terça-feira, 30 de setembro de 2008

FATOS ISOLADOS

A vida cotidiana da sociedade brasileira está cercada de fatos isolados. É corrente a previsão de meteorologistas: pancadas isoladas no final do dia. Uma delas inundou Brasília de norte a sul.
Na semana, tudo ia bem quando ocorreram fatos isolados nos morros do Rio de Janeiro. O enfrentamento de duas gangues provocou a ira da polícia especializada. Helicópteros, tanques blindados, dezenas de carros militares, tiroteios nas ruas, balas perdidas, civis mortos na calçada, todos traficantes, com exceção da criança assassinada.
− Trata-se de caso isolado, explicou o comandante. Disputa de marginais para garantir o controle da venda de drogas.
Como todos sabem, a droga é um fato isolado, no Brasil inteiro.
Crianças e adolescentes, acompanhados de adultos, homens e mulheres, ocupam espaços públicos onde vivem, comem, dormem e se reproduzem. Fatos corriqueiros, num país com superpopulação, com milhões de desempregados e mais de 900 mil crianças fora da escola. Todo mundo vê e pouquíssimos notam. De repente, torna-se um fato isolado quando, no coração rodoviário de Brasília, alugam-se meninos e meninas para satisfazer a curiosidade sexual, a morbidez, o prazer barato. Não se encontrou conexão direta da guerra entre gangues dos morros do Rio de Janeiro e as forças da ordem, as drogas consumidas por crianças na rodoviária, o ecstase vendido nas portas das escolas e a pedofilia praticada por empresários, taxistas e gente bem.
O roubo ao erário público, os crimes administrativos que desviam o dinheiro dos serviços de educação, saúde e transporte, cometidos por altos funcionários do governo, senadores e deputados, banqueiros, juízes e policiais são todos casos isolados que se extinguem com declarações oficiais, inquéritos rigorosos, promessas de condenação dos culpados, mentiras, desmentidos, anúncios de descoberta de poços de petróleo.
As chacinas periódicas no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Pernambuco, a morte de 262 bebês no Hospital Público de Belém, as 40 mil mortes anuais no trânsito são casos isolados de violência? Alguns fatos isolados têm nome: Anaconda, Passárgada, Sanguessugas, João de Barro, Cartão Corporativo, Banestado.
Isolar todos esses e centenas de outros acontecimentos trágicos e criminosos que a imprensa registra diariamente é mais cômodo do que examiná-los num mosaico de linhas entrelaçadas que se unem, se animam e se reproduzem.
Falta ao Estado, a seus administradores e políticos a capacidade de montar esse mosaico, compreender as linhas que unem os diversos movimentos do desenho e segui-las para que mantenham a harmonia da forma e dos significados. Nenhum detalhe do mosaico é um desenho isolado.
Mas em nosso país tudo é monumental. O território é continental, a população é grande demais, o consumo é gigantesco, as ruas de nossas cidades estão forradas de carros particulares, nascem anualmente milhões de bebês, os roubos são milionários quando não bilionários.
Esse gigantismo nacional nos torna pigmeus e passamos a ver tudo do tamanho de nossa estatura. Diante da monumentalidade geral, a mediocridade política reduz o incontrolável a simples fatos isolados.

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