terça-feira, 30 de setembro de 2008

ASTÚCIA TÁTICA

A população brasileira de direita e de esquerda, em sua maioria, segundo as sondagens de opinião, comenta-me Pedro de Montemor, deixou de pensar.
− O sonho da ascensão social, que antes era a casa própria adquirida com poupança, hoje se traduz por comprar carro zero quilometro, ir a um restaurante uma vez por mês e fazer uma operação plástica para extinguir os anos feios da pobreza.
A ênfase é dada à arrecadação de impostos, ao emprego com carteira assinada e ao percentual de aumento da renda dos mais pobres e, consequentemente, ao consumo crescente de novidades. Esses fatos, em si, são corriqueiros de qualquer economia com um mínimo de expansão. O endeusamento deles, através de números e percentuais estatísticos, não decodificáveis pela maioria que diz sim a qualquer benefício, dopa e anestesia o espírito crítico. Esses números se repetem a torto e a direito. Sair do nada e chegar ao pouco adquirido é, sem dúvida, um avanço. Fazer desse avanço um ideal alcançado é um crime de lesa inteligência.
− Os políticos − sugeri a Montemor − apequenam o povo, minimizam suas expectativas, reduzem seus desejos e ideais ao consumo de bens, borram-lhe o futuro e o acomodam no presente imediato.
O governo usa uma tática maquiavélica e astuta. Anuncia programas futuros como fatos realizados no presente. O simples anúncio, da forma como é declarado, produz a sensação de uma obra concluída. No discurso oficial, o “problema” da pobreza, o “problema” da desigualdade e o “problema” da educação se resolverão com os lucros bilionários da jazida de petróleo do pré-sal.
− Enquanto a educação for tratada como problema, disse Montemor, as soluções estarão muito distantes.
Para abafar todos os crimes diariamente revelados, roubos, desvios de dinheiro público, sonegação, chacinas nos morros do Rio de Janeiro, tortura nas prisões, ineficiência da administração de obras em todos os ministérios no tocante à educação, saúde, infra-estrutura, é suficiente propor o uso generoso do futuro lucro a originar-se da província petrolífera a sete mil metros de profundidade. E para dar mais credibilidade ao plano anunciado, revela-se que foram encomendadas sete sondas ao valor de R$ 700 milhões cada uma.
Para que não paire dúvida, simula-se uma invasão estrangeira, com explosões e soldadinhos a pé, nas belas e pacíficas praias do Rio de Janeiro. E, por cúmulo do ridículo, ouve-se um coronel a explicar ao jornalista que um país com poder econômico deve preparar-se para defender a pátria de futuros invasores de nossa economia.
Os combustíveis alternativos que, em algum momento, pareciam suprir o mercado internacional, sumiram dos discursos oficiais com a mesma velocidade do anúncio da descoberta do óleo fóssil. Deus fez o petróleo.
Sobre os gases-estufa, nenhuma palavra oficial. A queima, nos próximos anos, de bilhões de barris de petróleo tem a legítima finalidade de resolver os “problemas” da pobreza, da desigualdade e da educação. Além, bem entendido, de equacionar o “problema” eleitoral e a manutenção do poder.
Teremos, daqui a vinte anos, um povo rico, com índices de igualdade invejável e de educação superior, intoxicado por dióxido de carbono, preso no tráfico engarrafado das largas avenidas, inundado por enchentes incontroláveis ou ressequido nos desertos que conseguimos fazer.

