quarta-feira, 31 de março de 2010

O ARMÁRIO DO PAPA

Vivi e atuei na Igreja Católica até os 31 anos. Passei duas décadas internado em seminários repletos de meninos e adolescentes e em conventos escuros habitados por homens rígidos, bem-nutridos, a caminho do paraíso, desviando os atalhos que levam ao inferno. Os atos de pedofilia e homossexualismo, em seminários e conventos masculinos e femininos, foram cuidadosamente, durante séculos, empilhados em arquivos secretos.
Tive oportunidade de compreender, nesses anos de silêncio e meditação, a complexidade da verdade divina e da hipocrisia humana, da sinceridade e da mentira. Todas as falhas, tidas como pecados, eram debitadas à fragilidade do homem e à sua tendência à desobediência às leis e a contrariar a vontade de Deus. As virtudes, que também sustentam o espírito e o caráter, dependem do Espírito Santo sem mérito pessoal do cristão.
Essa escamoteação de sentimentos, ora escondendo-se na humildade, ora exaltando o poder superior, conduz à moral hipócrita. O confessionário é o banco dos réus. Nele se desfaz esse nó chamado pecado com a absolvição dada em nome de Deus. O pecado e o pecador são guardados em segredo pelo confessor.
Parte de um rosário extenso dentro de seminários, conventos, escolas católicas e paróquias, as últimas notícias de pedofilia atingiram o Vaticano e alcançaram o Papa. A Igreja Católica continua a ensinar que a pedofilia e o homossexualismo se enquadram na lista de pecados e até são considerados doenças do espírito. Essa doutrina impede que o papa, os cardeais, bispos e sacerdotes saiam do armário.
Essas doenças, para a Igreja, são incuráveis, mas devem ser tratadas com pílulas de oração e comprimidos de confissão semanal. Entram, portanto, no âmbito do segredo: sei, mas não posso dizer.
O menino bulinado denuncia o padre ao bispo. O bispo é denunciado ao cardeal. O cardeal é denunciado ao papa. O Papa é o representante de Deus e fala em nome Dele. O Papa deve ser denunciado a Deus que só proferirá sentença no Juízo Final. Enquanto isso, o Papa, como qualquer outro réu, negará que sabe o que sabe. Dirá que é fofoca do dia e intriga de ateus.
Foi essa hipocrisia oficial, pondo Deus como testemunha e juiz, que me fez romper com a Igreja Católica aos 31 anos de idade. Abri, palmo a palmo, o caminho da liberdade de pensar, de querer e de dizer, creditando e debitando a mim meus atos humanos.

CENTENÁRIO DE BRASÍLIA

Carta que minha neta Luiza me enviou, em 21 de abril de 2060.
Hoje, Brasília completa 100 anos. Subi na Torre de TV com minha neta. A cidade e arredores parecem uma imensa floresta. O Parque da Cidade, desde 2035, foi remodelado depois da proibição da entrada de carros. Chega-se até o Parque de ônibus circular ASANORTE/PARQUE (ANP), de metrô de superfície (MS) ou de bicicleta. Nos antigos estacionamentos, há escolas de pintura, de música, de danças e ginástica.
A vista do Lago é magnífica. O Passeio da Orla, sombreado por elegante arborização, inaugurado em 2030, recebe milhares de brasilienses, diariamente, para longas caminhadas. Uma empresa comunitária, sob fiscalização eletrônica, faz a manutenção e limpeza do Passeio e administra as cabanas de refrigério ao longo das duas pistas. Uma, para bicicletas. Outra, para caminhantes.
Com as novas leis do trânsito, adaptadas às determinações do Comissariado Mundial do Ambiente, a maior parte do transporte urbano é público e movido a energia solar ou elétrica. Desde 2050, a população se desloca por meio de bicicletas ou motoelétricas. Finalmente, com a pressão intensa dos cidadãos, o transporte público reduziu o número de automóveis ao mínimo necessário: ambulâncias, bombeiros e taxis de emergência. As avenidas, agora sombreadas, servem aos ciclistas e motolétricos.
Os estacionamentos são, em sua maioria, pequenos e agradáveis parques com chafarizes, alimentados com águas da chuva retida em reservatórios subterrâneos, espalhados pela área de Brasília e cidades-satélites. Quase todos os estacionamentos foram transformados em centros de cultura, de saúde e laboratórios de pesquisa. A quebra da Petrobraz, em virtude da abolição do uso de combustíveis sujos, desvalorizou milhões de carros que ficaram impedidos de trafegar. Seus proprietários os utilizam como pequenos quiosques, ao longo das ciclovias, para vender refrigerantes, sorvetes e lanches.
Com os estímulos e a descentralização dos serviços públicos para as cidades-satélites, Brasília e seus monumentos arquitetônicos atraem mais turistas e visitantes do que cidadãos em busca de soluções burocráticas. Os mesmos estímulos e descentralização foram aplicados nos Estados da Federação, levando centenas de milhares de moradores do Distrito Federal a voltarem a suas cidades de origem ou ir para áreas especiais de exploração da permacultura, e alimentos orgânicos.
Além disso, a Lei Demográfica, de 2028, recomendou e pôs em prática um plano de decrescimento da população. Depois da implantação da rede escolar eletrônica, em 2052, os alunos do primeiro e segundo graus e parte dos universitários, assistem às aulas por computador em suas casas ou salas adaptadas nos edifícios e quadras onde moram. O mesmo acontece com as consultas médicas encaminhadas através de um serviço de saúde pública, eletrônico, individual e comunitário, pelo qual os pacientes recebem as orientações, medicações ou recomendações especializadas. A qualidade e a oportunidade do ensino e do atendimento sanitário são as mesmas para todos os cidadãos. Reduziram-se os custos sociais e se utilizam os impostos para outras finalidades, além de sobrar mais dinheiro do salário familiar no fim do mês.
Uma nova Lei do Lazer foi instituída, em 2055, promovendo a construção de arenas e teatros, agregados a bibliotecas comunitárias, nos espaços desocupados por automóveis, para execução de orquestras, conjuntos musicais e representação dramatúrgica. Um apreciado programa de arte e cultura para todos.
Brasília e todas as comunidades que a rodeiam parecem um imenso parque onde cantam, nas madrugadas, milhares de pássaros de todas as cores. Nele correm águas cristalinas que brotam de nascentes recuperadas, graças à intensa arborização e proteção das árvores nativas e outras espécies adaptadas. A ideia nuclear do projeto do arquiteto Lúcio Costa de construir cidades-parque, para felicidade de nossa geração e com nossa participação cotidiana, foi compreendida e executada.
Cem anos é um tempo suficiente para aprender lições que servem para os que vêm depois de nós.

