segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

DIALÉTICA DA NATUREZA

Desde a ambígua ordem bíblica, “multiplicai-vos e enchei a terra”, a ambiciosa fantasia do homem de dominar a natureza e explorar o planeta parece não conhecer limites.
O raciocínio humano e os métodos praticados para usar, transformar e venalizar a riqueza original da natureza têm dado à humanidade resultados surpreendentes. Árvores transformaram-se em choupanas, casas e palácios. Ferro e pedras uniram-se para enfrentar alturas e transpor abismos e largos rios. As riquezas naturais se afiguram inesgotáveis aos olhos do homem.
O artífice humano age como se fosse dono do cofre que se auto-abastece misteriosamente. Avança sobre as florestas, navega rios e mares, voa pelo espaço. Orgulha-se de suas conquistas, de seus conhecimentos, de sua sabedoria.
A natureza é paciente. Explorada, maltratada, generosa, também tem suas regras, leis e princípios. Ela sabe dar e retirar. Seu idioma é transparente, inconfundível, irretorquível. As cidades do homem, inundadas de águas grandes, caudalosas, não têm água para beber. É a dialética da natureza. É seu método imutável de ensinar o ser inteligente a se precaver.
Há que se retomar o diálogo com a natureza para decifrar, ponto por ponto, os caminhos de sua dialética. As ações humanas produzem efeitos bons ou ruins dos quais nascem práticas que desencadeiam um movimento circular.
A denominação de círculo vicioso para definir o encadeamento de causas e efeitos, recebeu, na concepção otimista a expressão oposta: círculo virtuoso. A expectativa, neste caso, é que as causas produzam efeitos que estimulem a continuidade da ação que os gerou. O bem produz o bem que produz o bem numa corrente contínua.
Na exploração e uso das riquezas naturais, especialmente as que se destinam à alimentação, ao abrigo das pessoas e vestuário para as variações do clima, o diálogo compartilhado com a natureza, capaz de gerar um movimento circular virtuoso, ainda está nos primeiros compassos.
A exploração das potencialidades naturais se faz de maneira abrupta, intempestiva, dependendo do tamanho da tribo. O aumento da população e a ampliação das necessidades, de sua variedade, provocam um movimento circular de caráter vicioso nem sempre interrompido a tempo. Há uma seqüência de substituições. Caem árvores e, em seu lugar, levantam-se casas, semeiam-se cereais ou criam-se manadas de bovinos..
A população se expande. A necessidade de alimentos aumenta. Moradia e vestuário estimulam a produção artesanal de utensílios cada vez mais apropriados para vencer as dificuldades que se apresentam. A ocupação dos espaços obedece a uma dialética de confronto entre o conhecimento, a habilidade, a necessidade, o interesse, a perspectiva de poder e organização da tribo e as oportunidades e riquezas disponíveis da Natureza.
Arbustos, árvores, florestas, no curso de séculos, desaparecem para dar lugar a assentamentos humanos. Animais e aves são forçados a emigrar, a mudar seus hábitos e, lentamente, extinguem-se à míngua de alimentos ou nutrem os invasores. As grandes populações e a urbanização acelerada devastaram e continuam arrasando imensas áreas do planeta. Sobreviver ou viver, para todos os seres do reino animal e vegetal, são um desafio dispendioso e cercado de riscos crescentes.
A dialética do agir humano, conduzida pela premissa anteposta de que o homem é o senhor e dono do universo, conflita com a dialética da natureza a cujas leis universais todos os seres e os elementos obedecem. O conflito entre o homem e a natureza produz atos de violência entre humanos e provoca a fúria das leis físicas, pondo em risco vidas, quando não sua destruição. Gera-se um círculo vicioso. O homem, diante da rigidez das leis da natureza, passa a defender-se delas. Explora e usa as oportunidades naturais na ânsia de dominar as leis físicas. Invade terras, derruba florestas, reprime e desvia cursos de água, substitui matas por soja, cana-de-açúcar, arroz e milho para si e para suas máquinas.
A lógica do homem é linear: produzir comida ou combustíveis no lugar de plantas. A lógica da justificativa também é linear. A população cresce e, portanto, precisa de alimentos, casa e tudo o mais resumido no conceito de progresso, hoje dito crescimento econômico.
Os planos de ordenamento da ocupação territorial dos estados brasileiros, elaborados por planejadores, demógrafos, engenheiros, arquitetos, legisladores, administradores e investidores, poderiam ser um canal útil de aproximação e de diálogo entre homem e natureza. Propiciariam o encontro de duas dialéticas: a dialética da demanda de conhecimentos e experimentos para construir a convivência, a felicidade entre os seres da espécie humana e a da oferta de riquezas naturais, armazenadas no solo, na água, nas plantas, nos minérios, nos animais.
A ocupação do território pela população e o uso dos bens e riquezas nele disponíveis são dois aspetos essenciais da relação homem-natureza. São duas grandezas com tendências opostas. O crescimento da população, mesmo em ritmo lento, tende ao infinito. As riquezas naturais, ainda que passiveis de expansão induzida ou reciclada, tendem ao esgotamento.
Produzir alimentos para uma população que aumenta sobre um território limitado, custa progressivamente mais caro e é mais difícil. Calcula-se que para propiciar igual conforto a todos os habitantes do Distrito Federal (2,5 milhões), ter-se-ia que multiplicar o território atual por três. O adensamento dos bairros Samambaia, Recanto das Emas ou Santa Maria contrasta com o espaçamento do Lago Sul, Lago Norte e o propalado Setor Noroeste.
O fato de o preço do quilo de arroz ou do litro de leite não variar muito de um ano para outro, e até diminuir sazonalmente, não reflete seu verdadeiro custo. O preço é determinado por um conjunto de fatores em grande parte externos à dialética da natureza. A produtividade alcançada, a mão-de-obra do agricultor, a colheita e as perdas inerentes, o transporte, o armazenamento, a distribuição e os impostos acarretam custos que, no final, têm que se ajustar ao montante de dinheiro do consumidor.
Mas há outros custos não contabilizados que tornam fictício e irreal o preço do quilo do milho. Não se contabiliza o custo imposto à natureza com a derrubada de milhões de árvores, do uso intensivo e esgotante da água, do envenenamento operado pelos inseticidas e herbicidas. Não se inclui o custo da eliminação das fontes de oxigênio em troca de emissões de gases tóxicos, do desequilíbrio ambiental, mudando o curso dos ventos e das chuvas, da expulsão de aves e animais, da debilitação das defesas dos seres vivos.
Quanto custa essa mudança para a natureza e para o homem? A desertificação gradual, a recuperação do equilíbrio são conseqüências que encarecem a sobrevivência e a ameaçam. Se todos esses custos fossem aplicados na fixação do preço do litro de leite a decisão de investir na bovinocultura teria que ser postergada.
Se isto ocorre na agricultura, não menos grave e preocupante é a atitude da população no que se refere aos assentamentos urbanos. A urbanização também é um processo de desertificação. Sacrificam-se árvores e secam-se mananciais. Fecham-se os canais de circulação dos ventos e de esgotamento ou infiltração das águas pluviais. Eliminam-se defesas naturais e, produz-se lixo. Esses elementos de custo não se contabilizam para determinar o preço do metro quadrado da construção.
Um plano de ordenamento territorial tem possibilidade de ser útil ao dialogo da dialética do homem e da natureza se houver negociação entre ambos, para controlar a expansão da população nos limites da capacidade de suporte do território com o mínimo de custos para os dois lados.
O equilíbrio das relações homem-natureza foi grandiosamente incluído por Lúcio Costa em seu projeto de cidade-parque para Brasília. Nesse conceito cabe o homem inteiro num território acolhedor, verde, silencioso, propício à reflexão, ao trabalho, ao estudo, à integração das pessoas num universo ordenado. A ocupação de um território, dando-se primazia à população, apenas pelo primitivismo da demanda, é intensificar a desertificação pelas conseqüentes ações que a urbanização vai exigir. Passaremos a vender e a ocupar desertos.
O “controle do crescimento de Brasília”, expressão dúbia usada frequentemente por especialistas, planejadores e administradores do Distrito Federal, só é possível se, paralelamente, forem praticadas estratégias diversificadas de controle do crescimento e da mobilidade da população.
Alternando-se o fluxo e o refluxo de concepções e atitudes do homem, aproximando-se da natureza, é possível construir uma corrente virtuosa contínua. Infelizmente, começa-se com a prática pouco refletida de ações que geram o círculo vicioso. A racionalidade nas relações com a natureza é um desafio mais dignificante para o ser inteligente do que a aventura da exploração das riquezas naturais em nome do progresso e do crescimento econômico afluente e consumista.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