24.09.08

FATOS ISOLADOS

A vida cotidiana da sociedade brasileira está cercada de fatos isolados. É corrente a previsão de meteorologistas: pancadas isoladas no final do dia. Uma delas inundou Brasília de norte a sul.
Na semana, tudo ia bem quando ocorreram fatos isolados nos morros do Rio de Janeiro. O enfrentamento de duas gangues provocou a ira da polícia especializada. Helicópteros, tanques blindados, dezenas de carros militares, tiroteios nas ruas, balas perdidas, civis mortos na calçada, todos traficantes, com exceção da criança assassinada.
− Trata-se de caso isolado, explicou o comandante. Disputa de marginais para garantir o controle da venda de drogas.
Como todos sabem, a droga é um fato isolado, no Brasil inteiro.
Crianças e adolescentes, acompanhados de adultos, homens e mulheres, ocupam espaços públicos onde vivem, comem, dormem e se reproduzem. Fatos corriqueiros, num país com superpopulação, com milhões de desempregados e mais de 900 mil crianças fora da escola. Todo mundo vê e pouquíssimos notam. De repente, torna-se um fato isolado quando, no coração rodoviário de Brasília, alugam-se meninos e meninas para satisfazer a curiosidade sexual, a morbidez, o prazer barato. Não se encontrou conexão direta da guerra entre gangues dos morros do Rio de Janeiro e as forças da ordem, as drogas consumidas por crianças na rodoviária, o ecstase vendido nas portas das escolas e a pedofilia praticada por empresários, taxistas e gente bem.
O roubo ao erário público, os crimes administrativos que desviam o dinheiro dos serviços de educação, saúde e transporte, cometidos por altos funcionários do governo, senadores e deputados, banqueiros, juízes e policiais são todos casos isolados que se extinguem com declarações oficiais, inquéritos rigorosos, promessas de condenação dos culpados, mentiras, desmentidos, anúncios de descoberta de poços de petróleo.
As chacinas periódicas no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Pernambuco, a morte de 262 bebês no Hospital Público de Belém, as 40 mil mortes anuais no trânsito são casos isolados de violência? Alguns fatos isolados têm nome: Anaconda, Passárgada, Sanguessugas, João de Barro, Cartão Corporativo, Banestado.
Isolar todos esses e centenas de outros acontecimentos trágicos e criminosos que a imprensa registra diariamente é mais cômodo do que examiná-los num mosaico de linhas entrelaçadas que se unem, se animam e se reproduzem.
Falta ao Estado, a seus administradores e políticos a capacidade de montar esse mosaico, compreender as linhas que unem os diversos movimentos do desenho e segui-las para que mantenham a harmonia da forma e dos significados. Nenhum detalhe do mosaico é um desenho isolado.
Mas em nosso país tudo é monumental. O território é continental, a população é grande demais, o consumo é gigantesco, as ruas de nossas cidades estão forradas de carros particulares, nascem anualmente milhões de bebês, os roubos são milionários quando não bilionários.
Esse gigantismo nacional nos torna pigmeus e passamos a ver tudo do tamanho de nossa estatura. Diante da monumentalidade geral, a mediocridade política reduz o incontrolável a simples fatos isolados.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O PODER DA PERIFERIA

Brasília é uma cidade plantada numa vasta região do Planalto Central. Seriam essas terras do Centro-Oeste ocupadas independentemente da urbe? Os novos habitantes mirariam a cidade de longe, esperando um oráculo político sobre as sérias decisões econômicas da Marcha para o Oeste? Tornar-se-ia uma cidade-arte, sagrada e perdida, no meio do Cerrado sem vínculos culturais com a região?
Ou, ao contrário, a região do oeste goiano, expandindo-se como nova fronteira agrícola, agroindustrial, extrativa – minerais e madeiras − moldaria e inundaria a cidade de Brasília, transformando-a numa metrópole necessária à sustentação dos novos empreendimentos? Geraria e imporia, segundo suas conveniências, decisões políticas aos administradores manietados pelas forças externas?
Em resumo, a cidade definiria os destinos da região ou a região decidiria a existência, a forma e a função da cidade-capital?
Brasília, trazendo para seu bojo o poder político das decisões econômicas e todo o aparato legislativo, judicial e de defesa nacional, poderia sobreviver no isolamento de cidade-capital, operando apenas como sinalizadora do desenvolvimento regional, sem imantar às suas paredes uma população ávida de escapar à pobreza e participar das regalias da corte?
Um sonho urbanístico, equipado com penduricalhos imprescindíveis da máquina administrativa, voltado apenas para o repouso do poder silencioso, restrito aos ofícios próprios de cabeça da Nação, poderia subsistir como cidade-parque num país de população pobre e desempregada, malformada e analfabeta? O sonho não estaria sob a ameaça de um pesadelo?
Essas perguntas me transportam à periferia do Plano Piloto e aos transbordamentos populacionais que circundam o Distrito Federal, em terras de Goiás. Uma população que se reproduz com maior intensidade nos agrupamentos mais pobres e, portanto, de maior pressão sobre todos os serviços urbanos.
Brasília, aos cinqüenta anos, parece ter perdido o mando sobre si e não possuir força para se proteger dos vizinhos. Seu poder de urbe foi suplantado pela pressão massiva de uma superpopulação que a invade e domina, sentada nos degraus de suas portas, exigindo, impondo, sugando sem retribuição, não por rebeldia, mas por inépcia.
Um Governador leva a administração central para fora do Plano Piloto e um Presidente compra um avião para estar em todos os lugares do mundo e pouco em Brasília. As declarações de defesa e proteção de Brasília, como Patrimônio da Humanidade, são arrotos da boca para fora.
A cidade Brasília está sendo rejeitada de dentro para fora e de fora para dentro. Interesses divergentes procuram moldá-la para atender a propósitos conflitantes na essência, embora convergentes em funções administrativas.
Mais uma vez, o superpovoamento das áreas contíguas a Brasília gera imposições e degenera o diálogo entre a pureza do urbanismo e a crueza das necessidades da população. Dois milhões e meio de habitantes, alheios ao sonho urbanístico de uma cidade-parque, sufocam as ruas do Plano Piloto. Um milhão de carros reclama diariamente a remodelação das vias. A refundação de Brasília é uma tentação que sacode os ânimos de administradores, legisladores, governantes e empresários, excitados pelo poder da periferia que manda de fora para dentro.
As decisões são concebidas lá fora, com o apoio entusiasta e devastador de poderosos aliados. Amadurecidas, codificadas e legalizadas aqui dentro, são implacavelmente executadas.
As conseqüências inevitáveis e os efeitos negativos justificam-se com argumentos da tecnologia, do crescimento, da imposição da realidade, isto é, a superpopulação exige casa, água, luz, emprego, rodovias, estacionamentos, melhores salários para consumir mais, indefinidamente.
A cidade de Brasília chegou a um impasse. As ameaças que caracterizam as metrópoles brasileiras estão às suas portas.
A declaração profética de Juscelino Kubitscheck: − Façamos o “supérfluo” agora. O necessário virá de qualquer maneira, no seu tempo − parece estar em curso.
A determinação e o dimensionamento do necessário deveria ter provocado, a seu tempo, respostas inteligentes de urbanistas, arquitetos e planejadores da economia regional.
Os fatos de hoje são os erros de ontem e podem ser os acertos do amanhã, se amanhã houver..


