quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

HOMO SAPIENS EM EXTINÇÃO

O tigre de Bengala, o urso panda e o coala-la-la, entre tantos outros animais que desapareceram, afastados de seu habitat, foram dados como espécies em extinção. As declarações do Clube de Roma, no início da década de 1970, os alarmes do PCC, em 2005/06 e o fracasso da COP15, em 2009, indicam que a espécie homo sapiens, o animal inteligente, está em extinção.
O homo sapiens intensificou, nos últimos cinco séculos, a degeneração quando não a destruição de seu habitat. Um erro fatal de interpretação o levou a projetar sua própria catástrofe. A mente delirante de um condutor de povos ordenou: crescei e multiplicai-vos, dominai a Terra. Esta é a lógica que orienta, até hoje, o pensamento do homo sapiens, suas atitudes, suas explorações e seu comportamento em relação à Natureza e ao habitat de sobrevivência.
A superpopulação de homo sapiens arrasa, em todas as regiões do globo, as melhores áreas que lhe poderiam dar conforto necessário e suficiente. A superpopulação está dividida entre os que têm mais e os que nada possuem, sequer o necessário. A exploração da Terra e a tentativa de seu domínio, hoje em voga, não são adequadas à garantia da sobrevivência da espécie humana.
A sobrevivência das espécies está relacionada aos elementos necessários à manutenção do desenvolvimento ótimo de seu organismo. Ora, as relações do homo sapiens com a Natureza são de esgotamento de sua potencialidade e não do aproveitamento racional dos elementos de sobrevivência confortável da espécie.
A irracionalidade do crescimento populacional induz à busca desenfreada de elementos de sobrevivência que desemboca na luta física da vida “que os pobres abate e os fortes só pode exaltar”. As iniciativas da agricultura, da indústria e do comércio exploram ao extremo o potencial das riquezas naturais e a capacidade do ser humano de consumi-las. Nesse processo de esgotamento do habitat propício à sobrevivência de nossa espécie concorrem todos os elementos da organização social e de expressão política e econômica dos mais fortes sobre os mais fracos.
O mais claro desvirtuamento do cérebro do homo sapiens em busca da sobrevivência está na desabalada corrida atrás do crescimento econômico instigado por índices do produto interno bruto como elemento de adoração divina, medidor de esperteza administrativa, garantia do prestígio político e massageador do poder sem limites. E, de roldão, nosso habitat é devastado, não bastassem as guerras que arrasam o ambiente com seus habitantes. As chuvas benéficas nos deixam sem água em milhares de casas alagadas pela displicência dos habitantes e incúria dos administradores das cidades. Ficamos sem energia elétrica e os moradores das encostas malcuidadas soterrados e mudos ao lado do celular de última geração.
O crescimento econômico sem limites governado pelo deus PIB é estimulado com discursos de grandes chefes, com táticas de banqueiros, com a clarividência dos analistas financeiros e o entusiasmo de repórteres e jornalistas de shoppings. E a cabeça atônita do homo sapiens vive de fatalidades, inebriada pela ambição do supérfluo, e privada, cada dia mais rigorosamente, do necessário conforto.
É preciso salvar o urso panda sem esquecer-se do risco de extinção do homo sapiens.