DITADURA ECONÔMICA E SOCIAL

Pedro de Montemor insiste em dizer-me que somos governados por uma ditadura econômica e administrativa.
− Elegemos presidentes, governadores, deputados e senadores em boa fé democrática. O que fazem eles? Com a máscara da democracia elaboram, discutem e aprovam leis segundo seus interesses políticos e econômicos.
Sua indignação procede. Observe-se a recente lei que estabelece o Plano Diretor de Ordenamento Territorial – PDOT −, no Distrito Federal. As propostas sugeridas democraticamente pelas organizações de defesa do Projeto Lucio Costa para Brasília e por dezenas de ONG’s ambientalistas, em sua maioria, não foram incluídas no Plano.
Os deputados são íncubos e súcubos do poder ditatorial que nos governa com forte dose de cinismo. A ditadura é ordenada e legislada pelos interesses econômicos do grande capital e de interesses privados sob a justificativa do coletivo, quando não de benefícios para os pobres.
Os que acham que vivemos subordinados a uma democracia contentam-se com sobras. Aplaudem os que esparramaram migalhas coloridas pelos caminhos. Contentam-se com o sorriso e o abraço dos poderosos. Agradecem à carona que os devolve à casa para ouvir na TV os desmandos, os roubos e as maracutaias dos ditadores sem rosto.
A maioria do povo brasileiro está contente com o regime autoritário da economia e com o chefe da nação que a dirige. Mais de três quartos da população, segundo levantamento de opiniões, acreditam que é o Presidente quem realmente decide sobre nossa felicidade e sobre os destinos da economia.
Estão felizes os redimidos porque podem comer, ir ao supermercado e comprar a geladeira. A felicidade e o contentamento se fortalecem porque o sonho do carro zero se realizou. Ou porque a TV moderna e maior, o computador e o celular igualam, de certa maneira, o rico e o pobre. Freqüentar o bar da esquina ou o restaurante chinês, de vez em quando, é sinal de inclusão social ou do salto mágico para a classe média.
Nessa lista da felicidade não entra o direito de maior participação nas decisões políticas e econômicas. Ela se reduz ao fato de comprar mais e mais. Nessa lista não se inclui o “supérfluo” de ir ao cinema, ao teatro, ao concerto, às livrarias ou bibliotecas populares, embora a renda tenha aumentado.
Não constam nessa lista o incômodo do analfabetismo ou semi-analfabetismo, o incipiente aprendizado nas escolas primárias, a vergonha das epidemias e das filas nos hospitais, a violência da destruição ambiental, o desprezo pelo cumprimento das leis e a indiferença pela ética.
Não consta nessa lista o endividamento sistemático e aprisionador dos créditos e juros escorchantes nem se menciona o comezinho conselho da poupança na consolidação de qualquer patrimônio.
Estamos ainda no patamar de felicidade da sobrevivência, do contentamento primitivo da satisfação de necessidades básicas. É sobre esse comportamento submisso, indefeso e inofensivo que se exerce o poder das grandes empresas nacionais em cumplicidade com as transnacionais, de bancos públicos e privados, com a conivência do autoritário Banco Central e de um congresso fantoche na festa antipatriótica da especulação financeira. Unânimes, unidos ao governo estatal, determinam a hora e o nível das concessões e favores, pão e circo, balizadores da felicidade e do contentamento da população anestesiada e hebetizada.
A banda passa, os palhaços dançam. Das janelas caem nuvens de papel picado. É tempo de sorrisos. Mais um ano termina e os fogos fátuos saúdam a consolidação das instituições democráticas como nunca neste país.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

