terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O lixo nosso de cada dia

Numa viagem à Espanha, em 1967, um deus árabe me revelou que toda a filosofia e o gérmen da solução dos problemas humanos tinha a ver com a matemática e principalmente com as quatro operações. Desde então, com certa freqüência me assalta o impulso de somar e multiplicar, diminuir e dividir.
Hoje acordei com instinto matemático ao pensar na sujeira que amanhece em volta de restaurantes e supermercados, dentro e fora das lixeiras.
Começo por contar a população de Brasília com o auxílio de estatísticas que se contradizem e desmentem umas às outras. Fico com uma população de 2.000.000 de almas. Almas? No meu caso aqui são corpos que produzem uma média de 250 gramas de fezes e urina por dia, elevando-se essa soma a 500.000 kg de excrescências diárias destinadas a dar vida à alma e sujeira ao mundo. Aonde vão parar esses aromáticos 500.000 quilos? É surpreendente que não se morra intoxicado pelo fedor nauseabundo.
Chego depois a um cálculo aproximado sobre o lixo orgânico e seco das 400.000 famílias do Distrito Federal. Lixo composto de restos de comida, latas, vidros, embalagens de papelão e plásticos. Um quilo por família, diariamente. Uma soma de 400.000 quilos. Todo o santo dia. Agrego outro tipo de lixo que reúne jornais diários, revistas, papel de presente, embrulhos, correspondência e propagandas irritantes. Quero ser moderado para que não me acusem de exagero ou de Cassandra do mal e atribuo apenas 100 gramas por família/dia, o que me dá um montante de 40.000 quilos.
Nós, os brasilienses, temos a ousadia de produzir, a cada vinte e quatro horas, 940.000 quilos de lixo. Ao final do ano estamos diante de uma espantosa e quase inacreditável montanha de 343 milhões de quilos ou, se o leitor tiver mais facilidade de visualizar dimensões em toneladas, ali estão à sua frente, anualmente, 340 mil toneladas o que lhe dá uma pilha de 5 milhões, setecentos e dezoito mil e trezentos e trinta e três sacos de 60 kg. que, colocados em linha reta, cobririam quase três mil quilômetros, mais ou menos a distância de Brasília a Porto Alegre.
Se esta quantidade de arrepiar os cabelos tivesse que ser levada para fora de Brasília, seriam necessárias 42 jamantas, diariamente.
Os ecólogos ainda dormem. Quanto mais gente, pior. Salve-se quem puder. O futuro é um pouco mais que sombrio.

Leia o livro A SAGA DE UM SÍTIO

MILIONÁRIOS

Uma revista de grande circulação informa que a supereconomia brasileira faz 164 milionários por dia. A notícia excitou-me. Pus-me logo a fazer contas para compreender a importância desse número e dessa gente endinheirada na, agora, sexta potência econômica mundial.
Minha imaginação, imediatamente, buscou localizá-los na porta de restaurantes finos, lojas de carros importados, agências de viagem. Estariam todos juntos, nesse dia, vestindo roupas da moda e sapatos de couro de jacaré? Qual seria a origem dessas sementes transgênicas lançadas na bolsa de valores, na compra e venda de ações ou carros de luxo? O real que chega ao milhão começou no centavo. Pensei na diarista, no gari, no sapateiro da esquina, no garçom do Líbanus, mas eles continuam sempre assim. Portanto, não são esses centavos que viram milhão de um dia para outro.
Meus cálculos dizem que, no ano, se fazem ao redor de 60 mil milionários. Não é, na verdade, um número expressivo se comparado aos 190 milhões de brasileiros, dos quais 55 milhões estão ainda no estágio dos centavos, agraciados pelo Bolsa Família, 15 milhões são analfabetos, e um número indefinido de milhões é miserável.
É, de fato, uma minoriazinha de milionários que a pujante economia capitalista do senhor Lula e do PMDB fabrica por ano. Nesse ritmo, a menos que esse pessoal gere milionários no ventre, a supereconomia brasileira levará 3.000 anos para elevar a população atual ao estágio de possuidores de um milhão de reais per capita.
Se é verdade que os impostos se elevam a 35% sobre a renda do cidadão, o fisco, com sua sagacidade e habilidade instaladas na Receita Federal, recolherá, neste ano, R$ 21 bilhões dos R$ 60 bilhões que os 60 mil milionários conseguiram de forma lícita e honesta. Nesse imposto recolhido está metade do que não se pode mais arrecadar com a CPMF, depois que a oposição resolveu dizer a que veio. A recomendação dos estrategistas de longo prazo é óbvia. Dobrar a produção de milionários por ano.
Mas, pelo menos, a ponta do iceberg se revela e permite compreender a afirmação peremptória das autoridades estatísticas de que houve um espetacular aumento da renda e um vibrante estímulo ao comércio. De fato, a renda transborda desses 60 mil milionários, favorecidos pela supereconomia brasileira, e irriga outros milhões de salários mínimos que adquirem geladeiras, celulares, máquinas de lavar, carros zero quilômetro, sustentados pela modalidade de dívidas bancárias esticadas em 70 prestações.