16.09.08

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

ESPAÇOS LIVRES

Lanço um olhar crítico sobre Brasília. Não sei se é a parte edificada que me fascina ou se as áreas ainda livres que me atraem, semidesertas, silenciosas.
Brasília sem seus monumentos, sem o traçado funcional que separa os edifícios para o desempenho do serviço público das residências e pontos de encontro, pouco se diferenciaria de Goiânia, Anápolis ou São Paulo.
Há um jogo de espaços livres que competem e disputam com as áreas ocupadas. A três mil metros da Esplanada dos Ministérios se estendem áreas preservadas de campos do cerrado, abertas, acolhedoras, cobertas de sol, batidas pelo vento, onde corujas e quero-queros armam seus ninhos no chão.
O brasiliense pode desfrutar de espaços amplos, ainda que pouco o faça, livre e solitariamente, deixando-se penetrar por um silêncio abundante, restaurador, locupletante.
Natureza e arte. Sonhos ameaçados pela mão do homem. Afrontados diariamente por um milhão de carros barulhentos e conspurcantes. Natureza e arte, ambas ignoradas por uma população amorfa que não foi alfabetizada para lê-las nem contemplar o silêncio de santidade que envolve a cidade. Podíamos escolher esse parque natural para viver e desfrutar a beleza nativa do cerrado. Preferimos a rua suja e barulhenta.
Ao invés dos espaços da liberdade, arquitetamos pequenas prisões cercadas de muros e grades.
Brasília é permanente convite à liberdade. Mas o homem livre com medo do homem livre vira refém de si próprio.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