POR QUE UFANAR-SE

Por que devo ufanar-me se o Distrito Federal é bombardeado por mais de um milhão de carros? Isto é, ufanar-me por respirar, durante 24 horas, dióxido de carbono?
Sou realista e algo pessimista, tenho neurônios de Cassandra. Alguns amigos, talvez leitores de meu blog, minha mulher e eu mesmo nos surpreendemos na contramão desse entusiasmo que tomou conta da população rica e pobre.
Não consigo aplaudir legisladores e governantes que aprovam projetos cujo resultado é a destruição da paisagem silenciosa do Planalto Central. Derrubam-se árvores, arrasa-se o solo, matam-se mananciais e córregos.
Por que teria que admirar imensos, gigantescos e ousados viadutos que secam a atmosfera e estimulam o uso do automóvel individual?
Por que devo me orgulhar com soluções geniais de abrigar, em refúgios subterrâneos, no centro da cidade, milhares de carros? Por que devo achar bonito que nesses ambientes de concentração de gases tóxicos haja bares, restaurantes, lojas, piscinas aquecidas, bancos e parques infantis se posso ficar sentado num banco de praça a olhar as plantas e a ouvir pássaros e, à note, ver estrelas?
Por que me ufanaria com a notícia de que Brasília é a terceira metrópole brasileira e está a caminho de incorporar todas as dificuldades das outras duas, onde as pessoas se transformam em percentuais?
Por que devo me admirar que um condutor de carro ceda, obrigado por lei, o direito a um cidadão de atravessar uma rua de sua cidade?
Por que devo me orgulhar da inteligência do sistema de trânsito que sabe onde pôr um semáforo, abrir retornos, duplicar avenidas para que as máquinas não se atropelem e não percam tempo?
Não deveríamos estranhar que o brasiliense esqueceu de andar a pé?
Por que devo agradecer ao sistema de trânsito que me dá alguns segundos para atravessar a rua, em alguns desses cruzamentos, com risco de ser atropelado?
Os sinais não são para os pedestres. Posso usá-los nessa fração de tempo em que os carros se respeitam ou se xingam, indo para todas as direções. Há que ser rápido para que o sinal vermelho não nos colha no meio do caminho.
Por que devo aplaudir a abertura de postos de polícia para deter ladrões e não se tem um salário mínimo para contratar uma bibliotecária de uma biblioteca comunitária no vilarejo Engenho das Lajes?
Por que devo me sentir feliz ao ver passar carros de luxo, ouvir a algazarra dos bares da moda se, nos semáforos, crianças vendem panos de prato e desempregados dormem nas marquises de bancos bilionários?
Por que devo me alegrar com a descoberta do pré-sal, com a tecnologia do etanol, menos poluente do que o petróleo, se o número de carros rodando pelas estradas e ruas torna a vida da cidade um inferno poluído?
Por que devo pular de alegria quando ouço o Presidente da República estimular a fabricação e a compra de automóveis para justificar o direito dos pobres de consumir?
Por que devo me extasiar com as viagens do Presidente em avião privativo a quase todos os países da Ásia, da África, da Europa e das Américas? Toma chá com o Ho-Chi-Ming da vez, e pede a bênção do papa como quem vai à padaria da esquina. Não se sabe ao certo o que vai vender ou aprender. Os jornalistas dizem o que sabem e não é muito. Os mercados do etanol são, para o Presidente, mais importantes do que o funcionamento de hospitais e postos de saúde nos quais os pacientes esperam dias, semanas e meses para uma consulta ou cirurgia.
Terá o sindicalista, hoje presidente, esquecido o tempo do pau-de-arara que se prolonga para milhões de brasileiros?
Devo entusiasmar-me com os conselhos do Presidente para que o povo compre, compre, consuma, se endivide para que a economia não pare de crescer, vendo famintos e drogados pelas ruas do meu bairro?
É para pular de alegria quando apareceram bilhões de reais para bancos e montadoras de carros com pompa, discurso e almoço?
Para melhorar o atendimento em hospitais e escolas, arrancam-se a fórceps as migalhas que sustentam o regime do emagrecimento cultural e a obesidade do analfabetismo.

POR QUE UFANAR-SE

Por que devo ufanar-me se o Distrito Federal é bombardeado por mais de um milhão de carros? Isto é, ufanar-me por respirar, durante 24 horas, dióxido de carbono?
Sou realista e algo pessimista, tenho neurônios de Cassandra. Alguns amigos, talvez leitores de meu blog, minha mulher e eu mesmo nos surpreendemos na contramão desse entusiasmo que tomou conta da população rica e pobre.
Não consigo aplaudir legisladores e governantes que aprovam projetos cujo resultado é a destruição da paisagem silenciosa do Planalto Central. Derrubam-se árvores, arrasa-se o solo, matam-se mananciais e córregos.
Por que teria que admirar imensos, gigantescos e ousados viadutos que secam a atmosfera e estimulam o uso do automóvel individual?
Por que devo me orgulhar com soluções geniais de abrigar, em refúgios subterrâneos, no centro da cidade, milhares de carros? Por que devo achar bonito que nesses ambientes de concentração de gases tóxicos haja bares, restaurantes, lojas, piscinas aquecidas, bancos e parques infantis se posso ficar sentado num banco de praça a olhar as plantas e a ouvir pássaros e, à note, ver estrelas?
Por que me ufanaria com a notícia de que Brasília é a terceira metrópole brasileira e está a caminho de incorporar todas as dificuldades das outras duas, onde as pessoas se transformam em percentuais?
Por que devo me admirar que um condutor de carro ceda, obrigado por lei, o direito a um cidadão de atravessar uma rua de sua cidade?
Por que devo me orgulhar da inteligência do sistema de trânsito que sabe onde pôr um semáforo, abrir retornos, duplicar avenidas para que as máquinas não se atropelem e não percam tempo?
Não deveríamos estranhar que o brasiliense esqueceu de andar a pé?
Por que devo agradecer ao sistema de trânsito que me dá alguns segundos para atravessar a rua, em alguns desses cruzamentos, com risco de ser atropelado?
Os sinais não são para os pedestres. Posso usá-los nessa fração de tempo em que os carros se respeitam ou se xingam, indo para todas as direções. Há que ser rápido para que o sinal vermelho não nos colha no meio do caminho.
Por que devo aplaudir a abertura de postos de polícia para deter ladrões e não se tem um salário mínimo para contratar uma bibliotecária de uma biblioteca comunitária no vilarejo Engenho das Lajes?
Por que devo me sentir feliz ao ver passar carros de luxo, ouvir a algazarra dos bares da moda se, nos semáforos, crianças vendem panos de prato e desempregados dormem nas marquises de bancos bilionários?
Por que devo me alegrar com a descoberta do pré-sal, com a tecnologia do etanol, menos poluente do que o petróleo, se o número de carros rodando pelas estradas e ruas torna a vida da cidade um inferno poluído?
Por que devo pular de alegria quando ouço o Presidente da República estimular a fabricação e a compra de automóveis para justificar o direito dos pobres de consumir?
Por que devo me extasiar com as viagens do Presidente em avião privativo a quase todos os países da Ásia, da África, da Europa e das Américas? Toma chá com o Ho-Chi-Ming da vez, e pede a bênção do papa como quem vai à padaria da esquina. Não se sabe ao certo o que vai vender ou aprender. Os jornalistas dizem o que sabem e não é muito. Os mercados do etanol são, para o Presidente, mais importantes do que o funcionamento de hospitais e postos de saúde nos quais os pacientes esperam dias, semanas e meses para uma consulta ou cirurgia.
Terá o sindicalista, hoje presidente, esquecido o tempo do pau-de-arara que se prolonga para milhões de brasileiros?
Devo entusiasmar-me com os conselhos do Presidente para que o povo compre, compre, consuma, se endivide para que a economia não pare de crescer, vendo famintos e drogados pelas ruas do meu bairro?
É para pular de alegria quando apareceram bilhões de reais para bancos e montadoras de carros com pompa, discurso e almoço?
Para melhorar o atendimento em hospitais e escolas, arrancam-se a fórceps as migalhas que sustentam o regime do emagrecimento cultural e a obesidade do analfabetismo.