29.01.2008

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

NAZISMO FITOGÊNICO

Não bastasse ao cidadão brasilense ter que se defender dos condutores sem paciência, para atravessar a rua na faixa de pedestres, está agora atormentado por um batalhão de motosserras terceirizadas. Lá se vão, sob o olhar atônito do contribuinte, as sombras de antigas árvores.
Um besouro boliviano se instalou nas mongubas. Qual foi a solução? Abater árvores frondosas. A solução mais simples é tirar o sofá da sala para evitar o namoro dos filhos.
Sem intenção ofender nem diminuir a competência e o zelo de provectos funcionários públicos, penso que já é tempo de, se não substituir comandos, pelo menos mudar a mentalidade dos que decidem. Vive-se uma ditadura administrativa.
É urgente informar aos que foram designados para representar os cidadãos comuns, na administração de departamentos que lidam com a natureza, que o mundo está mudando.
Os alarmes disparados pelo Correio Braziliense dão a entender que há um perigoso conceito nazista fitogênico a contaminar os processos de decisão da Zoobotânica. Um tal senhor Darlan Alcântara, autoridade de parques e jardins, mandou retirar os cambuís de um estacionamento por não pertencerem ao bioma do Cerrado. E quantos de nós fazem parte do bioma do Cerrado, com exceção do senhor Darlan? E o quase um milhão de automóveis, impondo rodovias, avenidas ampliadas e duplicadas, estacionamentos, viadutos sobre nascentes, brotou nas grotas de Vicente Pires? Os invasores de dezenas de APAS, são deste bioma? A soja que arrasou milhares de hectares do DF é, por ventura, deste bioma? O cambuí não é culpado do aquecimento de Brasília.
É preciso dar outros brinquedos de fim de semana aos que dirigem nossos departamentos de proteção ao meio ambiente, além dessa maquininha chamada vaidade do poder.
Limpeza genética do Cerrado é insensatez. A grandeza do Cerrado está em sua capacidade de receber e adaptar variedades incontáveis de espécies e não de eliminá-las. É este o conceito de bioma.
Expresso minha opinião e me associo à Associação dos Amigos e Freqüentadores do Parque Nacional de Brasília, aos Antônios, às Sílvias, às Marias, com a paciente experiência de proteger, defender e estimular, por mais de 35 anos, uma área de Cerrado de 100 hectares . Convivo, ali, com dezenas de milhares de plantas, numa combinação harmoniosa de variedades, por certo ainda não conhecidas dos que administram nossos departamentos relacionados com o espaço que ocupamos.
Todos nós que não pertencemos ao bioma do Cerrado, fomos recebidos no planalto aberto. O Cerrado nos ajudou a adaptar-nos às suas regras. Não seria o caso, à imitação dos cortadores de árvores, que se erradicassem pelo menos dois terços dos habitantes do DF e arredores e fossem reenviados a seu bioma de origem?
O Cerrado não precisa de nós. Nós é que precisamos dele. Deixem em paz as deliciosas pitangueiras, goiabeiras, mangueiras, as perfumadas magnólias e os imponentes ficus.

Eugênio Giovenardi, autor, entre outros, do livro A Saga de um Sítio – convivendo com o Cerrado, LGE, 2007.
eugeniogiovenardi@yahoo.com.br
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61 9981 2807

