quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

LIXO



Diga-me como tratas o lixo e dir-te-ei quem és.
Houve tempos em que jogar binga de cigarro pela janela do carro era sinal visível de gente bem. O cinzeiro, como assessório inovador desse sonho moderno recolhia os tocos dentro do automóvel e consolidava o cheiro da fumaça no estofamento. Ao chegar ao estacionamento da casa ou do edifício publico o fumador esvaziava os pequenos cadáveres no chão sem imaginar o destino final dos dejetos.
Em nossos dias, ampliou-se a gama de detritos que são lançados sem comiseração nem educação em qualquer lugar. Sacos plásticos de todos os tamanhos voam ao vento ou arrastam-se pelo solo. São deixados ali mesmo onde são esvaziados. No chão, sobre a grama, na rua, no ônibus ou simplesmente atirados pela janela do apartamento ou da casa.
O Lago Paranoá, em Brasília, é depósito de sofá, cama, geladeira, máquina de lavar, como recentemente foi mostrado pela TV. Percorra você, de olhos abertos, nossas rodovias no perímetro do Distrito Federal e constate o que há às margens. Toneladas de entulho transportado por caçambas ou carretos puxados a cavalo, provenientes de reforma de apartamentos, casas, escritórios e restaurantes. Montanhas de sacos plásticos pretos, brancos e verdes de lixo não recolhido pelo Serviço de Limpeza Urbana, rasgados por cães famintos ou catadores de restos aproveitáveis em franca decomposição.
As chuvas torrenciais nesta época de verão arrastam tudo aos córregos que alimentam as represas que nos servem água potável. Chuva limpa. Água suja.
O lixo, hoje, faz parte da civilização do progresso, do crescimento econômico, do consumo e do desperdício. Do toco de cigarro ao celular, do plástico de supermercado ao velho computador, da garrafa ou lata de refrigerante ou cerveja às fraldas descartáveis à beira das ruas sinalizam a cultura e a mentalidade de um povo.
Somos uma indústria ambulante de lixo. Do bebê ao nonagenário produzimos um quilo de lixo ao dia e toneladas de Co2. No dia em que a educação e a cultura conseguirem implantar na cabeça dos responsáveis pela limpeza pública e na dos produtores individuais e industriais de dejetos que tratamento de lixo e água limpa estão indissoluvelmente unidos passaremos a outro patamar de civilização.
Por enquanto, estamos no andar de baixo.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

CARTA À ÁRVORE



Hoje, fui a um cartório a fim de solicitar o registro legal de tua existência. É tua certidão de nascimento que se confunde, frequentemente, com a de óbito. Mas, sem ela, não te posso proteger nem tens direito natural de viver. Nada temes mais do que o machado, a motosserra e o fogo insano.
As leis que obrigam ao registro de terras que te deram vida e a certidão que reconhece tua existência estão impressas em tiras brancas extraídas da carne de árvores abatidas. A mesa sobre a qual se apoia a mão que te legaliza é feita de postas de tuas irmãs sacrificadas contra as leis e os registros de cartório. A cadeira na qual senta a autoridade que generosamente te concede a liberdade condicional de existir saiu de pedaços de tua carne.
Enfim, precisamos do papel, da mesa e da cadeira, retirados de teu corpo, para dar-te existência legal. Dobro-me à evidência de que parte importante de nossa efêmera vida, às vezes feliz, depende de ti. Tu serias feliz sempre, mesmo sem nós.
Emprestas teus galhos para descanso de aves e trepadores, para os ninhos de pássaros e pouso de borboletas.
Acolhes, à tua sombra amena, o peregrino caminhante ou o animal sôfrego e cansado.
Guardas a água da chuva abundante em tuas ramadas e umedeces o ar que respiramos.
Enches a atmosfera de oxigênio para conforto de todos os pulmões.
Cobres de verde nossos vales, nossas montanhas e garantes o borbulho das nascentes que nos dão a água de cada dia.
Aqui está, árvore do meu Sítio, o registro que te outorga existência legal nesta minúscula área de proteção permanente, onde nasceste livre e, indefinidamente, poderás viver.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

