio de lançar um desafio para retirar da extrema pobreza 16 milhões de brasileiros. Com trezentos anos de atraso, insurge-se o governo contra essa escravidão disfarçada de extrema pobreza. Que não seja um ato determinado pelo medo da insurreição imprevista dos chamados excluídos. Até onde irá esta proclamação de libertar os escravos da moderna economia?
O que é extrema pobreza? Divergem as interpretações e abundam as definições. Só sabe o que é extrema pobreza quem está nela, mas ninguém lhes perguntou. Quem está nela? A resposta fulminante foi dada por quem nunca passou perto dela. O limite da extrema pobreza está determinado pelo valor mínimo da renda que é de R$ 70,00 por mês. Isto, em palavras miúdas, quer dizer menos de R$ 3,00 por dia. Pés no chão, roupa rasgada, barriga d’água, farinha com rapadura, casa de barro, lata de água na cabeça, escola sem carteira, filas de hospital, voto de cabresto. Tudo isto será abolido com a libertação dos escravos modernos?
Por que estão esses brasileiros na extrema pobreza? Várias características foram identificadas nessa população. São analfabetos, negros, afrodescendentes, nordestinos, sem-terra, expulsos do campo, marginados nas cidades. Por essas falhas históricas, 16 milhões de cidadãos ganham menos de 70 reais por mês, não sendo possível alimentar-se saudavelmente com essa quantia. Para libertá-los da extrema pobreza, isto é, para lhes permitir comer mais, o governo propõe incluí-los no Programa Bolsa Família, dando-lhes um subsídio R$ 20 por pessoa o que lhes aumenta a diária para três reais. É mais que antes e mais que nada.
Matematicamente, esse pequeno subsídio retira 16 milhões da extrema pobreza. Se for verdade, é um feito digno de elogios. Por que não se fez isso antes com tanto dinheiro engolido por inúmeros ralos desde a presidência, passando pelo Congresso Nacional e expandindo-se por 37 ministérios, sem contar roubos e sonegação de impostos?
O que não se pode entender é como a presidente Rousseff tolera na Casa Civil um ministro deputado que amealha 20 milhões para dar bons truques e dicas a empresários e não sugeriu ao antecessor Silva medida tão singela.
Para avaliar melhor o que é extrema pobreza, à luz da matemática governamental, compare-se o ganho de um assessor parlamentar que faça refeições num self-service de preços módicos e de um recém-retirado da extrema pobreza. O assessor parlamentar pagará pela refeição um preço em torno de R$ 15,00. O que saiu matematicamente da extrema pobreza terá três reais para pôr no prato quantidade cinco vezes menor. Provavelmente, os três reais não pagam a sobremesa do assessor parlamentar. O estacionamento ao redor do restaurante comunitário da Samambaia (Brasília,DF), que serve refeições a um real, ao meio-dia, está lotado de carros.
Sem dúvida, as próximas estatísticas do IBGE ou do IPEA nos dirão que alguns milhões das classes E e D subiram para a C; que a desigualdade entre essas classes diminuiu e que a renda dos mais pobres aumentou mais do que a dos mais ricos. Cinismo estatístico.
Estamos falando de pobreza matemática, de 16 milhões de brasileiros e mais R$ 320 milhões de reais por mês no aumento do consumo de bens, que atiçam a indústria e engordam o PIB. Os outros aspectos que envolvem a pobreza extrema, a ser libertada gradativamente para não pôr em risco a robustez da economia e a tranquilidade dos investidores, dependem dos 37 ministérios ao longo dos próximos cinquenta anos.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