VER ESTRELAS

A vida é disputada palmo a palmo, minuto a minuto. Reparte-se o tempo em frações e migalhas. Há que dormir e acordar. Ir à padaria bem cedo para comprar o pão. Passear por entre as gôndolas do supermercado para encaixar os produtos no orçamento. Correr para o ônibus, ao metrô, ao carro para chegar ao trabalho a tempo de não ser repreendido pelo chefe.
Vai-se ao almoço, ao jantar ou ao bar da esquina. Tudo está previamente disposto. Compromissos, hora marcada. Ao médico, ao dentista que, via de regra, fazem o paciente esperar e ler uma velha Caras ou Veja. É o velório inesperado, o enterro. As crianças para a escola, ir e vir, ao balé, ao esporte. Horas gastas no trânsito engarrafado, na fila do banco, na porta da Loteca, na procura do emprego melhor. E a cozinheira na cozinha, a empregada no aspirador e no espanador, a passadeira na prancha e no ferro de engomar. E cada um em sua azafama diária ou noturna.
Minha neta Luiza convidou-me para sair à noite e ver estrelas. Milhares de carros circulavam em todas as direções, impacientes, loucos. Ouvia-se o vozerio dos bares, discussões nas TV’s que as novelas emitiam, a voz esganiçada do locutor de futebol.
Luiza queria escolher uma estrela, dar-lhe um nome e registrá-la como sua. Escolheu provisoriamente Alfa do Centauro.
Rodamos no espaço a bordo de um planeta a uma velocidade estonteante e, daqui, na escuridão do infinito, podemos apreciar estrelas.
Poucos saem à noite para ver estrelas. São nossas vizinhas na imensidão do firmamento. A noite é o caminho das estrelas. Mas, se quase não conhecemos o vizinho da porta ao lado, como sair à noite para ver estrelas, nossas vizinhas.
Disse Dante a Virgilio ao sair do Inferno:
− Uscimo a riveder le stelle. Saímos a rever estrelas.

PERIGO INVISÍVEL

O agente de trânsito, de apito na boca, ergueu o braço, espalmou a mão e indicou a pista do acostamento ao condutor. Pediu-lhe os documentos, sem pressa, leu-os. Confrontou os dados e, com passo lento, foi à parte dianteira e traseira do automóvel.
− O senhor ultrapassou os limites permitidos de velocidade para este trecho da via.
− É verdade, reconheceu o cidadão, educadamente. O trânsito estava livre, achei que podia correr mais. Estou com um pouco de pressa.
− O perigo é invisível, filosofou o agente, e entregou-lhe a notificação da multa.
Os educadores repetem às mães que os filhos precisam, desde cedo, conhecer os limites. Até onde é possível e onde não é permitido aventurar-se sem risco de se perder na selva das relações humanas? Os perigos desta vida são invisíveis.
Os limites existem e também são, muitas vezes, invisíveis e o perigo de ultrapassá-los podem causar sérios danos. Há limites para gastos e investimentos, para comer e beber. Há um limite de peso que nossa coluna possa suportar. Há um limite de filhos para a família educar. Há um limite para a ocupação de uma região, pois os perigos são invisíveis e inúmeros.
Um amigo arquiteto, na mesa do bar, manifestou admiração pelos migrantes brasileiros que buscam melhores oportunidades. No calor do entusiasmo, afirmou não importar que 100 milhões venham habitar o Distrito Federal e o Planalto Central se aqui melhoram suas condições de vida comparadas com a da terra de origem.
Pedro de Montemor que o escutava não levou a sério o número proposto. É um exagero evidente.
− Cada imigrante encontrará, aqui, um perigo invisível, disse Montemor. Ultrapassado o limite invisível, os perigos invisíveis começam a se revelar. Não será mais prudente examinar os perigos da vida e aceitar limites, evitando ser barrado por um agente?.
Há limites pouco observados: água, áreas verdes, parques para caminhadas, ar puro para respirar, meios de comunicação confiáveis e transporte confortável. Esses e outros itens escondem perigos invisíveis que sugerem limites na ocupação de espaços urbanos.
Quando esses limites são ultrapassados, os perigos se manifestam na forma de segregação, discriminação, privilégios, pobreza, desigualdade, violência. As linhas dos limites se apagam. E, como se constata, hoje, no Distrito Federal e em Brasília, não há agentes suficientes para lembrar ao cidadão a existência de perigos invisíveis.
As perdas se lamentam no dia do enterro.