CHUVAS E INUNDAÇÕES

Nosso país é geograficamente imenso, naturalmente rico e mentalmente atrasado. Os acontecimentos se diluem na magnitude das três dimensões. Há uma colisão entre a grandeza do país, suas riquezas e o sistema de sua exploração e distribuição pela população. O choque se dá entre a velocidade do aumento da população e a morosidade de seu desenvolvimento mental para compreender as leis de sua casa que é a Natureza.
O homem compete com a Natureza que é, por definição, cooperativa, mas com leis que se cumprem inexoravelmente e não toleram contravenções. O que se vê, ano após ano, no período das chuvas ou em longas estiagens, é uma atitude próxima à fatalidade. As inundações de casas, ruas e cidades acontecem pela fatalidade da Natureza em cumprimento de suas leis e as pessoas, estranhamente, se localizam nessas áreas pela pressão do crescimento da população em busca da sobrevivência e do conforto.
É impressionante ver os moradores deixando suas casas inundadas, caminhando por ruas alagadas, transportando o que puderam salvar, enterrando mortos e, mais tarde, voltar a seu endereço para esperar uma nova fatalidade.
É essa a atitude dos administradores da cidade e de seus habitantes que demonstra e comprova o atraso mental e político do país. Permite-se ao homem conviver com a destruição das florestas em nome da produção de alimentos e com a fatalidade de se amontoar em áreas necessárias aos movimentos dos fenômenos naturais conturbados pela agressão contumaz às leis físicas.
As fatalidades cotidianas se resolvem pensando no rosto do futuro, não apenas no imediato para salvar o armário e a geladeira. Contamos com bombeiros e não com planejadores urbanos e administradores das leis de convivência de uma cidade.
Se não se tomarem medidas radicais, reflorestando e protegendo imensas áreas montanhosas onde nascem os rios, retirando das margens dos córregos os invasores, formando bolsões de retenção de excedentes das chuvas torrenciais, a solução será distribuir milhares de barcos pelas ruas das cidades inundáveis e criar um grito de alarme eletrônico:
SAIAM DE CASA, A CHUVA COMEÇOU!