sexta-feira, 26 de março de 2010

PÉROLA DE UM CONDÔMINO

É admirável a preocupação, o interesse e a solidariedade deste morador do Bloco T, da SQS 406. Leiam o que este vigilante da L-2 propôs numa assembléia de seu condomínio.
Diz o precavido senhor: “Solicito, que o condomínio não plante novas árvores de grande porte em frente ao prédio, uma vez que as árvores hoje existentes, pelo tamanho que atingiram, prejudicam a visibilidade de minha unidade residencial. Numa oportunidade, escutei barulho de acidente ocorrido na L2 Sul, mas como não tinha visão da avenida, não pude acionar a emergência por não conseguir avaliar a gravidade do acidente. Na ocasião, tomei conhecimento, posteriormente, de que houve vítima gravemente ferida e que se o socorro tivesse sido acionado, a vida da vítima poderia ter sido salva. Entretanto, como as árvores me impediram de enxergar a L2, fiquei impedido de ajudar”.
Eis ai um conselho à Zoobotânica: cortar todas as árvores em frente aos prédios da L2 Sul para que os condôminos possam acompanhar a evolução dos acidentes de trânsito, avaliar a gravidade das vítimas e acionar o socorro imediato.
Como faz falta uma boa escola primária!

terça-feira, 16 de março de 2010

VIOLÊNCIA, GÊNERO E NÚMERO


O livro FEMINISMO EM MOVIMENTO (Editora Paulo Francis, Brasília, 2010) de Lia Z. Machado, doutora em Sociologia, induz o leitor a pensar, não apenas a se informar ou a se enriquecer com as descobertas da pesquisadora. O estudo comprova que a violência, em todas as suas manifestações, perturba amargamente o pensamento social. Os mecanismos institucionais em vigor e seu aperfeiçoamento atestam a intensidade, a frequência e a gravidade dos atos de violência.
São quatro capítulos densos de investigação, informação, análise e abertura de pistas para compreender a ação humana violenta que permeia as diferentes idades, os diferentes meios da convivência social para culminar no gênero das violências, eles e elas. Quem bate mais, onde se bate mais, quando se bate mais e por que se bate?
É nesse emaranhado de questões que Lia Machado, com argúcia e firmeza conduz o leitor a refletir sobre o fato violento, a agressão física, a demonstração teatral de força e de poder, especialmente contra a mulher. A violência é uma dessas palavras abstratas que tomam corpo físico de monstro, se personalizam e saem à rua fazendo vítimas com balas perdidas. Fulano morreu vítima da violência. Ou na economia jornalística: mais uma vítima da violência. No dia a dia, ela aparece no esporte, no trânsito, nas ruas, nas prisões ou contra a natureza, contra a mulher, contra a criança. Está escondida na fome e nas desigualdades que podem conduzir à revolução social e política com sequelas em torturas, exílio ou fuzilamento.
Creio que não seria demais agregar a violência degradante e ocultada de nossas cadeias, que só ganha a luz do dia se toca prisioneiros privilegiados. Será possível, no esperançoso caminho da paz e da compreensão entre humanos, controlar e domesticar as diversificadas causas da violência? A pergunta parece gritar ao longo dos debates sugeridos por Lia.
A vida é marcada por inúmeras frações de violência. Do nascimento à morte há rompimentos, sangue e lágrimas que a cultura os sublima e os incorpora nos comportamentos do cotidiano.