SEMÁFOROS E PARDAIS

A cidade é para o cidadão. As ruas, para as pessoas caminharem, ir ao trabalho, visitar amigos, abastecer-se de bens necessários ao conforto da vida.
Os longos caminhos do campo que uniam vizinhos distantes foram encurtados com o surgimento de feudos e burgos. Os arredores dos castelos ou dos palácios de reis e príncipes foram se enchendo de gente que se espalharam por onde lhes era fácil e permitido.
As ruas foram ligando as casas em todas as direções. A passagem de uma liteira, de um cavalo, de uma caleça não exigia mais do que dois a três metros de largura. O automóvel ainda hoje não passa em algumas dessas vielas de cidades antigas. Em outras, para satisfazer ao domínio crescente da máquina, reduziu-se a quase nada a calçada que servia de solar à entrada das casas.
A velocidade e a pressa degradam a mente do cidadão. Ele criou exigências e se impôs atitudes irracionais. Inventou a máquina e se fez escravo dela. Em nome da eficiência e da eficácia tudo tem de ser mais rápido, sem perda de tempo. Os contatos de primeiro grau cederam aos de terceiro. A pressa é necessária. A velocidade é a solução.
Para conter o excesso de velocidade, causa freqüente de mortes do cidadão, criam-se leis e obstáculos: barreiras eletrônicas, pardais, sonorizadores, placas de advertência, sinalizações diversas, semáforos. Todos têm um objetivo pouco enfatizado: garantir que todos cheguem sãos e salvos ao destino. Nem sempre isso ocorre.
A irracionalidade no uso da máquina é tal que para atender às cobranças da pressa e da velocidade é preciso criar mecanismos contraditórios. Conter a velocidade, aumentando a ansiedade produzida pela pressa.
O cidadão está numa prisão que os técnicos e administradores denominam sistema de trânsito, controlado por dezenas de órgãos e sub-órgãos, e milhares de funcionários das mais variadas categorias profissionais. Elas representam desde o inventor do pardal com sua câmara fotográfica armada para disparar à menor distração do condutor até o agente de trânsito que multa e recolhe o veículo ao depósito.
A invenção das barreiras eletrônicas e dos semáforos faz hoje a festa das sanções, das multas e da arrecadação do dinheiro do cidadão. O imposto e a multa são uma extensão da esmola que o pobre pede na rua para sobreviver. O rei preguiçoso da antiguidade impôs ao súdito uma contribuição para morar em suas terras.
Ineficiente e cara, a moderna administração age da mesma forma. Se o cidadão examinar com atenção verá que os idealizadores e controladores do sistema de trânsito usam o raciocínio de entradas e saídas e caem vítimas da própria invenção. Uma espécie de masoquismo burocrático. Todos eles têm em mira a velocidade e a pressa, buscando contorná-las com um efeito grandioso: a fluidez. O trânsito flui. E para fluir é preciso criar barreiras, retenções, semáforos.
− Com tantos semáforos na W-3 e na L-2 o trânsito não flui, engarrafa, escreveu um leitor ao Correio Braziliense.
− Novos retornos estão sendo oferecidos aos condutores para evitar longas filas nos semáforos existentes, cuja localização impede a fluidez do tráfego, responde um controlador do sistema..
O resultado, com o aumento de carros em circulação, é apenas o deslocamento de filas e engarrafamentos. A fila foi transferida para o novo retorno com semáforo a 100 metros atrás.
Parece que os controladores do sistema brincam com seu funcionamento para se iludir durante as horas fastidiosas do trabalho.
Um sistema de trânsito que esquece o pedestre – o cidadão pedestre − e o exclui das ruas para dar espaço ao movimento do carro individual não resolve a equação velocidade e pressa.
A solução está na racionalidade cuja equação é: menos carros, mais espaço e, portanto, mais fluidez. O sistema de trânsito de uma cidade começa com as facilidades para o cidadão caminhar.
O meio de transporte que o cidadão precisa para ir a lugares e logradouros públicos é apenas um meio. O sistema de trânsito irracional que nos aprisiona toma o automóvel individual como um objetivo, não importa a finalidade do uso da máquina. O cidadão – condutor do carro − tornou-se tão irracional quanto o sistema que o aprisiona. O cidadão-condutor sustenta um sistema sem solução.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

INUNDAÇÕES

Em Santa Catarina, a massa de água das chuvas moveu montanhas, derreteu o solo e arrastou árvores e terra sobre o Vale do Rio Itajaí, arrasando casas, levando pontes e soterrando mais de uma centena de pessoas.
É sempre tempo para aprender as lições físicas da natureza. Há milhões de anos, os lampejos da inteligência do homem indicavam as cavernas como refúgio seguro para fugir de animais famintos e abrigar-se da chuva, dos ventos e dos raios.
Afoito, ousado, nosso antepassado ganhou algumas batalhas, medindo forças com os ventos e tempestades. Usou os elementos da Terra para sobreviver sobre ela. Pedras grossas contra ventos fortes. Madeiras resistentes contra as chuvas torrenciais. Diques e canais para proteger suas plantações. Usava os benefícios da lei física para defender-se da explosão espontânea de seu funcionamento. Compreendeu que elas funcionam de maneira categórica e indiscutível dentro de seu sistema. Prevenido, à medida que distinguia as estações do ano e as surpresas que as caracterizam, buscou no alto um lugar para construir sua casa.
A Torre de Babel é uma parábola que lembra a aventura, a ousadia, a ambição e a afoiteza da inteligência do homem na tentativa de dominar a natureza e controlar as leis físicas.
A inteligência do homem evolui. É tempo de compreender e aceitar uma nova realidade tão antiga quanto o universo. Fazemos parte dele como os ventos, a luz, a chuva, os raios, as plantas, os animais. Podemos usar das riquezas que nosso planeta nos oferece. Mas há um preço a pagar quando não sabemos o que fazer com elas.
Nossa imprudência, nossas certezas, nosso modo de ocupar os espaços necessários à vida, nossa avidez e necessidades naturais ou provocadas podem custar caro. A vida é o maior custo.
As leis físicas são as forças superiores reais. Elas não conhecem nossos mitos, nossas crenças, nossa fé no poder da técnica. Técnica e prudência. Menos técnica e mais prudência podem diminuir os perigos de perder a vida e a dos que amamos.
Choramos por todos que pereceram: pessoas, árvores, animais. É uma oportunidade a mais que a natureza nos dá para aprender.