CONHECIMENTO, TECNOLOGIA, SABEDORIA

É importante reconhecer que os conhecimentos gerais, as invenções e o uso de equipamentos tecnológicos se universalizaram rapidamente, nos últimos cem anos e se socializaram. O mesmo telefone celular é usado na Índia, no Kênia, no Brasil e no Peru, com a mesma tecnologia, pelo alto executivo e pela empregada doméstica.
A tecnologia facilita a comunicação, difunde a informação, não exige conhecimentos na mesma profundidade e não melhora necessariamente o agir, o comportamento, a convivência. Aprende-se com facilidade os passos que permitem o uso mecânico do equipamento porque os artefatos são organizados e movidos por uma “inteligência” automática, por um sistema de associações que se desencadeiam sem que o usuário tenha conhecimento da física e da eletrônica. Aprende-se a usar minimamente o cérebro para manejar o aparelho. Marca-se o número, ouve-se a voz e fala-se. Nada mais fácil para se usar alta tecnologia.
O simples funcionamento do artefato tranquiliza, alegra, satisfaz por se ter conseguido a informação desejada. O usuário apega-se ao aparelho, sente-se um prolongamento da pequena máquina como se fosse parte dela. Ou admite que a máquina é um novo órgão do corpo humano, uma extensão de seu espírito. Ela lhe presta serviços e o usuário já não pode passar sem ela, nem lembra como era sem ela. O aparelho torna-se imprescindível. Poderá esquecer o filho no carro enquanto vai ao centro comercial ou ao banco, mas não o celular. O toque escolhido e conhecido provindo do aparelho o faz saltar para atendê-lo. O choro da criança não o perturba ou mesmo já não se faz ouvir. O grito do celular tem que ser atendido. Faz parte da convenção tecnológica, não importa a informação que contenha ou que se revele, muitas vezes, um simples engano. O choro da criança é uma comunicação em várias dimensões: fome, sede, dor, afeto, manha...mas pode esperar.
A automação parcial dos aparelhos conduz à alienação do cérebro que espera, com certo grau de certeza e sem sua participação, que o artefato deve funcionar porque foi projetado para isso. Dá ao artefato poder, autoridade e lhe presta obediência. Delega o conhecimento ao aparelho. É nessa delegação que atua o marketing, a propaganda, a política econômica que põem o poder aquisitivo, a parafernália de artefatos tecnológicos ao alcance universal para uso e apropriação.
Não é o conhecimento, a aprendizagem, a ciência que, de maneira geral, toca as pessoas. É a capacidade facilitada de ter e usar aparelhos que constroi, hoje, um novo patamar de felicidade, de ascensão social, de igualar-se aos que têm e, consequentemente, de exercitar algum poder.
Passa-se do chá à aspirina, do toque físico do médico à tomografia, à cirurgia, à UTI, num processo cada vez mais mecânico, científico, tecnológico e impessoal. As máquinas são conhecimentos aplicados e intermediários, quando não substitutos do ato humano. Os sentimentos voltam a expressar o complexo psíquico das pessoas nas horas finais do velório e do enterro. As pessoas se reencontram na morte. É o reencontro das almas. A sabedoria chegou, mas um pouco tarde. Silêncio mortal. Palavra inútil.
A multiplicidade de guerras atuais tomou conta das atenções humanas. Elas exigem aparelhos, equipamentos, tecnologias, estratégias, precisão matemática e pouca sabedoria.
Sabedoria é a capacidade psíquica de escolher, de determinar o que fazer, como atuar no universo dos seres que nos cercam. É a liberdade de ser e agir. Conhecer os seres, sua essência, como agem, como se manifestam, como se comunicam, como sobrevivem são ingredientes da sabedoria.
O primeiro estágio, segundo Sócrates, é o conhecimento de si próprio. Conhece-te a ti mesmo. A relação com os seres não humanos da natureza e com as pessoas baseia-se no respeito à sua existência, à forma de vida e à finalidade da vida de cada ser. É sobre esse eixo que gira a convivência e a comunicação de uns com outros.
Os seres inteligentes que usam o pensamento e a palavra para se comunicar o fazem baseados na premissa estrutural de que há em todos o mesmo motor, com maior ou menor rotação, mas que gera a mesma luz. Nesta lógica, o outro sou eu. Temos o mesmo motor vital, de onde se origina o respeito. Quando falamos e nos comunicamos, revelamos a complexidade desse motor. É possível, portanto, que o objeto do pensamento seja o mesmo, mas não a escolha do caminho. Existimos em três dimensões: a liberdade de ser, a liberdade de fazer e a de agir.
O ser é livre em si mesmo, em sua solidão metafísica dentro das quatro paredes da alma. A liberdade de fazer implica tempo e espaço, além de conhecimentos e técnicas. A liberdade de agir exige sabedoria, implica convivência, palavra, sentimentos, cuidados para entrar no reino do outro. E, aqui, o outro sou eu. Compreender esta verdade simples toma ainda alguns milênios.
O preconceito, a dominação, a escravidão, a tortura pertencem à liberdade de fazer e conflitam com a liberdade de ser e de agir. O diálogo é feito de palavras. As palavras são produto da escavação do pensar, do descobrir, do associar, do distinguir, do decidir. É na liberdade do agir que reside a sabedoria.
As desigualdades sociais e de oportunidades, a pobreza econômica são resultados do uso da liberdade indiscriminada de fazer, ainda que legalizada e protegida por leis. O mais forte se apodera do tempo e do espaço, projeta e difunde conhecimentos e técnicas para que outros as utilizem mecanicamente e dependerão sempre dos inventores e inovadores. Chega-se, assim, a uma sociedade do fazer – homo faber − (Hannah Arendt), na qual os seres inteligentes se comunicam por instrumentos que tem vida e mecanismos próprios e mantêm as pessoas dominadas e domesticadas. A palavra é apenas um acessório que indica o como fazer. Somos dominados pelo sistema. E quando recorremos ao tribunal para reclamar de um serviço mal executado ouvimos um robô com voz meiga de secretária a nos informar: é o sistema. Foi uma falha do sistema. O sistema caiu, Estamos sem sistema, tente mais tarde, queira nos desculpar.
Um sentimento de orfandade toma conta do corpo e da alma. Já não precisamos pedir desculpas aos outros quando atentamos contra a sabedoria da convivência. O sistema que comanda nossas vidas nos pede desculpas.
Tentaremos mais tarde. Será melhor que nunca.
Blog, 28.01.10