VIOLÊNCIA I

Violência é a expressão forte de um querer. Um desejo não reprimido, uma vontade incontida. É o uso da força. É abrir caminho a cotoveladas. As raízes das árvores precisam espaço. Arrebentam o concreto das calçadas, racham muros de pedra. As vacas e ovelhas se empurram no curral, buscando lugar no cocho para comer. Os ventos fortes arrancam e derrubam o que encontram pela frente até acabar as forças emanadas das leis físicas.A vida dos homens precisa de espaço, de lugar para pôr os pés, as mãos, os pensamentos, os desejos, o amor, o sexo. O tempo de vida é curto e, nesse curto tempo, as pessoas querem compreender e desfrutar da vida. O fato de todas as pessoas terem fundamentalmente o mesmo poder e a mesma força, o enfrentamento é inevitável. Quando não é individual, será coletivo. O uso da força acontece no choro do bebê, nas manhas das crianças, na revolta dos adolescentes, na pressa da reprodução da espécie, na briga pela sobrevivência, no afã incontrolável do conforto, na ambição louca do poder.Desde o assassinato bíblico de Caim, a história dos homens é uma seqüência de barbaridades, entremeadas de obras de arte, livros magníficos, músicas sublimes, descobertas maravilhosas. Há meia-dúzia de guerras entre países. Guerras econômicas, raciais e religiosas. Guerras de poder; entre cidadãos de um mesmo país.As iniciativas de paz são, ao mesmo tempo, tão fortes quanto os movimentos incontroláveis da violência dos hominídeos.Os armistícios interrompem guerras, mas não garantem a continuidade da paz. Exércitos bem-armados provocam competição entre países ou grupos e os horrores se multiplicam. Mais armas e mais eficazes parecem brinquedos para a curiosidade da inteligência. Brincar, arriscar-se num esporte radical, lançar-se num salto mortal na esperança de sobreviver.Proibir a produção de armas contrariará interesses imediatos, mas consolidará a esperança de ver a inteligência sobrepor-se à irracionalidade.

VIOLÊNCIA II

Do cacete ao cassetete, da lança à arma de fogo, os homens têm uma tendência inata e irreprimível de brincar com a morte. A arte da guerra e a engenhosidade da aniquilação ocupam grande parte do tempo de uma sociedade. A violência se desdobra em complicadas características e permeia a difícil convivência humana.
Se a racionalidade e a inteligência da espécie humana se unissem para pensar o bem-estar, as pessoas, com a eliminação do medo profundo, decidiriam por algumas medidas.
− Interromper imediatamente a fabricação de qualquer tipo de arma que tenha por finalidade matar ou ofender pessoas. Isto leva ao desarmamento da humanidade.
− Suprimir todos os artigos constitucionais, abolir todos os poderes que permitam a declaração de guerra ou invasão de países e territórios do mundo.
− Extinguir os exércitos e mudar seus objetivos. Em vez de preparar os jovens para a guerra, educar batalhões para a paz, para o desenvolvimento de relações de convivência social.
− Transformar todas as polícias em educadores de trânsito, de coleta de lixo, de guias turísticos, bombeiros, defensores ambientais.
− Adequar todas as cadeias em campos de produção de alimentos, reflorestamento, proteção de nascentes de água, defesa das florestas e rios.
− Desestimular o levantamento de muros entre as casas vizinhas e a fixação de grades nas janelas.
− Tirar as chaves das portas das residências em sinal de confiança na educação outorgada pelos pais, governantes e escolas.
− Ter constantemente um livro na mão para ler, distribuir ou trocar. O livro será o maior e mais definitivo sinal de que existiu civilização no planeta Terra.
− Estimular o lazer esportivo e sexual, em doses gradativas, não para a reprodução da espécie, mas pelo prazer da distensão, do relaxamento orgânico e do esfacelamento de todo tipo de preconceito moral e regramento religioso.

CARROS

Começa o dia. É lusco-fusco.
Sai o primeiro carro, rodando pelas ruelas além, depois outro e mais outro, dezenas e centenas e o milésimo também.
Param nos semáforos, arrancam em disparada para todas as direções.
Ouve-se o grito da freada.
Na travessia malfadada, um pedestre tombou.
O retorno é demorado, o sinal está fechado.
O trânsito, engarrafado.
Carros frenéticos sobem viadutos, somem em linha reta, centenas vão pela direita, ou dobram pela esquerda.
Correm a cem. Correm centenas e centenas e o milésimo também.
Enchem todas as avenidas, as estreitas ruas e os largos bulevares.
As pessoas não se vêem, como se no carro não houvesse ninguém.
O sinal é amarelo, logo passa ao vermelho e eles rodam na insensatez da fúria.
Os condutores têm que chegar a qualquer lugar. Estacionar. Sentar na cadeira de trabalho, pensando já em voltar.
O carro descansa mais horas do que correu. Voltará pelo mesmo caminho que aprendeu.
Bebe água, óleo, álcool e gasolina, infla-se de ar e corre.
O carro foi multado.
A câmara atenta, no alto do poste, copiou-lhe a placa. Foi preso, guinchado, recolhido ao reformatório dos bons costumes.
O senhor Gol derrapou e se chocou contra a mureta do viaduto.
Alguém está de luto no cemitério.
O carro, levado para a emergência da oficina, recebe os primeiros socorros e os curativos.
Os vivos do acidente, depois do enterro plangente, voltam ao carro novo.
Mas o morto ao carro que o fascinou não volta mais.