Atrevo-me, seguindo pistas abertas pela autora, a perguntar: por que a violência? Será preferível a violência positiva à violência negativa? Nem preferíveis ambas, nem aceitáveis. São discussões delicadas que mostram a complexidade da alma humana e a infinidade de reações do ser humano diante das variadas circunstâncias da convivência onde se mesclam necessidades, interesses, ambições, força e poder. Inconscientemente, faz-se o elogio da violência. Longas e minuciosas reportagens acompanham ou refazem cenas de crimes diários, agressões dentro e fora da família, chacinas de hoje e de ontem. As lutas corporais nos ringues, os filmes de guerra onde se mostra a carnificina ao lado do heroísmo, o comércio de armas letais. O fascínio pelos exércitos, o aperfeiçoamento das máquinas para aterrorizar e matar em terra, no ar e no mar. As milícias privadas, os esquadrões da morte, a segurança pública, o policiamento ostensivo, um conjunto de estratagemas para proteger pessoas de pessoas e guardar bens e riquezas individuais e públicas,
Na luta pela vida, o ser humano busca instintivamente a sobrevivência primária com a satisfação da necessidade básica. Expande-se para outras necessidades, mas ela permeia todos os passos da vida. Para sobreviver, inventou artefatos de caça e pesca que levaram a armas cada vez mais apropriadas com o avançar do tempo. A sobrevivência pessoal, a salvaguarda da identidade no meio de outras identidades, desperta a criatividade individual em busca da aceitação pública de sua autonomia. A sobrevivência social requer o pertencimento a um grupo de acolhimento e defesa, a fuga do isolamento, o medo à exclusão, a recusa à dominação de outros. Do enfrentamento das coisas, da imposição do eu pessoal à agregação a um coletivo, os caminhos se cruzam e os sinais de trânsito na sociedade, por mais visíveis, nem sempre são suficientes para evitar os choques, os acidentes graves e fatais.
Como se entrelaçam esses aspectos da sobrevivência primária, pessoal e social para garantir os direitos humanos das crianças, dos jovens, dos idosos, dos homens, das mulheres nos múltiplos espaços e circunstâncias da sociedade? O indivíduo, o desejo de decidir sobre si mesmo, o imprevisível outro, a sociedade anônima e invisível, as leis do Estado estão todos no campo de jogo sem limite de duração.
Ao longo da leitura e das reflexões que a obra me inspirava, fazia-me perguntas: que há com a mulher? Que há de errado com o homem? Em que ponto da evolução está o cérebro humano? Há momentos em que os comportamentos indicam que o homem é um animal que não deu certo. Que descobertas primitivas concorreram para montar seu complexo de inferioridade contra o qual parece debater-se sem esmorecimento? Os dinossauros, as estrondosas tempestades, os terremotos? É preciso pôr, na ordem do dia, a exaltação da superioridade do homem?
O que levou as mulheres a se declararem em luta na defesa de seus direitos? E, aqui, mais uma vez, detive-me a perguntar sobre a luta feminista. O termo “luta feminista” ainda guarda a lembrança de uma guerra inacabada na sociedade em que o homem é o lobo do homem. O termo é repetido com mais frequência do que o desejado, mas a luta continua. Estamos em guerra. Que tipo de guerra é esta para que as mulheres entrem na luta? Contra quem, especificamente? Com que armas? E com quem será o armistício? E depois da trégua? Kathryn Bigelow foi acolhida no grêmio dos homens e ganhou o Oscar 2010, aventurando-se no território masculino com a história Guerra ao terror. As mulheres também entendem de guerra no entender dos homens.
Mas, talvez esteja no último capítulo a questão mais delicada que toca a mulher como receptáculo da vida e a difícil decisão individual de interromper uma gestação. Mulher, mãe, aborto. Um capítulo emocionante no qual o aborto é discutido com elegância, inteligência e coragem. Equipara-se, embora mais exaustivo, aos comentários de Carl Sagan consolidados por Ann Druyan, sua mulher, no livro Bilhões e bilhões.
Deixo a Lia as palavras finais da esperança: “As movimentações feministas continuam seu processo constante de reconstrução dos valores sociais, onde só terão lugar as maternidades desejadas...”
Há autores, como Lia Machado, que devem ser agradecidos por brindar obras cuja leitura se torna tão necessária quanto agradável.