sábado, 9 de janeiro de 2010

LÁ E CÁ

Em Santa Catarina, há dois anos (2008), cronicamente em São Paulo, em Angra dos Reis (RJ), Cunha e São Luís de Paraitinga (SP), Agudos e Restinga Seca, no RS, neste começo de 2010, a irracionalidade contumaz do homo sapiens está pagando caro pela ocupação imprevidente do espaço natural.
Há discursos ambientalistas demais e planejadores urbanos de menos. Alguém perguntou, num simpósio de arquitetos, se o urbanista deve atuar antes da edificação da cidade ou depois do caos instalado. O país não acordou ainda do pesadelo do crescimento descontrolado da população que resulta num extremo adensamento de áreas com características de superpopulação. Há mais de cinquenta anos existem informações sobre êxodo rural, expulsão de milhares de pequenos produtores pela agricultura comercial e forte tendência à urbanização. Alguém levou esses dados em consideração para acomodar os exilados do campo?
Os administradores municipais, contratados ou eleitos, desconhecem a geografia e a geologia de sua terra. Os assentamentos urbanos se expandem impulsionados por uma força inercial gregária e os serviços básicos de água, energia e esgoto vêm a reboque e a passo lento. Educação, saúde, transporte e áreas de lazer, a conta-gotas e quando der, se sobrar dinheiro. Em outras palavras, nem os administradores nem a população quer saber o que dizem as múltiplas leis que determinam a ocupação do solo. Essas leis simplesmente não pegaram.
E, assim, vão se formando desertos de variadas dimensões, com a denominação de condomínios, vilas, bairros, cidades, capitais, metrópoles. Deserto se caracteriza pela pobreza extrema de vegetação primária, pela secura quase absoluta, ampliação térmica acima da média e maior duração diurna imposta pela iluminação artificial. Nossas cidades, com pouquíssimas exceções, são desertos de tamanhos variados. O deserto urbano é a agravado pela intensa e contínua ação da presença devastadora de máquinas e da população assentada no processo descontrolado da reprodução, da sobrevivência e do conforto, embargando a resposta ambiental e ecológica da natureza.
Quando vejo, lá, as cenas de deslizamento de morros sobre habitações, de rios transbordando sobre ruas, invadindo c derrubando casas, de pontes sendo levadas pela fúria das torrentes e, cá, nas cidades-satélites do Distrito Federal, a falta de água, de energia elétrica e esgoto, grandes extensões sem arborização, assalta-me a dúvida sobre o bom uso da razão do homo sapiens.
De par com a impressionante tecnologia que se desenvolve no campo eletrônico, em todo tipo de maquinaria e engenhosos artefatos, a inteligência do homem recalcitra na compreensão das leis da natureza e pretende se impor a elas ao invés de conviver com elas. Essa atitude presunçosa de dominação, de apropriação, de exploração das riquezas para enriquecimento exacerbado e ambiciosa satisfação de poder, está custando demasiado caro aos seres vivos e produzindo sofrimentos desnecessários à espécie humana.
É preciso convencer a humanidade de que é urgente fazer as pazes com a natureza. Pensar, afirma Pedro de Montemor, é ainda uma medida inteligente do homo sapiens para desfrutar das belezas e das riquezas do planeta Terra.

AS VÍTIMAS TÊM AVÓS

Milhões de mãos humanas, há quinhentos anos, espantando e desalojando povos nativos e preguiçosos de nossa América, construíram cidades e monumentos que são orgulho dos descendentes.
Arrasaram montanhas, aplainaram vales, derrubaram árvores milenares, mudaram o curso de rios, abriram caminhos para conquistar terras mais além e mostraram aos habitantes do futuro os horizontes infinitos da expansão e satisfação de necessidades novas e ambições antigas.
Em sua caminhada gigantesca, essas mãos prodigiosas removeram pedras, enfrentaram ondas medonhas de mares nunca dantes navegados, rasgaram o céu em todas as direções. Embalados nesse espírito de aventura, vamos nós, filhos, netos e bisnetos dos desbravadores, confiantes de alcançar os picos da glória que eles apenas sonhavam.
A ironia da história, porém, ameaça mudar as razões do orgulho que sentimos pelo heroísmo dos que nos precederam. Monumentos, casas, pontes e montanhas vêm abaixo e se esfarelam como frágeis castelos de areia. Sob os escombros ou afogados nas repentinas águas desaparecem crianças, homens e mulheres. Pontes que desafiaram torrentes durante dezenas de anos, plantadas e garantidas por cálculos matemáticos de engenheiros e geólogos, cujos nomes figuram nas placas comemorativas, ruíram. As grandes e produtivas lavouras semeadas, onde bosques e florestas, antes, escondiam feras e serpentes, foram cobertas pelas águas da chuva que não encontraram outro lugar para se refugiar. Igrejas antigas, patrimônio da memória mística e cultural, pousadas, erguidas temerariamente em paraísos naturais para repouso do guerreiro moderno, caíram solapadas pela força oculta da lei da gravidade.
Os vivos, atônitos, desconsolados, balbuciando desesperada filosofia das perdas irrecuperáveis, mas conformados pelo golpe indecifrável do destino, manipulado pelo desconhecido, enterram os mortos e garimpam nas ruínas as lembranças de um passado quase presente. As vítimas são filhos, netos e bisnetos dos que, bem intencionados, golpearam a natureza sem atentar que essas cicatrizes indeléveis não ficariam impunes.
As vítimas têm avós que, para abrir caminhos e alicerçar a felicidade de sua prole, não tiveram lágrimas nem lhes sobrou tempo para chorar a morte de árvores tombadas ao fio do machado.
Que saudade dos avós e das árvores!