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

DEPOIS DO IMPÉRIO

Existe o império americano?
Sua presença inquietante no mundo globalizado e seu ativismo bélico comandado por Bush é sinal de força ou de fraqueza?
Suas últimas incursões em países distantes e débeis demonstra que seus exércitos são capazes de conquistar, mas não de conservar os territórios. Ganham a guerra formal e destroem a autonomia do país invadido. Ao contrário do universalismo generoso do antigo império benfeitor, que permitia a fusão das culturas, o pretenso império americano demonstra desprezo pelo desigual e diverso. Desconhece e arrasa costumes e cultura do povo submetido, impondo-lhe modelos estranhos.
Seria este um dos sinais inequívocos do fim de um império? Estratégia militar para encobrir uma indústria em declínio, uma economia cada vez mais consumista e pouco produtiva, dependência crescente de produtos importados da Ásia e Europa, decréscimo das exportações?
Para garantir um lugar no centro do palco internacional, a Casa Branca define uma solução mágica e simbólica: combater o “eixo do mal” que passa por paralelos muçulmanos do Oriente. Militarismo teatral, cinematográfico, antecipadamente vitorioso, ao redor do qual, no caso do Iraque, o petróleo poderia ser apenas um pretexto.
O canto do cisne, o último suspiro do império em decadência, ferido de morte.
Estas são as profecias de Emmanuel Todd, antropólogo francês e jornalista, que previu, em 1978, o esfacelamento da União Soviética.
Outros impérios se dissolveram quando se perderam os recursos ideológicos indispensáveis para sua sustentação. O insucesso de Atenas sobreveio ao restringir-se a cidadania a privilegiados étnicos, a cidadãos de pleno sangue heleno. O sucesso de Roma termina quando se adota como distintivo um único deus e uma só religião, sob Constantino. Quem administra o poder absoluto, César ou Pedro (Gibbon, Declínio e queda do império romano).
Os EEUU, durante sua época autenticamente imperial, eram curiosos e respeitosos do mundo externo. “A América enfraquecida e improdutiva da presente década tornou-se intolerante. Pretende encarnar um ideal humano exclusivo, possuir a chave de todo o sucesso econômico. Esta recente pretensão à hegemonia social e cultural, este processo de expansão narcisista é um sinal entre outros do dramático declínio da real potência econômica e militar. Incapaz de dominar o mundo, nega-lhe a existência autônoma e a diversidade de suas sociedades.”
Em conseqüência, a América do Norte, privada de uma percepção homogênea da humanidade e dos povos, não pode mais reinar sobre um mundo vasto e diversificado.
Uma parcela significativa do povo americano, injustamente odiada, com certeza se exclui dos exércitos imperiais comandados por Bush. A Europa catalizou as atenções dos povos que desejam a paz. O “eixo do bem” ficou sob suspeita.
Best seller na França e na Alemanha, neste verão, as profecias de Emmanuel Todd, contidas no DEPOIS DO IMPÉRIO, esperam por seu implacável cumprimento.
(Texto publicado em 2005)

Emmanuel Todd
DEPOIS DO IMPÉRIO
Tradução de Clóvis Marques
Record, 2003

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

TESTAMENTO

Demiti-me de todas as funções,
de todos os empregos,
de todos os compromissos
que a esperteza do poder me havia convencido de tomá-los.
Compreendi que não é o Estado que cuida dos cidadãos,
mas a burocracia madrasta e sem rosto
que assina a certidão de nascimento
e o atestado de óbito
com a mesma indiferença.
Compreendi que nenhum regime pode se apaixonar
por um homem ou uma mulher
porque seria sua própria morte
ou condenação ao suicídio lento e silencioso.
Desisti de construir o socialismo para os que,
com seriedade fátua,
me dirão amanhã
o que devo e o que não devo,
o que posso e o que não posso,
e como pensar e como não pensar,
e o que é politicamente correto e o que não é.
Abandonei a ilusão de amamentar um regime
pelo qual teria que amoitar-me
para que ele fosse triunfante,
enquanto outros seriam perseguidos
ou abandonados por ele,
sempre com justificadas razões.
Percebi que todo ismo e qualquer partido
tem braços abertos para receber
e ferros reluzentes para atar mãos
e calar bocas.
Tenho enjôo quando ouço conclamações
para engrandecer a pátria
e detenho o vômito
quando prometem que a economia voltará a crescer.





Curei-me de revoluções.
Curei-me da obsessão do progresso.
Curei-me da febre do desenvolvimento.
Curei-me do dever doentio
de me pôr à esquerda de qualquer pensamento
e de me agarrar à sestra de qualquer projeto.
Sorrio cinicamente aos discursos dos bem-falantes
que ameaçam derrotar a pobreza
com a sucata da riqueza.
Aprendi e acostumei-me a ver a lógica transparente
do começo enigmático e do fim imprevisível
das coisas e das pessoas.
Reconheço-me impotente para vencer a morte,
por isso não entrego a ninguém minha vida solitária.
Compreendi, e é tarde, que, para viver a paz humana,
era imprescindível dar a quem de alguma coisa precisasse,
parte do que, dando, me fizesse falta
e não as migalhas do que me está sobrando.
Com a alma livre posso rir do que faz chorar a outros
e posso chorar do que a outros provoque o riso.
Tenho pena da água cristalina que já não corre,
das plantas que já não sombreiam,
das flores que já não são.
Não tenho medo da luz de todos os sóis,
de todas as pálidas luas,
de todas as irrequietas estrelas do firmamento azul.
Não tenho medo de ser atropelado pela felicidade súbita.
Curei-me também do dever de ser feliz.




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Eugênio Giovenardi
Outubro, 2003