Eugênio Giovenardi, escritor
Autor de Os filhos do Cardeal - o homem proibido -, Em nome do sangue, As pedras de Roma, Heliodora, Solitários no paraíso, O retorno das águas, A saga de um Sítio, entre outros.

terça-feira, 9 de março de 2010

BIBLIOTECA DO ENGENHO DAS LAJES

Ao completar 70 anos, convidei amigos para festejar essa data comigo, em um sítio que temos no Distrito Federal, próximo à Agrovila Engenho das Lajes, à margem da Rodovia BR 060, Km 30.
Em lugar dos presentes costumeiros, sempre difíceis de escolher, minha mulher e eu decidimos pedir livros aos convidados para iniciar uma biblioteca nessa Agrovila. Os amigos trouxeram 350 obras e uma estante metálica.
Livros e estante são o básico para uma biblioteca. Mas para funcionar precisa de elementos imprescindíveis: leitores e bibliotecário.
Num país carregado de analfabetismo crônico, de escolas públicas jogadas a segundo plano, os administradores se preocupam com a água, o esgoto e a luz, além das vias empoeiradas e enlameadas. A Agrovila Engenho das Lajes, a 50 quilômetros do centro da capital da República, é o retrato do abandono. A biblioteca, último item de prioridade administrativa.
Quatro anos foram despendidos a convencer administradores, professores da Escola Classe, com 420 alunos, a Associação de moradores sobre a importância da biblioteca.
Como é comum em vilarejos pobres, dominados por líderes espertos e políticos astutos, o povo está acostumado a pedir e a receber migalhas aos ricos de fora. A biblioteca do Engenho das Lajes também recebeu ajuda exterior, vinda do programa Casa do Saber, mantido por uma rede de postos de gasolina BR.
Há, no Brasil, algumas centenas de bibliotecas fechadas, não por falta de leitores, mas de alguém que lhes abra as portas. A biblioteca comunitária do Engenho das Lajes é uma das que têm suas portas abertas durante os cinco dias da semana com uma frequência admirável de crianças, adolescentes e adultos. Um acervo de mais de 3 mil livros.
As portas se abrem graças a voluntários que se cotizam todos os meses para garantir a abertura da biblioteca, procedida por um morador da Agrovila. Os leitores não só leem. Escrevem também e desenham. Cadernos, lápises e canetas estão disponíveis aos leitores e futuros escritores.
Enquanto o administrador do Engenho das Lajes se ocupa da água e do esgoto e a polícia garante a segurança das ruas, a biblioteca cuida da mente das pessoas e acende luzes nas avenidas do espírito.
Quando um Estado cuida do povo e um povo preza a educação, a leitura, o conhecimento e a sabedoria pode-se confiar no presente e no futuro da nação.

domingo, 7 de março de 2010

MASMORRA

Antes de mais nada, vamos ao termo. Entre os mouros, mazmorra era um celeiro subterrâneo. Poderia servir de cárcere para criminosos condenados à morte. Daí mata-morra ou masmorra.
O jurista Nélio Machado, advogado do prisioneiro Arruda, na peroração de defesa, afirmou que seu constituinte foi lançado numa masmorra. Para quem não acompanhou o caso da Caixa de Pandora, na cidade de Brasília, nem viu o filme Me dá um dinheiro aí, o Senhor Arruda é governador convalescente do Distrito Federal e, ao mesmo tempo, paciente da Justiça. Vitimado pelo câncer da corrupção, seu estado de saúde política é grave, fato que determinou seu internamento imediato numa UTI policial que o advogado denominou masmorra, calabouço, ergástulo. Local que lembra fedor, escuridão, teto baixo e água até o joelho.
O Brasil é uma potência emergente, tirada do nada pelo novo paradigma do crescimento econômico. Há 8 anos, o país não existia, era o caos, recém-devastado pelo dilúvio. Nunca se fez tanto “nesse país” nem se disse tanta imbecilidade.
Tudo, agora, é diferente, inclusive as masmorras. Aquelas cadeias superlotadas de pacientes – 470 mil ocupando 270 mil leitos − são coisas do passado. Transformaram-se em masmorras modernas. Um novo paradigma de prisões está em curso.
Nossas masmorras, modelo para países do Primeiro Mundo, têm ar condicionado requerido pelo país tropical, mesa de leitura, pois não há mais presos analfabetos, frigobar para gelar a água e a cerveja, refeições à la carte trazidas de fora, beliche para o ou a acompanhante e, finalmente, basculante 30X30 para olhar estrelas.
Os sobreviventes da implosão do Carandiru e os pacientes da Papuda se inscreveram no concurso para as vagas nas novas masmorras do Distrito Federal.
Vivemos num país maravilhoso onde até as masmorras são disputadas pelos pacientes da Justiça.