07/12/2008

ESTATÍSTICA E O DESCONHECIDO

O desconhecido é desagregado em termos quantitativos com os quais se arma uma equação da qual resulta o conhecido
Dizem-nos que neste ano morrerão 100 mil mulheres, vitimadas pelo câncer de mama, 4,7% a mais do que no ano passado. Nada se pode fazer. A estatística determinou. Ela pensou por nós e nós aceitamos e nos dobramos à força dessa profecia.
No ano que vem, todos os cálculos estatísticos manipulados pelos especialistas profetizarão o crescimento do PIB em 4,8% ou qualquer outro número. Pode-se aplaudir de antemão os êxitos do futuro e comemorar com um almoço de confraternização antecipado.
Não interessa, no momento, o que isso significa nem nos é dado penetrar nesse mistério. Esse mito estatístico alimenta o pensamento do economista e dos analistas que só aparecem depois do leite derramado para explicar a fragilidade do vidro.
O ritual do mito é a repetição sucessiva. Ela confere valor aos atos, às expectativas, à consolidação da credulidade. Não importa que o resultado não seja o anunciado. A fé no percentual equivale à da pessoa que suplica o milagre. Se não o obtiver, as razões são extraídas de um poder superior que sabe o que é bom e o que não é para o crédulo.
Os jornalistas e economistas são sacerdotes do novo mito estatístico. Eles falam do desconhecido e nós acreditamos ou fingimos crer que eles o conhecem. Conhecemos assim o desconhecido por antecipação. Ele nos é revelado pela força da matemática e aceitamos que os fatos se produzem fatalmente.
Os fatos exteriores nos embalam e vamos com eles. Acha-se natural que as ruas de Brasília se entupam com milhares de carros. Outros milhares virão anunciados por um percentual. E virão. Os mortos e atropelados pelos condutores de carros se transformam ou se encarnam num percentual que ainda não aconteceu, mas vai acontecer.
Sabemos, por antecipação, que em futuro imediato as nascentes dos rios secarão para deixar lugar à construção de milhares de casas. Que as avenidas e viadutos destruirão a harmonia da natureza do cerrado. Que as árvores serão sacrificadas e recortadas para a circulação de máquinas que emitem veneno e causam doenças à população. Nada a fazer. O desconhecido foi anunciado e existe logo ali na frente.
A estatística existe e o percentual é sua voz profética.

COMPRAR, COMPRAR

Uma economia se constrói com poupança e não com cartão de crédito e endividamento sistemático.
Estimular a compra compulsiva comprova uma aliança indecente com o desperdício, com o lucro dos bancos e das mega empresas, com a exploração do vazio humano e da irracionalidade. Comprar para salvar a economia, para garantir altos índices estatísticos e de aprovação popular é um crime contra o bom senso.
O Presidente da República aposta todas as fichas no espetáculo do crescimento para se redimir de seu passado de esquerda e da vergonha de ter sido oposição ao que hoje faz. Entrega-se de alma e corpo à obsessão de ser o único infenso e ileso de todas as falcatruas da vizinhança do poder.
Está convencido de que, para dar comida aos milhões de pobres do país, é necessário estimular os ricos a ganhar mais dinheiro. Estratégia que, segundo suas declarações, terá dois resultados imediatos: - aumenta-se o número de empregos cujo salário vai para o consumo compulsivo; − recolhem-se mais impostos para engordar as receitas e continuar a festa do gasto público ineficiente. Mas é festa. Toda festa supõe um gasto ineficiente. Consome-se, fala-se, ri-se, alegram-se os convivas, ficam os copos vazios e os pratos limpos. A cobertura do bolo para o encerramento da festa é feita com números estatísticos dogmáticos, indiscutíveis, conclusivos.
Ninguém ousa opor-se a eles, pois têm valor e força do mito. Pertencem à religião do consumo, do prazer de possuir e usufruir. Pouco se diz sobre o objetivo último e a conseqüência nefasta do investimento que supostamente gera crescimento. Nenhuma empresa é instituída para criar postos de trabalho. O empresário investe para ter o máximo de lucro possível segundo as circunstancias e facilidades que encontra ou exige. Incluem-se favores fiscais, perdão de dívidas, créditos fáceis, sonegação de impostos.
O primeiro corte de gastos, em circunstancias econômicas ou políticas adversas, é no departamento de pessoal. Ter mais empregados significa diminuir os lucros. Produzir mais com menos trabalhadores, eis a questão.
A ordem do Presidente de comprar, comprar para salvar a economia e estufar o crescimento é um contra-senso. Pretende-se evitar o desemprego pela via do consumo a qualquer preço. Não é demais repetir que a economia doméstica ou a nacional se fortalecem com poupança e não com gastança. A obsessão do crescimento desconsidera a fonte de todas as riquezas: os bens na natureza. As grandes populações, como a brasileira, demandam intensa exploração das riquezas naturais desde a água até o minério de ferro. O Distrito Federal é uma das vítimas dessa ânsia de ocupar os espaços das árvores, das nascentes e dos animais.
População e natureza são dois componentes que escapam ao raciocínio da economia atual e de cujas conseqüências a crise mundial está alertando. Um paradigma econômico diferente há de nascer. Não é possível que um país novo como o Brasil se deixe arrastar pelos equívocos ambientais da Europa do século XIX ou da China atual. Menos consumo e mais poupança. Racionalidade no uso das riquezas naturais, aproximação dos governos e da população ao convívio mais intenso com as possibilidades e oportunidades simples e duradouras – também ditas sustentáveis − serão decisões que o tempo e as crises nos obrigarão a tomar.
O mundo já é pequeno para tanta gente. A ordem de consumir, comprar, endividar-se revela desprezo pela natureza, ignorância ou má fé.
Presidente Lula, pare de mandar o povo gastar.