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

LEIS COLETIVAS

Que significa para o cidadão brasileiro esse feixe de conceitos, determinações, deveres e obrigações amarrado com artigos, cláusulas e parágrafos chamado lei? O significado semântico indicava para os romanos uma coleção de comportamentos traduzidos em forma didática e orientadora que ordenavam a convivência política do cidadão.
As relações pessoais, as relações de subordinação às autoridades, as relações de propriedade individual e da res pública foram ordenadas e expressas do Direito Romano. As leis, portanto, nascem de comportamentos e atitudes individuais ou de grupos e, pela sua justeza, se destinam a harmonizar as relações humanas. O cumprimento das leis honra e premia o cidadão. O descumprimento o pune.
A aplicação virtual da lei se processa na consciência do cidadão por maio do conhecimento, do discernimento e da aceitação das normas universais e dos conceitos que elas expressam. A aplicação prática da lei, pelo descaso ou agressão às normas, depende de juízes e executores. A consciência do cidadão toma medidas preventivas para a saudável observância das leis. Os juízes e executores policiais lançam mão de sentenças punitivas e curativas da inobservância dos preceitos. Sem medidas preventivas no âmbito da consciência individual, as sentenças punitivas dos tribunais não serão nem suficientes nem eficazes para controlar o descalabro político e social das relações entres as pessoas e impedir o desmantelamento das instituições jurídicas.
A atitude prática mais displicente do cidadão brasileiro é imaginar que a lei resolve, por si, problemas e dificuldades e que sua força opera automaticamente no coletivo. A lei, no entendimento geral, é para a sociedade, para os outros, o que dá brecha para o indivíduo burlá-la em benefício próprio sem ligação alguma com os prejuízos sociais, materiais ou políticos do outro. Sendo a lei uma norma para o coletivo, o cidadão brasileiro de todas as classes sociais e categorias profissionais, investido de qualquer grau de poder − do Presidente da República ao homem sem teto − sente-se acima da lei, atitude reforçada pela confiança de não ser descoberto ou punido. L’état c’est moi, a lei sou eu.
As contravenções vão do excesso de velocidade nas vias, do lixo e entulho jogado às margens da rodovia, dos pequenos e grandes assaltos, da invasão de áreas urbanas, dos roubos cotidianos em supermercados, restaurantes e livrarias, das mentiras políticas, do saque ao erário à corrupção desavergonhada de servidores e personalidades públicas.
O amortecimento da consciência pela valorização do direito individual exclusivo de ser e de ter obstrui o caminho da convivência saudável entre as pessoas. O poder das infrações individuais, multiplicadas indefinidamente, sufoca a força intrínseca da lei e desvirtua a autoridade dos juizes em detrimento da coisa pública. A lei não pega no coletivo porque não aderiu à consciência individual na expectativa de construir laços de convivência civilizada. O período de barbárie generalizada de descumprimento de qualquer lei sem a presença do agente policial se prolongará por muitos anos se o brasileiro de cima e o de baixo não compreenderem que o outro somos nós, isto é, não há leis para o coletivo.