A GUERRA E O ESPORTE

Guardo as fontes de informação. Só as darei em caso extremo. Coloque-se no tempo, três ou quatro séculos antes de nossa era. Exércitos de homens fortes, seminus no verão ou cobertos de peles no inverno, marcham pelas montanhas da Macedônia ou acampam nas planícies do Eufrates. Homens brutos, musculosos, treinados para esticar arcos, lançar dardos, disparar catapultas.
Um homem ambicioso, de olhar decidido, rodeado de serviçais submissos, comanda pelotões de jovens sedentos de luta corporal. Atracam-se a homens corajosos, fortes, corpos sarados, suados, braços de serpente, punhos de rocha. Os prisioneiros homiziados reconhecem a derrota e os vencedores festejam a masculinidade. As mulheres e as crianças de ambos os lados não verão mais esses homens fortes caídos na batalha, o peito transpassado, a cabeça rolando no chão.
Lisístrata (411 a.C.), negou-se a servir o esposo guerreiro, enquanto não desistisse de correr atrás de homens a pretexto de guerra. Perguntou-lhe:
− Como fazeis essas coisas, meu marido, de forma tão estúpida?
Humilhado ao ouvir a doce voz da esposa a fazer-lhe uma reprimenda, retrucou:
− Mulher, guerra é coisa de homens.
Não há na história das guerras uma só que tenha sido declarada por mulheres. Onde estava a mulher de Napoleão, Stalin, Hitler, Mussolini ou Bush?
O período de caça terminou há 10 mil anos. Acabaram-se os animais ferozes e logo foram substituídos por homens feras. Que desejo compulsivo é esse de homens caçarem homens? De homens prepararem-se durante anos para matar homens? Que há de errado com os homens que recrutam homens para a guerra? Distinguem-se esses homens pelo valor, pela virtude ou pelo uniforme?
Em outro cenário, nas arenas olímpicas, também brilhavam, cobertos de óleos e perfumados de sândalo, corpos atléticos, músculos ressaltados, agarrados uns nos outros, enlaçados na areia, extravasando a força masculina. Reminiscência evoluída dessas exibições do corpo macho está nos ringues e nos campos de futebol. Homens contra homens encontram o orgasmo esportivo quando a esfera de couro penetra a fenda procurada e culmina em abraços e beijos apaixonados, rolando sobre o gramado do campo.
Como será a civilização humana quando as mulheres decidirem comandar legiões femininas contra as guerras dos homens. Lembrem-se que, até pouco tempo, a cozinha e os bancos da igreja eram reservados às mulheres. O altar é ainda privilégio dos homens que se arrogam o direito de falar com Deus por ser masculino.
Aristófanes, ao final de sua comédia, podia ter dito:
− Há homens de mais e decisões inteligentes de menos.

sexta-feira, 5 de março de 2010

O OVO DA SERPENTE

Deveras, com a Caixa de Pandora e o tríplice mensalão que conspurcou a esquerda desvirtuada e a direita desvairada, experimenta-se a sensação de que a banalidade tomou conta das ruas e se alastra pelos comportamentos humanos.
Tratam-se os engarrafamentos do trânsito cotidiano, os cuidadores de carro, os pacientes da fila dos hospitais ou vendedores de crack com a mesma displicência. A banalidade do mal é ainda mais flagrante. Mesmo com algumas decisões esporádicas da justiça, a audácia a que chegou a corrupção em atos públicos e privados demonstra, por um lado, a arrogância do poder e, por outro, a sofreguidão de tirar vantagem pessoal.
O impróprio, o condenável, a desfaçatez, os males minúsculos e maiúsculos se banalizaram. Estamos todos chocando os ovos que a serpente, sorrateira e solerte, acomodou em nossos ninhos.
A escolha está entre chocar os ovos ou capturar a serpente.
Segundo o filósofo Pedro de Montemor, há, pelo menos, duas pedras enormes sob as quais dorme a serpente: a do poder insensato que se compraz em estar acima das leis e a do dinheiro que arrebata com escárnio a frágil vontade das pessoas para chegar ao poder.
A serpente se enrosca escondendo o rabo e a cabeça.

