A palavra acumulação, assumida pelo sistema capitalista, significa acúmulo de lucros a fim de serem investidos, reinvestidos ou, ao alvitre do proprietário, levados a seu tesouro particular. A palavra expressa também uma estratégia de sobrevivência utilizada por todos os seres vivos: plantas, animais e pessoas.
Se no sistema econômico de reprodução de bens a acumulação de reservas pode assumir um caráter amoral e até imoral, nos processos de sobrevivência e reprodução dos seres vivos é um artifício intrínseco da natureza. A natureza é, em si mesma, um processo de acumulação e reserva para garantir a interdependência dos seres vivos. A interdependência dos anéis desta corrente ordena o consumo, de forma simétrica e assimétrica, das reservas acumuladas na natureza, dando-lhe tempo para repor as partes consumidas. Assim, a mosca, que põe os ovos na fruta, desencadeia um processo de alimentação para outros insetos e é, depois, vítima da aranha. Os exemplos tendem ao infinito e se denomina cadeia trófica.
O ser humano que pode dispor de inumeráveis bens tirados diretamente da natureza ou reproduzi-los em grande escala para sua sobrevivência, será consumido por vermes. A interdependência dos seres vivos não obedece às regras da possível nobreza de diferentes espécies. A lei da sobrevivência não distingue direitos mesmo que, eventualmente, o mais forte tripudie sobre o mais fraco. No universo natural, em realidade há mais tendência à cooperação do que à competição. Na cadeia trófica da interdependência todos os anéis experimentarão o dia dos fracos.
A principal e mais importante reserva da natureza é a água. Dela brotou a vida e, sem ela, nenhum outro tipo de acumulação será possível. É tão evidente esse axioma que toda a sobrevivência se consuma em volta da água. Os vestígios das primeiras civilizações do planeta foram localizados à beira de rios e lagos. A água traz em si a dialética da vida e da morte cuja síntese pode ser uma ou outra segundo o uso que se faça dela. O ser humano percebeu essa dualidade desde os primórdios de seu refúgio nas cavernas. Uma das formas mais antigas usadas para conservação de alimentos é a desidratação por secagem ao sol, ao vento ou pelo frio, praticado pelos Incas, e por defumação. A evolução tecnológica aperfeiçoou essas descobertas por meio do processamento industrial com a agregação de conservantes químicos.
Voltemos à principal reserva da natureza, a água. Para início desta observação é necessário afirmar que o ser da espécie humana é o único anel da cadeia da interdependência capaz de esgotar reservas naturais de água, deteriorá-las e transformá-las em focos de doenças que o vitimarão. Nenhum outro ser vivo comete semelhante ato de suicídio e tal atentado contra a reserva acumulada de água em geleiras, rios, lagos e plantas. A desertificação progressiva por práticas de agricultura intensiva, desmatamento descontrolado e urbanização elimina nascentes, seca fluxos de água e contamina os aquíferos subterrâneos.
As plantas acumulam água nas raízes, nos troncos, nas folhas. São reservas não só para os indivíduos vegetais, mas também para o equilíbrio ambiental. É uma reserva comunitária. Dependendo do bioma, em regiões de escassas chuvas, nas quais vivem milhares de variedades de plantas, a acumulação de água se faz nas raízes a quinze ou vinte metros abaixo do solo em regiões onde predominam duas estações anuais para suportarem a longa estiagem de seis meses.
O único ser dito racional é que descamba para a irracionalidade. O único ser, que usa a razão para acumular bens desnecessários, fortunas não utilizadas, riquezas ociosas e que trata irracionalmente as reservas de água dos mananciais, dos lagos e rios, dos bosques e florestas, é o homem. O ser humano é o único, entre todos os anéis, capaz de fazer desertos. Por fortuna, é capaz de desfazer desertos, mas a custos incalculáveis, uma vez que, nessa contabilidade, um dos passivos irrecuperáveis é o tempo. A preservação de mananciais facilmente acessíveis é necessária e importante para o abastecimento de populações interioranas, idosos, doentes ou em recuperação.
A irracionalidade do fazedor de desertos é compensada pela alegria e orgulho ingênuo de estar substituindo a nascente de água que eliminou, carbonizando ou impermeabilizando o solo, por uma caixa de água, abastecida por uma tubulação que percorre centenas de quilômetros.
Historicamente, os países chamados desenvolvidos cresceram, nas sociedades primitivas, mediante roubo e rapina. O trabalho escravo e sua venda estimularam a acumulação de riquezas e bens imóveis. Nas etapas coloniais, os países centrais acumularam transladando às metrópoles grande parte das riquezas produzidas nas colônias Na sequência, a acumulação se fez mediante trabalho escassamente remunerado e executado durante dois terços do dia, até o aparecimento dos sindicatos. A sociedade evoluiu para o pagamento de patentes, royalties e, mais modernamente, por intermédio de termos de câmbio internacionais descompensados em que mais unidades de matéria prima são necessárias para comprar uma unidade industrializada. Finalmente, a acumulação se dá mediante taxas usurárias e repatriamento de lucros obtidos em países emergentes.
Os processos de acumulação econômica indicam, então, que em algum ponto do sistema subtraiu-se riqueza que poderia estar em outra parte. Subtrai-se do trabalhador, de condições físicas de trabalho, de benefícios públicos ambientais, dos impostos devidos. A acumulação de água em tubos quilométricos e caixas com milhões de litros também implica processos de subtração visíveis e invisíveis, calculáveis e incalculáveis.
Não se trata, portanto, de consumir para assegurar a sustentabilidade ecológica da interdependência e a biodiversidade e, sim, para avançar nos processos tecnológicos mais adequados aos interesses dos produtores industriais e consumidores.
Cria necessidades, estimula os desejos de satisfazê-las, perde o controle dos limites de uso dos elementos disponíveis e avança irresponsavelmente sobre os bens acumulados pela natureza, confiante em sua capacidade tecnológica de sobreviver. Assim o faz com o solo, com as árvores, com os animais e, especialmente com a água.
A espécie humana tem obrigação racional de dar maior importância à cadeia trófica da interdependência dos elementos vivos e inanimados para garantir a biodiversidade e a sustentabilidade ecológica da vida no planeta. Há evidncias que estamos a caminho de um “ecocídio”; também chamado colapso civilizatório.