FALÊNCIA MÚLTIPLA

O planeta rola sem parar pelo espaço. Os anos passam, as estações mudam, os dias voam levando as horas de roldão. Marcam-se fatos, anotam-se repetições, examinam-se causas, tiram-se conclusões.
Sabe-se com relativa certeza, se não matemática, que alguns fenômenos da natureza vão se repetir. Pode-se prever quando, como, onde e até com qual intensidade.
Mas, na prática, esses conhecimentos não tornam as pessoas mais prudentes e mais conscientes. Os fenômenos naturais são conhecidos. Com esse conhecimento os cientistas não só os descrevem como avançam previsões de comportamento de leis físicas ligadas ao movimento dos astros, direção dos ventos, períodos de chuvas e secas.
Riscos e desastres têm ocorrido anualmente com intensidade crescente e em locais identificados. Há regiões que são naturalmente afetadas por ventos e chuvas intensas.
As pessoas, pela experiência acumulada de milhões de anos, desde o Dilúvio, não deveriam ocupar certas áreas. Os agrupamentos urbanos, coletivamente, esqueceram ou desprezaram essas singelas noções de segurança e proteção. Os indígenas, observadores da natuteza, constroem suas tabas em locais seguros, longe de inundações e protegidas do vento por cortinas de mato a seu redor.
A organização do Estado que, se presume, detém todas essas informações e pode usar todos os conhecimentos disponíveis em benefício dos cidadãos, está falhando escandalosamente. Há leis e organismos para controlar, orientar, fiscalizar, coibir e sancionar a multiplicidade dos atos do cidadão. As decisões pessoais, com raríssimas exceções, têm que se ajustar e obedecer a alguma lei aprovada e obter a autorização de algum órgão publico para conviver na comunidade.
Observe-se o funcionamento da saúde pública, da segurança, da educação, do trânsito urbano e viário, do comércio, da limpeza da cidade, da ocupação do solo, da proteção ambiental. Os comportamentos do cidadão afrontam a inteligência e desprezam os conhecimentos acumulados. É uma luta permanente para contornar as leis e adaptá-las ao individual contra o coletivo e a racionalidade.
Na hora do desastre, seja a inundação de uma cidade, seja o engarrafamento das ruas por milhares de carros individuais apela-se para o coletivo e para a solidariedade. Nesse momento, a sociedade civil tem peso maior que o do Estado. É o resultado da falência múltipla dos órgãos vitais do Estado, das comunidades, da organização social, dos cidadãos.
Diante da falência múltipla os remédios são impotentes, os conhecimentos, inúteis. O doente sobrevive e respira por aparelhos. A máquina substitui a alma.
A história da humanidade registra cemitérios que guardam escombros de civilizações que nos precederam.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ÁGUAS TOTAIS

A água é um bem pessoal e deve ser olhada e respeitada como parte da vida de cada um. A gota de suor tem que ser reposta com uma gota de água. Uma garrafa, um plástico, um toco de cigarro, um escarro, o lixo da casa jogados no chão são ataques à própria vida individual. Somam-se à poluição que produzimos com o uso abusivo do carro particular, com as queimadas que destroem as florestas.

A água constitui uma das características que diferenciam nosso planeta de outros. Nenhum tipo de vida é possível sem água.
Duas concepções opostas conflitam-se. De um lado, os que consideram a água um bem econômico a ser vendido e comprado com objetivo de lucro. De outro, os que acreditam que a água é um bem a ser preservado para estar disponível às pessoas e à natureza.
Grandes empresas que engarrafam águas vêm secando os aqüíferos locais, poluindo o meio ambiente e cobrando milhares de vezes mais do que se fosse colhida das bicas ou fontes públicas.
Respostas para preservar a água: reaproveitamento das águas; agricultura sustentável em vez de agricultura industrial; reforma maciça nas infra-estruturas; preservação e recuperação de sistemas hídricos destruídos; leis severas contra a poluição; limitação do crescimento industrial; tecnologias adequadas a cada lugar; fim das grandes represas; limitação rigorosa de exploração dos aqüíferos; controle demográfico mais eficaz..
Em 2004, a Turquia e Israel se preparavam para assinar um acordo singular. Israel forneceria armas à Turquia em troca de água doce transportada em navios-tanque. 50 milhões de metros cúbicos por ano em troca de tanques de guerra israelenses.
A falta de água torna a vida impossível em vários locais do mundo e provoca migração de populações inteiras.
Cada dia mais pessoas precisam de água e a necessidade cresce com o aumento do padrão de vida. Recebem água limpa e a devolvem suja. A indústria que era a pior poluidora melhorou em diversos países. Mas a agricultura não melhorou. Grande parte do esgoto das cidades vai para os cursos de água ou lagos.
Um metro cúbico de água contaminada deteriora mais de 10 metros cúbicos de água pura. Nosso hábito de nos desfazer de refugos desperdiça o equivalente a duas vezes a vazão anual do rio Amazonas.
Pessoas de diversos continentes estão condenadas à água suja para suas necessidades diárias de limpar, cozinhar e beber. As doenças disseminadas pelas águas provocam entre 5 e 10 milhões de mortes no mundo por ano, segundo relatório das Nações Unidas.
O maior volume de água consumido vai para a agricultura. Foi por causa da irrigação que o mar de Aral, na Ásia Central, morreu. Do Distrito Federal dezenas de córregos e centenas de nascentes secaram pela descontrolada ocupação de áreas de preservação de mananciais e pela agricultura extensiva.
Na Ásia Ocidental, nações brigam pelas águas dos rios Yamak, Eufrates e Tigre. México e Estados Unidos discutem sobre os rios Colorado e Grande. O Egito, a Etiópia e o Sudão querem mais água do Nilo.
Fabricantes de refrigerantes e aviários em escala industrial roubam fontes de água de fazendeiros e agricultores. É comum dar uma resposta fácil ao sistema de distribuição da água: deixar o mercado resolver. As multinacionais se ofereceram de bom grado a retirar dos governos a aborrecida tarefa de administrar a riqueza hídrica de seus países. Se o acesso à água é um direito proclamado pela ONU, em 1977, ele não será, necessariamente, atendido pelas leis do mercado.
O futuro terá mais a ver com a captação de água em pequena escala, irrigação por gotejamento, técnicas inteligentes de preservação de nascentes e uso moderado. Ninguém deseja apenas consumir água. O que se quer é produzir alimentos, fabricar bens dos quais as pessoas precisam para viver confortavelmente.
Peter Glick, engenheiro norte-americano, pioneiro de tecnologias leves, diz:
“O caminho leve para as águas se esforça em melhorar a produtividade do uso da água em vez de buscar permanentemente fontes para novos suprimentos.”
O abastecimento de água está piorando, não melhorando. E continuará a piorar até que alguma atitude efetiva de amplitude mundial seja tomada.
Por volta de 2050, estima-se que 4 bilhões de pessoas estarão vivendo em países com carência crônica de água. A falta de água é a principal barreira ao desenvolvimento, motivo importante para que os pobres do mundo continuem pobres.
Mais de dois terços do consumo de água são utilizados em lavouras e para animais e a maior parte é usada para irrigação em regiões áridas ou semi-áridas. A indústria é o segundo maior usuário. Em poucos países a indústria usa mais água do que a agricultura, como Estados Unidos, Alemanha e Holanda, grandes responsáveis pela poluição ambiental.
A maior parte de nossas águas vem de aqüíferos, imensas reservas subterrâneas. Mas os aqüíferos se renovam com grande lentidão, através das águas da chuva. Extraímos deles quantidades muito maiores do que o volume da renovação natural. O nível dos lençóis freáticos vai baixando e os poços vêm secando. Preservar os aqüíferos é um ato de bom senso. No afã de dominar a natureza o homem interrompe o curso natural da água que é o de abastecer, rios, lagos e zonas úmidas do planeta. Embora a água subterrânea seja um recurso-chave em muitos países, está sendo usada mais depressa do que consegue se recompor.
O segredo de nossa sobrevivência é que parte da água que evapora dos oceanos cai na terra, alimenta rios, molha o solo e refaz os aqüíferos.