JIPÕES

Pelas ruas de Brasília circulam mais e mais carros grandes, imponentes, impressionantes. Várias marcas, todas elas procedentes dos tigres asiáticos, embora esses monstros sejam montados aqui.
Essa invasão de mega carros tem, a meu ver, duplo propósito. Estimular a indústria de automóveis e diferenciar a classe de compradores. Recorde-se que uma das medidas governamentais para mascarar a recente crise do capitalismo foi a desova de bilhões de reais para s montadoras, amparadas por financiamentos bancários. Em Brasília, graças aos incentivos ao consumo, são matriculados por dia mais de 100 automóveis novos.
O sonho de milhares de brasileiros se realizou. O automóvel se vulgarizou. Secretárias de departamentos, garis, cabeleireiros e outras profissões que até pouco tempo eram usuários de ônibus, hoje, possuem carros e estão felizes. As ruas se encheram de automóveis. Os engarrafamentos fazem parte indispensável da rotina. Disputa-se vaga escassa nos estacionamentos.
A classe média foi nivelada por baixo, pela banalidade de ter carro barato, acessível, 80 meses pendurada no carnê das prestações. Esse fato não agradou aos que se sentiam privilegiados por ter comprado carros sem a ajuda do governo. Como sair dessa mediocridade do carro barato? Como aparecer em destaque no desfile dos automóveis?
O jipão. Eis a solução. Jipão de marcas e nomes raros. Quatro portas. Tração nas quatro rodas. Para-choque ereto apto a demolir um Fiat-uno atrevido. Vidros escuros impedem a identificação do condutor. Ocupa 8,4m2 de espaço físico e 16 m3 de domínio aéreo.
O poder do rei, ainda hoje, se mede pelo tamanho do palácio, número de conselheiros e pajens, desfile de princesas e uniformes da guarda real.
O jipão substitui tudo isso. É um trono real ambulante. Do alto do volante domina o trânsito, impõe sua arrogância, distingue-se da patuleia que se satisfaz com latarias primitivas.
A desigualdade é, aparentemente, um ingrediente necessário para edificar uma civilização. Será também, no curso do tempo, um vírus para destruí-la.

quarta-feira, 3 de março de 2010

ARAPUCAS SOLERTES

São grandes os perigos desta vida, cantou Vinicius. Estamos cercados de inocentes arapucas. De repente, plaft, caímos nelas.
Ultimamente, Pedro de Montemor, ajudado pela argúcia da polícia federal, descobriu alguns tipos de ratoeiras no caminho de altos funcionários dos três poderes da república e de todos os níveis administrativos, da Presidência do país ao prefeito municipal.
Por precaução e intuição, Pedro de Montemor, há tempos, não usa algumas peças do vestuário. Deixou de vestir meias há mais de 10 anos. Só as enfia em extremo caso de necessidade, esquiando no gelo escandinavo, onde ninguém o aborda para pedir um cigarro.
Magali, sua amiga de muito tempo, carnavalesca e líder de eventos culturais, não leva mais bolsa a tiracolo. Teve dois péssimos momentos. Um pivete lhe arrancou das mãos a que recebera de presente no aniversário de 20 anos. E, no aeroporto de Miami, encontraram 5 pedras de crack que o vizinho da poltrona 5B, no voo da Delta Airlines, havia posto em sua bolsa para dividir o estoque.
Ranulfo, um engenheiro obeso, vangloriava-se a Pedro de Montemor de nunca ter usado cueca, traste incômodo para os momentos de necessidades urgentes.
Um político sovina, de quem Pedro de Montemor foi eleitor, mandara confeccionar suas roupas de campanha eleitoral sem bolsos. Nem entrava, nem saía dinheiro. Não se comprometia com bilhetes, pedidos de emprego ou cartas de reivindicação dos eleitores.
Pedro de Montemor concluiu que a corrupção faria menos vítimas fatais no trânsito político e administrativo, abolindo-se por Medida Provisória o uso de meias, bolsas de qualquer tamanho, os múltiplos modelos de cuecas e a infinidade de bolsos sempre prontos a receber propinas.
Descobertas, finalmente, graças à sagacidade de Pedro de Montemor, as causas sutis da corrupção brasileira comprometida com o crescimento do PIB, rumo à terceira potência econômica mundial.

Nota: Meus livros (romances) A saga de um Sítio, O Homem proibido, Em nome do sangue e As pedras de Roma, estão disponíveis a preços módicos no eugeniogiovenardi@gmail.com e a tradução do Homem Proibido em inglês – The forbidden Man − para download livre.