SUA MAJESTADE MARIA I

Patriotas de todo o Brasil, eleitores de todos os matizes políticos, cidadãos de todas as opções religiosas e convicções sexuais, contribuintes dos mais imperceptíveis impostos, súditos honestos e contraventores das leis da república lembrem-se que este país já foi governado por uma rainha louca, Sua Excelentíssima Majestade Maria I, falecida em março de 1816, no Rio de Janeiro.
O Brasil Colônia de exploradores, o Brasil reinado de perdulários, o Brasil Império de dois Pedros e, agora, a república da impunidade já passou por vicissitudes sem conta. Não será um Collor destituído, um Sarney acidental, um Delúbio mensalão, ou um Palocci imobiliário que alterarão o sono do “gigante deitado em berço esplêndido”. Se este país pôde consolidar seu imenso território e deixar no analfabetismo sua população durante séculos, importar escravos, eliminar nossos primeiros habitantes, “civilizá-los e cristianizá-los” e derrotar o Paraguai, nada temos, hoje, a temer. Se o país não foi abocanhado por ingleses e holandeses, mesmo com uma rainha louca no poder, trancada no Palácio da Quinta da Boa Vista, doado ao regente D. João VI por Elias Lopes, o maior traficante de escravos da época, não há porque temer a narcoinvasão de drogas e a expansão do terceiro sexo.
Temos história. Não são esses míseros 20 milhões do ministro Palocci que afetarão a autoridade da sucessora de Sua Majestade a rainha louca Maria I. Somos um país grande, esquizofrênico, futebolístico, carnavalesco, generoso e cordial. Se já tivemos uma rainha louca, todos os demais governantes, presidentes, ministros, deputados e senadores serão tolerados com paciência, cinismo, ironia e alguns palavrões. Chegamos ao cúmulo da complacência de ouvir mentiras crassas como se fossem verdades indiscutíveis. De presenciar a negação de fatos escancarados e aceitar o diagnóstico de sofrermos de ilusão ótica.
Patriotas de todos os times de futebol, quem já foi governado por uma rainha louca não pode estranhar este cenário de manicômio que ora contemplamos.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

ACIDENTE ELEITORAL

A eleição do senhor Collor de Mello à Presidência da República, sua renúncia ao mandato não aceita pelo Congresso Nacional e sua destituição proclamada pela maioria dos deputados e senadores, ovacionada pela pátria dos caras-pintadas, não passaram de um reles acidente histórico. Assim definiu o senhor Sarney a ausência do fato histórico vivido por esse cidadão na galeria dos feitos legislativos. É de se recordar que o próprio Sarney é vítima de um desastre eleitoral. Sua eleição pelo Amapá foi o maior acidente de urna registrado na democracia brasileira.

Nossa história, segundo esse sinistrado senhor, é uma sequência de acidentes, uns mais graves que outros, uns mais felizes. A casualidade trouxe, há cinco séculos, Pedro Álvares Cabral às costas da Bahia. O sinistro napoleônico empurrou Dom João VI para a Baía da Guanabara. O azar impeliu Dom Pedro I a gritar às margens do Ipiranga que ficaria por aqui. O imprevisto terremoto político demoliu o Império e fez brotar a República. Que é Canudos senão uma eventualidade nos confins de Monte Santo, na Bahia? Que é a guerra do Paraguai senão uma ocorrência militar numa fronteira deserta do país chafurdada no pantanal? O Golpe Militar de 1964 não passou de uma contingência durante a qual deputados e senadores receberam o carimbo da inutilidade legislativa. Um incidente que durou escassas duas décadas, tempo risível nos 500 anos de história.

Os fatos históricos que as professorinhas ensinam aos pequenos idiotas das escolas primárias, agora sabemos pela interpretação do sinistrado senador Sarney, que tudo não passa de acidentes, de escorregões, de choques entre forças cegas, de quedas fatais nos buracos de nossas estradas. Agora sabemos que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal são depósitos de acidentados. O Congresso Nacional está sendo vítima de um acidente cardiovascular. Trocamos o Ato Institucional número cinco por um Acidente Institucional. O mensalão do PT, a queda do senhor José Dirceu, a prisão do Governador do DF José Roberto Arruda, os lucros imprevistos do ministro Palocci, a guerra do tráfico dos morros do Rio de Janeiro e das favelas de São Paulo compõem parte da lista de acidentes ocasionais de nossa história contemporânea.

O Brasil está paraplégico, de muletas e de cadeira de rodas, vítima de acidentes fatais e vitalícios que abarrotam as UTI’s e os centros cirúrgicos do Congresso Nacional. “Nunca antes nesse país” tudo se tornou eventual, casual, aleatório, ocasional, circunstancial e onde se negocia o azar, se ri do delíquio e se zomba do essencial.

Que falta faz um Cícero no Senado! Até quando aguentaremos calados o cinismo, a insolência, a arrogância, o despudor e a sem-vergonhice de íncubos e súcubos do Congresso Nacional portadores de esquizofrenia política e hebetismo crônico?

Pátria amada, salve, salve!