QUEREM

Querem que me alegre com milhões de carros entupindo estradas, engarrafando as ruas da cidade habitada por seres inteligentes.
Querem que me alegre com as geladeiras novas aposentando as velhas.
Querem que me alegre com os prenúncios alarmantes do crescimento do PIB.
Querem que me alegre, sorvendo números e percentuais otimistas de vendas nos shoppings lotados, de embarques em aeroportos superlotados e de entradas em hotéis congestionados.
Querem que me alegre porque cada cidadão pequeno ou grande tem no ouvido um aparelho celular ou um Ipod.
Querem que me alegre com os avanços da medicina que possibilita a uma junta médica retirar 42 agulhas cravadas por um bárbaro no corpo de uma criança.
Querem que me alegre com a justa distribuição capitalista da renda que reduz as desigualdades pelo princípio do mais que nada.
Querem que me alegre com a justiça ao ver impunes os que extorquem milhões, os que fazem, mas roubam e ao ver punidos ou mortos os que não contam com advogados que inocentam criminosos daqui e de fora.
Querem que alegre com os 160 milhões de brasileiros que não leem um só livro no ano.
Querem que me alegre com a população infantil e adolescente que termina a escola primária sem compreender o que leem e sem poder expressar numa carta um pensamento coerente.
Querem que me alegre com as filas de doentes que aguardam, diariamente, consultas e exames em nossa evoluída indústria hospitalar.
De que me alegro?
Ouso alegrar-me, com reticências, ao perceber que, mesmo tardiamente, os ecologistas e ambientalistas despertaram a letargia displicente de nossos governantes.
Ouso alegrar-me, com desconfiança, ao ouvir promessas de uma lei ambiental, mesmo que dúbia, apontando para a preservação de nossas florestas.
Alegro-me pelas árvores que não tombaram diante da sanha das empreiteiras, da indústria imobiliária e viária, do fogo e dos tratores dos bovinocultores e sojicultores.
Alegro-me pelos mananciais preservados e pelas nascentes que fazem correr os riachos.
Alegro-me por poder sair à noite, no silêncio cândido do Cerrado, sentar na casca espessa do planeta Terra, contemplar estrelas e falar com Aldebarã.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

LULA o homem do ano

Grande parte da esquerda brasileira, antes socialista-reformista-revolucionária, apoiada massivamente pela direita capitalista-tradicional-tecnocrática, afirma que o país está no caminho certo. O mesmo caminho que, há menos de oito anos, segundo a esquerda leninista de mercado estava errado.
Le Monde acaba de outorgar o prêmio de homem do ano a Lula graças a sua bandeira contra a fome e a pobreza e aos possíveis 36 aviões Rafale em adiantada negociação. Escrevi uma dezena de críticas ao Lula de hoje. Votei nele nas eleições de 2002, para o primeiro mandato, confiante que as prioridades mencionadas fossem eficazmente atacadas. Logo nos primeiros meses de governo percebi o engano, confirmado depois por um conjunto coeso de mentiras.
Disponho-me, passados sete anos de capitalismo petista, a compreender sua astúcia de sindicalista para enfrentar o enorme país e a imensa população que lhe coube administrar. Uma das frentes de batalha governamental é, sem dúvida, a desigualdade social, econômica e política da população brasileira que cresce mais velozmente do que a capacidade de administrá-la.
A meta política do PT é de permanecer 20 anos no poder. A proposta socialista de democratizar os meios de produção, distribuindo mais igualitariamente as oportunidades empreendedoras e de trabalho foi logo abandonada. O associativismo e o cooperativismo inovadores para indústrias regionais, agroindústrias rurais em apoio à reforma agrária, bancos cooperativos, cooperativas centrais de distribuição de bens, organizações populares de controle de prestação de serviços públicos, tudo foi entregue à livre iniciativa do mercado.
As promessas de campanha que visavam a dar três refeições diárias a todos os brasileiros abaixo da linha de pobreza, com algumas malandragens próprias de nosso povo, foram cumpridas satisfatoriamente. No campo da educação básica e da saúde o país continua atrasado. As escolas particulares consolidam a discriminação de oportunidades e as seguradoras de saúde depredam seus segurados. O povão enfrenta homéricas filas em hospitais, todos os dias, desde a madrugada, e as soluções chegam tarde. A população é grande demais para as capacidades administrativas do mercado.
Compreendo que Lula, pessoalmente, decidiu pelo capitalismo de mercado que o tirou da pobreza nordestina e o transformou em trabalhador paulistano bem remunerado. Ele é grato às montadoras de automóveis. Por isso, se propôs a preservar as instituições que asseguram a livre iniciativa no intuito de vencer as desigualdades sociais, sem inquietar-se com a cumulação sem precedentes nas mãos de banqueiros. Como vendedor ambulante, estimulou a indústria pela via do consumo, amparado com incentivos fiscais e crédito farto. Compreendo o fascínio de perseguir números altos que indiquem a tresloucada corrida do PIB, do crescimento econômico sem limites, sem atentar para a ocupação trágica do campo e das cidades pela população que aumenta muito além da capacidade de administrá-la. Compatibilizou sua intenção e ação de olhar para os famintos e pobres de forma cristã e coerente com o novo modelo de poder absoluto e personalizado, tirando parte dos impostos para distribuí-los a 60 milhões de cidadãos, marginais do progresso nacional, mas satisfeitos com o mais que nada. Levou pobres ao mercado de consumo, não a bibliotecas ou escolas públicas de qualidade. Satisfez astutamente os de cima e os de baixo.
Compreendo que o socialismo e a democracia participativa de oportunidades não lhe teriam dado 80% de aprovação porque as instituições democráticas de mercado estariam ameaçadas. Os 20% que propõem medidas diferentes para diminuir com maior eficácia os vários aspectos da desigualdade entre os cidadãos brasileiros são apenas um detalhe estatístico. A maioria está de joelhos aos pés do mercado.
Compreendo que, hoje, o mundo se inclina diante de Lula. Soube, como diz Mailson da Nóbrega, preservar as instituições capitalistas de mercado com retórica adequada aos ouvidos populares. Vencer as desigualdades sociais e culturais que afetam mais de 100 milhões de cidadãos brasileiros será uma tarefa de longo prazo e dependerá da boa vontade econômica do mercado consumista.