ACUMULAÇÃO ECOLÓGICA

A palavra acumulação, assumida pelo sistema capitalista, significa acúmulo de lucros a fim de serem investidos, reinvestidos ou, ao alvitre do proprietário, levados a seu tesouro particular. A palavra expressa também uma estratégia de sobrevivência utilizada por todos os seres vivos: plantas, animais e pessoas.
Se no sistema econômico de reprodução de bens a acumulação de reservas pode assumir um caráter amoral e até imoral, nos processos de sobrevivência e reprodução dos seres vivos é um artifício intrínseco da natureza. A natureza é, em si mesma, um processo de acumulação e reserva para garantir a interdependência dos seres vivos. A interdependência dos anéis desta corrente ordena o consumo, de forma simétrica e assimétrica, das reservas acumuladas na natureza, dando-lhe tempo para repor as partes consumidas. Assim, a mosca, que põe os ovos na fruta, desencadeia um processo de alimentação para outros insetos e é, depois, vítima da aranha. Os exemplos tendem ao infinito e se denomina cadeia trófica.
O ser humano que pode dispor de inumeráveis bens tirados diretamente da natureza ou reproduzi-los em grande escala para sua sobrevivência, será consumido por vermes. A interdependência dos seres vivos não obedece às regras da possível nobreza de diferentes espécies. A lei da sobrevivência não distingue direitos mesmo que, eventualmente, o mais forte tripudie sobre o mais fraco. No universo natural, em realidade há mais tendência à cooperação do que à competição. Na cadeia trófica da interdependência todos os anéis experimentarão o dia dos fracos.
A principal e mais importante reserva da natureza é a água. Dela brotou a vida e, sem ela, nenhum outro tipo de acumulação será possível. É tão evidente esse axioma que toda a sobrevivência se consuma em volta da água. Os vestígios das primeiras civilizações do planeta foram localizados à beira de rios e lagos. A água traz em si a dialética da vida e da morte cuja síntese pode ser uma ou outra segundo o uso que se faça dela. O ser humano percebeu essa dualidade desde os primórdios de seu refúgio nas cavernas. Uma das formas mais antigas usadas para conservação de alimentos é a desidratação por secagem ao sol, ao vento ou pelo frio, praticado pelos Incas, e por defumação. A evolução tecnológica aperfeiçoou essas descobertas por meio do processamento industrial com a agregação de conservantes químicos.
Voltemos à principal reserva da natureza, a água. Para início desta observação é necessário afirmar que o ser da espécie humana é o único anel da cadeia da interdependência capaz de esgotar reservas naturais de água, deteriorá-las e transformá-las em focos de doenças que o vitimarão. Nenhum outro ser vivo comete semelhante ato de suicídio e tal atentado contra a reserva acumulada de água em geleiras, rios, lagos e plantas. A desertificação progressiva por práticas de agricultura intensiva, desmatamento descontrolado e urbanização elimina nascentes, seca fluxos de água e contamina os aquíferos subterrâneos.
As plantas acumulam água nas raízes, nos troncos, nas folhas. São reservas não só para os indivíduos vegetais, mas também para o equilíbrio ambiental. É uma reserva comunitária. Dependendo do bioma, em regiões de escassas chuvas, nas quais vivem milhares de variedades de plantas, a acumulação de água se faz nas raízes a quinze ou vinte metros abaixo do solo em regiões onde predominam duas estações anuais para suportarem a longa estiagem de seis meses.
O único ser dito racional é que descamba para a irracionalidade. O único ser, que usa a razão para acumular bens desnecessários, fortunas não utilizadas, riquezas ociosas e que trata irracionalmente as reservas de água dos mananciais, dos lagos e rios, dos bosques e florestas, é o homem. O ser humano é o único, entre todos os anéis, capaz de fazer desertos. Por fortuna, é capaz de desfazer desertos, mas a custos incalculáveis, uma vez que, nessa contabilidade, um dos passivos irrecuperáveis é o tempo. A preservação de mananciais facilmente acessíveis é necessária e importante para o abastecimento de populações interioranas, idosos, doentes ou em recuperação.
A irracionalidade do fazedor de desertos é compensada pela alegria e orgulho ingênuo de estar substituindo a nascente de água que eliminou, carbonizando ou impermeabilizando o solo, por uma caixa de água, abastecida por uma tubulação que percorre centenas de quilômetros.
Historicamente, os países chamados desenvolvidos cresceram, nas sociedades primitivas, mediante roubo e rapina. O trabalho escravo e sua venda estimularam a acumulação de riquezas e bens imóveis. Nas etapas coloniais, os países centrais acumularam transladando às metrópoles grande parte das riquezas produzidas nas colônias Na sequência, a acumulação se fez mediante trabalho escassamente remunerado e executado durante dois terços do dia, até o aparecimento dos sindicatos. A sociedade evoluiu para o pagamento de patentes, royalties e, mais modernamente, por intermédio de termos de câmbio internacionais descompensados em que mais unidades de matéria prima são necessárias para comprar uma unidade industrializada. Finalmente, a acumulação se dá mediante taxas usurárias e repatriamento de lucros obtidos em países emergentes.
Os processos de acumulação econômica indicam, então, que em algum ponto do sistema subtraiu-se riqueza que poderia estar em outra parte. Subtrai-se do trabalhador, de condições físicas de trabalho, de benefícios públicos ambientais, dos impostos devidos. A acumulação de água em tubos quilométricos e caixas com milhões de litros também implica processos de subtração visíveis e invisíveis, calculáveis e incalculáveis.
O sistema natural de acumulação tem como finalidade manter a satisfação das necessidades e requerimentos básicos da reprodução e sobrevivência das espécies através da interdependência dos processos vitais, cujo princípio é a economia de água. O consumo necessário dos bens acumulados em todos os momentos, fases e etapas da interdependência pelas espécies, constitui e assegura a sustentabilidade ecológica e a biodiversidade autorregulada.
Al Gore, cujo mérito foi colocar na agenda mundial o tema da mudança climática, progressiva e acelerada, com forte participação da mão do homem, pretende que, dentro do capitalismo seja possível conciliar crescimento e sustentabilidade. A corrente do crescimento zero, porém, argumenta que essa conciliação é impossível. O termo sustentável é inapropriadamente aplicado ao crescimento econômico, pois se refere ao processo de produzir mais para consumir mais, criando necessidades supérfluas, permitindo novos investimentos e engrossando o volume da acumulação individual, empresarial e estatal, dando conotação política ao aumento do patrimônio global medido pelo Produto Interno Bruto. O indicador mais apropriado seria o produto interno líquido, pois se deveria descontar do total produzido por uma sociedade os estoques diminuídos ou destruídos, a exemplo das ações que afetaram os ecossistemas, deixando imensos passivos ambientais impagáveis.
Não se trata, portanto, de consumir para assegurar a sustentabilidade ecológica da interdependência e a biodiversidade e, sim, para avançar nos processos tecnológicos mais adequados aos interesses dos produtores industriais e consumidores.
A espécie humana invade o sistema da interdependência – cadeia trófica – com mecanismos tecnológicos que impedem a defesa das demais espécies e, portanto, da biodiversidade. Ameaça a biodiversidade natural e silvestre produzida ao longo de civilização através de processos de domesticação culturalmente obtida, em troca de organismos geneticamente domesticados ou transgênicos, cujos resultados são ainda incertos.
Cria necessidades, estimula os desejos de satisfazê-las, perde o controle dos limites de uso dos elementos disponíveis e avança irresponsavelmente sobre os bens acumulados pela natureza, confiante em sua capacidade tecnológica de sobreviver. Assim o faz com o solo, com as árvores, com os animais e, especialmente com a água.
A espécie humana tem obrigação racional de dar maior importância à cadeia trófica da interdependência dos elementos vivos e inanimados para garantir a biodiversidade e a sustentabilidade ecológica da vida no planeta. Há evidncias que estamos a caminho de um “ecocídio”; também chamado colapso civilizatório.