BANALIZOU-SE O ESSENCIAL

Diante de acontecimentos abundantes que estremecem as instituições burocráticas, sacodem o planeta, inundam cidades, Pedro de Montemor desligou a TV.
− Está tudo banalizado, disse, meneando a cabeça.
Nas aulas de História e Geografia, nosso professor, que sabia o nome das capitais de todos os países existentes na década de 1940 e o de todos os rios da Europa Ocidental até a Sibéria, deu-nos detalhes do terremoto que destruiu Lisboa em 1755, seguido de maremoto. Terremoto era coisa rara em nossa infância. Sabia-se anos depois de acontecido.
Segundo a crença do professor, um religioso austero e de faces macilentas, terremotos, maremotos e dilúvios eram castigos infligidos pela justiça divina contra os pecados da carne. Era um argumento forte.
Quando era menino, as pessoas morriam solenemente. O sino na igreja dobrava a finados, diferenciando criança de adulto. Lembro-me do enterro de Guido. Era criança. Oito anos. Durante muitos dias pronunciava-se a mesma palavra. Tétano. O vilarejo todo seguia o caixão branco puxando a procissão até o cemitério.
Um dia, meu pai chegou na hora do almoço. Sentou à mesa e, com voz abafada, olhando para mamãe, informou:
− Francesco da Rosália está nas vascas da morte.
Meu pai tinha bom vocabulário. Curioso, por volta das 4 horas da tarde, fui até a casa de dona Rosália, que fazia delicioso pão de milho, para saber o que era vascas da morte. O velho Francesco, oitenta anos, deitado na cama do casal, rodeado por seus 11 filhos, altos e fortes, acariciado pela mão de Rosália, respirava mal. De repente, era sacudido por estertores. Os filhos se agarravam ao pai, levantavam-lhe a cabeça e o acalmavam com palavras encorajadoras: não morra papai, não morra. Até que, num desses espasmos, Francesco morreu nos braços dos filhos.
− Não se morre mais como antigamente, comentei a Pedro de Montemor.
A banalização tomou conta do mundo e de nossa vida. Passa-se de um terremoto a outro sem pausa para os enterros. Quem viu os 300 mil mortos do Haiti? Quem assistiu à morte de 750 mil chilenos do último sismo? Antes da tsunami, que devastou a Indonésia, pouco se falava dela. Hoje, andam soltas e descontroladas.
Houve tempos em que um acidente de carro com morte era motivo de conversa por vários meses. Atualmente, nos fins de semana prolongados, só aparece a famigerada estatística com o percentual de aumento de mortes.
O Dr. Ernesto Silva, pioneiro de Brasília, teve morte longa. Morreu durante 5 meses na UTI, essa invenção fantástica que esconde o paciente da morte.
Ficou tudo tão banal que terremoto se confunde com corrupção, tsunamis com bombardeios no Afeganistão, orçamento público com propina, acidentes de carro com inundações de cidades ou com seca do Nordeste. Tudo entra no saco da informação. Com a velocidade das comunicações, ao vivo e em cores, a TV põe tudo sobre a mesa do autosserviço.
O acontecimento é importante na medida em que é mantido na telinha. Um dá lugar ao outro. Seja lá o que for. Os tiroteios nos morros do Rio ou o escárnio do Big Brother do filósofo e jornalista Bial.
Pedro de Montemor, sentindo saudade de si mesmo, sentou-se à sombra da paineira e recomeçou a leitura do Memorial de Aires. Lembranças, não mais que lembranças de amores e mortos que se foram.

Nota: Meus livros (romances) A saga de um Sítio, O Homem proibido, Em nome do sangue e As pedras de Roma, estão disponíveis a preços módicos no eugeniogiovenardi@gmail.com e a tradução do Homem Proibido em inglês – The forbidden Man − para download livre.

segunda-feira, 1 de março de 2010

The Forbidden Man

O livro O Homem Proibido, de Eugênio Giovenardi, está diponível em inglês com o título The Forbidden Man.

Clique aqui para acessá-lo.

Toda citação do livro deve mencionar o autor.

RODOVIA BR 060

A duplicação da rodovia BR 060 que une Goiânia a Brasília foi prevista nos anos 1970 e iniciada em meados da década de 1990. Levou 15 anos em construção. Interromperam-se as obras 4 vezes. As empreiteiras gastaram quatro orçamentos. Em outras palavras, assaltaram o erário 4 vezes sem que os vigias do caixa reagissem. Seguiram as recomendações dos órgãos de segurança de não enfrentar os assaltantes.
Inventaram-se viadutos desnecessários nos 30 quilômetros do perímetro do Distrito Federal. As pistas duplicadas, no trecho entre a divisa do DF e o quilômetro zero dessa rodovia, estão em uso há pouco mais de dois anos.
A qualidade do material, a amálgama asfáltica produzida, o aterramento e a compactação não foram suficientemente testadas pelos órgãos fiscalizadores. Nessa extensão de 30 quilômetros, há falhas graves nas pistas. São raros os trechos de quinhentos metros em que a capa de asfalto não esteja descolada. A operação tapa-buracos começou seis meses apenas depois da conclusão das obras.
Nas placas informativas à beira da rodovia se diz: ESTA É UMA OBRA DO GOVERNO FEDERAL (PAC) EM PARCERIA COM O GDF – UM GOVERNO DE TODOS.
Quem todos, cara pálida?

