terça-feira, 16 de dezembro de 2008

POR QUE UFANAR-SE

Por que devo ufanar-me se o Distrito Federal é bombardeado por mais de um milhão de carros? Isto é, ufanar-me por respirar, durante 24 horas, dióxido de carbono?
Sou realista e algo pessimista, tenho neurônios de Cassandra. Alguns amigos, talvez leitores de meu blog, minha mulher e eu mesmo nos surpreendemos na contramão desse entusiasmo que tomou conta da população rica e pobre.
Não consigo aplaudir legisladores e governantes que aprovam projetos cujo resultado é a destruição da paisagem silenciosa do Planalto Central. Derrubam-se árvores, arrasa-se o solo, matam-se mananciais e córregos.
Por que teria que admirar imensos, gigantescos e ousados viadutos que secam a atmosfera e estimulam o uso do automóvel individual?
Por que devo me orgulhar com soluções geniais de abrigar, em refúgios subterrâneos, no centro da cidade, milhares de carros? Por que devo achar bonito que nesses ambientes de concentração de gases tóxicos haja bares, restaurantes, lojas, piscinas aquecidas, bancos e parques infantis se posso ficar sentado num banco de praça a olhar as plantas e a ouvir pássaros e, à note, ver estrelas?
Por que me ufanaria com a notícia de que Brasília é a terceira metrópole brasileira e está a caminho de incorporar todas as dificuldades das outras duas, onde as pessoas se transformam em percentuais?
Por que devo me admirar que um condutor de carro ceda, obrigado por lei, o direito a um cidadão de atravessar uma rua de sua cidade?
Por que devo me orgulhar da inteligência do sistema de trânsito que sabe onde pôr um semáforo, abrir retornos, duplicar avenidas para que as máquinas não se atropelem e não percam tempo?
Não deveríamos estranhar que o brasiliense esqueceu de andar a pé?
Por que devo agradecer ao sistema de trânsito que me dá alguns segundos para atravessar a rua, em alguns desses cruzamentos, com risco de ser atropelado?
Os sinais não são para os pedestres. Posso usá-los nessa fração de tempo em que os carros se respeitam ou se xingam, indo para todas as direções. Há que ser rápido para que o sinal vermelho não nos colha no meio do caminho.
Por que devo aplaudir a abertura de postos de polícia para deter ladrões e não se tem um salário mínimo para contratar uma bibliotecária de uma biblioteca comunitária no vilarejo Engenho das Lajes?
Por que devo me sentir feliz ao ver passar carros de luxo, ouvir a algazarra dos bares da moda se, nos semáforos, crianças vendem panos de prato e desempregados dormem nas marquises de bancos bilionários?
Por que devo me alegrar com a descoberta do pré-sal, com a tecnologia do etanol, menos poluente do que o petróleo, se o número de carros rodando pelas estradas e ruas torna a vida da cidade um inferno poluído?
Por que devo pular de alegria quando ouço o Presidente da República estimular a fabricação e a compra de automóveis para justificar o direito dos pobres de consumir?
Por que devo me extasiar com as viagens do Presidente em avião privativo a quase todos os países da Ásia, da África, da Europa e das Américas? Toma chá com o Ho-Chi-Ming da vez, e pede a bênção do papa como quem vai à padaria da esquina. Não se sabe ao certo o que vai vender ou aprender. Os jornalistas dizem o que sabem e não é muito. Os mercados do etanol são, para o Presidente, mais importantes do que o funcionamento de hospitais e postos de saúde nos quais os pacientes esperam dias, semanas e meses para uma consulta ou cirurgia.
Terá o sindicalista, hoje presidente, esquecido o tempo do pau-de-arara que se prolonga para milhões de brasileiros?
Devo entusiasmar-me com os conselhos do Presidente para que o povo compre, compre, consuma, se endivide para que a economia não pare de crescer, vendo famintos e drogados pelas ruas do meu bairro?
É para pular de alegria quando apareceram bilhões de reais para bancos e montadoras de carros com pompa, discurso e almoço?
Para melhorar o atendimento em hospitais e escolas, arrancam-se a fórceps as migalhas que sustentam o regime do emagrecimento cultural e a obesidade do analfabetismo.

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