RELIGIÃO

O culto aos mortos que deixaram, além da prole, a casa e as primitivas técnicas de plantio, pode ser uma das raízes da religião (Heuser). Os vivos se religam aos mortos. Onde estão? Encontrou-se lugar para eles. Os bons, para um lado − o Nirvana . Os maus, para outro − o Hades.
Quem comanda o outro lado? Alguém superior a todos. Como aqui, lá deve haver um chefe. Os ritos e as liturgias para celebrar essa memória de religar-se aos mortos foram-se difundindo, diversificando e aperfeiçoando. Transformaram-se em força política. A religião se consolida no espírito humano quando os que dominam o lado invisível e desconhecido decidem relacionar-se com os seres terrestres. Os humanos tornaram-se parentes dos seres divinos. Somos irmãos, primos, sobrinhos, tios, genros, noras, cunhados e avós de pessoas divinas. O Deus de Israel é, ao mesmo tempo, filho, pai, tio, avô e cunhado da descendência de Jesus. O nepotismo pode ser considerado uma invenção antiga.
Todos os povos da terra praticam algum tipo de religião ou religação com ou sem Deus. Qual é a finalidade prática da religião? Templos, ritos, liturgias? Submissão do ser humano mortal a uma divindade sem começo nem fim? Exploração da ingenuidade, do medo, da morte para consagrar verdades e dogmas jogados à responsabilidade da fé sem discussão? Encher a alma de paz, de boa vontade, de solidariedade, de amor?
Napoleão I, diante de cadáveres nos campos de batalha, ousou definir esse sentimento que domina a maioria das pessoas: “A religião é aquilo que impede os pobres de matarem os ricos”. O imperador guerreiro não se deu tempo para completar o raciocínio. Poderia ter concluído que a religião é aquilo que não impede os ricos de matarem os pobres, ou de se matarem, pobres e ricos, entre si.
Para ser humano, para dar sentido à própria existência como partícula do universo não sinto falta de religião. É-me suficiente compreender que, para agir coerentemente, o outro sou eu. Somos todos parentes, os de lá e os de cá, e pertencemos à mesma árvore genealógica que produz o bem e o mal até secar e ser devorada pelo cupim.