ESTA GUERRA É NOSSA – II PARTE



É deprimente ouvir e ler o que se diz e se escreve sobre a guerra do Rio travada pela tropa de elite três. Tudo está centrado na força das armas e na ação coordenada e espetacular das manobras militares, sem dúvida uma das razões de aplauso do povo, talvez não a mais importante.
Tudo está sendo feito para que a felicidade e a alegria da população reconheça o poder da lei, das armas e da polícia do Estado, outrora colaboradora do fortalecimento do comércio de drogas ilícitas.
A vitória de vinte mil homens fortemente armados e treinados contra 500 livre-atiradores não pode ser motivo de orgulho para quem quer construir relações de liberdade e convivência democrática no país.
Pelos depoimentos apresentados, percebe-se que os moradores dessas comunidades são pessoas sem força social e sem coesão comunitária e, por isso, se amoldam a quem os ajuda. Ontem, recebiam auxílio dos chefetes do morro e se acomodavam às suas ordens. Hoje, estão todos, ou a maioria, aplaudindo a polícia, os militares, os marinheiros. Amanhã, criticarão a todos porque perceberão que armas e soldados não recolhem lixo, não melhoram o transporte público, não renovam escolas, não canalizam o esgoto, não plantam árvores nos parques nem humanizam a urbanização de encostas perigosas. Armas não são a solução.
Infelizmente, os que governam o Estado esquecem que seu papel é administrar população. Usar armas para resolver conflitos é mais fácil do que construir uma organização participativa nessas comunidades onde falta quase tudo.
Ali, há pais, mães, avós, jovens e crianças. Os que fugiram pelos atalhos dos morros têm pai e mãe. Em falta do lícito, conseguiram com o ilícito pôr geladeira, máquina de lavar, televisão na casa da mãe que, desesperada com a possível morte do filho, o entrega à justiça.
Quem, no governo, está preparado, treinado e tem vontade de colaborar na construção de uma organização comunitária participativa com essas pessoas? Esta é a alternativa.
Se organismos não governamentais, associações de base por categorias e secretarias de governo se unissem para liberar as energias populares, como se uniram as forças militares, com inteligência e treinamento, apoio financeiro continuado e irrestrito, igual ao prometido pelo presidente Lula ao Governador do Estado do Rio de Janeiro para combater o crime com armas, em poucos anos – não em quatro – a autogestão se implantaria definitivamente nos morros e o resultado das futuras eleições poderia ser diferente.
Se essas comunidades confiarem mais na força, na organização e na presença da polícia armada, elas nunca serão livres. Serão devedoras permanentes de favores que vêm de cima. Trocam apenas de chefetes.
Um dos direitos fundamentais do cidadão é a liberdade de pensar para se organizar, escolher e decidir. Participar é decidir ou não é nada.