A TERRA É AZUL

De longe, olha-se para os picos nevados da Cordilheira dos Andes. Uma fila de agulhas alvas iluminadas pelo sol da manhã. O encanto desses vales atrai populações. Terras férteis, águas cristalinas. Dorme-se e desperta-se entre contrastes e surpresas. De repente, um estrondo, um tremor intenso, fumaça e lama. Em duas horas, a cidade colombiana de Armero, aos pés do Nevado Ruiz, 25 mil habitantes, desaparece soterrada. Uma paisagem desértica cobriu ruas, casas, hospitais, igrejas e todos os seus moradores.
Em Porto Príncipe, Haiti, onde o número de pobres é incontável, milhares de mortos anônimos vão para as valas. O Chile, algumas centenas de mortos, foi sacudido pelo choque de placas sob as águas do Pacífico. Tsunamis daqui e dali avisam que habitamos um planeta ainda inacabado. A casa está incompleta e desarrumada, apesar da beleza, das cores, dos perfumes e das brisas amenas. O planeta ainda não nos deu o habite-se definitivo. O piso não está firme. Há fogo debaixo do chão. Os ventos sopram com fúria. As nuvens descarregam seu peso de água onde bem lhes agrade.
O planeta Terra, tão belo e azul, visto de longe, trata com maus modos seus moradores. E sem aviso prévio despeja seus inquilinos, não lhes dando possibilidade de acordos, nem fiança. Inquilinos, fiadores, testemunhas e notários, todos para o olho da rua. No Chile, não obstante a severa catástrofe em mortes humanas, seus habitantes se prepararam para o pior, pois há o risco imprevisível de ser surpreendidos por movimentos súbitos de placas misteriosas.
No Brasil, graças a sua posição geográfica, não se necessitam terremotos para derrubar viadutos, demolir pontes e destruir rodovias. É bastante termos aqui um período de chuvas, desde sempre conhecido, para inundar cidades, desabrigar seus moradores, afogar incautos, desmontar prédios. Não precisamos de terremotos para chorar os mortos. São-nos suficientes as chuvas de verão, ansiosamente esperadas. Aqui, a prevenção de acidentes provocados por fenômenos naturais é uma vaga intenção.
Não bastasse isso, prédios ruem por decisão própria. Uma porta eletrônica dispara e degola um menino de sete anos. Um elevador pula de 10 metros de altura, no Ministério dos Esportes. A caçamba de um caminhão se desprende e esmaga o mecânico. Há uma rebelião das leis físicas em curso. A harmonia da natureza dá sinais de perigo.
O planeta Terra é, visto de longe, belo e azul. De perto, mostra cara feia, garras musculares, mandíbulas abertas. A força bruta, as ondas gigantes, o vento descontrolado e o fogo aceso dos vulcões são virtudes cardeais do planeta. De longe, a beleza fascina. De perto, as rugas decepcionam. A cara do planeta é esta, bela, azul e enrugada.
É com ele que, em alta velocidade, vamos girando no espaço onde, a qualquer momento, surpresas podem nos acordar no meio da madrugada que se anunciava luminosa.

LULA E GREVE DE FOME

O presidente Lula fala sem pensar e não tem tempo para pensar sobre o que fala. Seu grupo de assessores sorri e balança a cabeça em sinal de afirmação. Eles estão ali para justificar o que o chefe diz, não para pensar o que vai dizer.
Lula julga-se irrepreensível, acima de qualquer crítica e se oferece como exemplo a ser seguido. “Gostaria, sabe, que todos os governantes fossem como eu”. A quem se referia? A Obama, Sarkozi, Fidel Castro, Hugo Chavez?
Menosprezou a greve de fome que matou o preso político Orlando Zapata, argumentando que ele próprio se submetera a esse sacrifício, em outros tempos. “Lamento profundamente que uma pessoa se deixe morrer por uma greve de fome”. Preferiria talvez que se enforcasse como Herzog? Ou fosse condenado ao fuzilamento?
Não! Lula desistiu da greve de fome por não aguentar a fome e por principio de sobrevivência pessoal. Teve coragem de desistir da greve de fome e, portanto, é um herói, exemplo de brio e valor a todos os condenados. Os oprimidos, os presos políticos de qualquer regime deveriam agir como Lula. Não importam os anos de cárcere, nem as razões políticas e ideológicas ou o isolamento desumano a que milhares de presos são submetidos.
A propósito, não achei registros de que o presidente Lula, nesses 7 anos e dois meses de governo, tenha se pronunciado, em discursos oficiais, sobre as permanentes torturas nas prisões brasileiras, não obstante os relatórios da Anistia Internacional.
Lula não sabe que se tortura em nossas prisões.