VAI FALTAR ÁGUA
O planeta dispõe sempre de 1,386 bilhão de km3 de água, aproximadamente. 97,5% dessa água é salgada.
Dos 2,5% de água doce, mais de dois terços estão indisponíveis ao ser humano. Estão nas geleiras, neves, gelos, e subsolos congelados. As águas de superfície – rios, lagos, zonas úmidas, no solo, na umidade do ar, em plantas e animais − constituem um volume minúsculo. O restante está armazenado em aqüíferos, águas profundas.
MAIS GENTE, MENOS ÁGUA
Mais de um terço da população mundial não dispõe de água, e a situação está se agravando.
DEMANDA CRESCENTE
Todos os anos, mais água doce é consumida na agricultura, na indústria, nas casas.
ROUBO AO BANCO
Mais de um quarto dos habitantes da Terra depende das águas subterrâneas para obter água potável, mas a reposição das reservas está sendo menos rápida do que seu consumo.
ÁGUA EM CASA
Apenas 10% de toda água consumida é para uso doméstico; mas essa quantidade varia muito entre os países.
ÁGUA PARA ALIMENTOS
Quase 70% de toda água doce consumida vai para a agricultura. Mesmo assim, milhões de pessoas continuam desnutridas.
IRRIGAÇÃO
As terras irrigadas costumam ser mais produtivas do que as não irrigadas, mas a irrigação malfeita pode resultar em solo encharcado ou estéril.
POLUIÇÃO AGRÍCOLA
A agricultura em escala industrial e o uso de produtos químicos para aumentar a produção estão aumentando os problemas para os suprimentos mundiais de água.
ÁGUA PARA A INDÚSTRIA
Os países com industrialização recente precisarão de uma quantidade maior de água nos próximos 25 anos – e, sem o controle adequado, poluirão ainda mais suas fontes hídricas.

POLUIÇÃO INDUSTRIAL
Como os poluentes industriais pioram a qualidade da água no mundo todo, seus efeitos de longo prazo no meio ambiente e nos aqüíferos estão ficando cada vez mais evidentes.
ÁGUA PARA ENERGIA
A energia hidrelétrica, a mais importante fonte mundial de energia renovável, produz aproximadamente um quinto de eletricidade do planeta.
AS REPRESAS
No mundo todo, cerca de 45 mil grandes represas, ou barragens e açudes, afetam seis de cada dez rios importantes, o que já obrigou quase 80 milhões de pessoas a se mudarem.
ÁGUA E SAÚDE – ACESSO À ÁGUA
Mais de um bilhão de pessoas ainda não têm acesso fácil a uma fonte confiável de água.
SANEAMENTO
Um bom saneamento, fundamental na luta contra doenças, é o ponto de partida para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
ÁGUA SUJA MATA
Água suja é responsável por 1,7 milhão de mortes a cada ano. 90% são crianças, isto é, 4.200 por dia.
A água continua sendo um meio em que se desenvolvem as doenças mais mortíferas do mundo: malária, dengue hemorrágica, filaria linfática (elefantíase), esquistossomose, vírus do Nilo.
CONTAMINAÇÃO TRAIÇOEIRA
Quantidades microscópicas de produtos químicos (arsênico) na água potável podem se depositar no organismo e produzir efeitos devastadores na saúde.

REPENSAR A NATUREZA
DESVIO DE RIOS
Apenas alguns rios mais importantes do mundo correm livremente. A maioria foi aproveitada para fornecer energia e irrigação. Há os que estão sendo desviados de seu curso natural, ao longo de centenas de quilômetros, com sérios prejuízos para os seres humanos e o meio ambiente.
DRENAGEM
As zonas úmidas ajudam a manter saudáveis os recursos de água doce. No entanto, muitas vezes são consideradas como terras improdutivas que podem ser drenadas e aterradas para o assentamento de mais gente.
EXPLORAÇÃO DE AQÜÍFEROS
Os aqüíferos do mundo todo estão sendo explorados por sua preciosa riqueza. Apesar de imensos não são inesgotáveis, e há muitos anos o nível de suas águas vem baixando rapidamente.

EXPANSÃO DAS CIDADES
O rápido crescimento das cidades vem forçando cada vez mais a exploração dos recursos hídricos, já em seu limite máximo de consumo.
MEDIDAS DESESPERADAS
Às vezes, a transformação de água salgada em água doce ou o transporte de água doce até onde ela é necessária constituem as únicas opções para quem vive em locais com escassez desse recurso.
INUNDAÇÕES
A cada ano, as inundações acabam com milhares de vidas e prejudicam o dia-a-dia de outros milhões. Elas estão se tornando mais freqüentes.
SECAS
A vida e o sustento de 1 bilhão de pessoas – um sexto da população mundial − estão ameaçados pelas secas e pela desertificação. E as mudanças climáticas vêm piorando a situação.
CONFLITOS E NECESSIDADE DE COOPERAÇÃO.
O uso conjunto de reservas hídricas exige interação entre os paises interessados. Em alguns casos, a água consolida amizades, em outros, aumenta as divergências.
PONTOS DE PRESSÃO
A escassez de recursos hídricos está aumentando as tensões políticas entre paises e dentro deles, e entre as comunidades e os interesses comerciais. Israel e Palestina: 350 litros por pessoa/dia contra 71, respectivamente.
ARMA DE GUERRA
A destruição deliberada de represas e aquedutos, além da contaminação de água potável, são métodos utilizados tanto por governos como por terroristas contra os militares e a população civil. (Oregon, Arizona, nos EEUU; Colômbia, Angola, Nepal, Afeganistão....)

FUTURO
O COMÉRCIO DAS ÁGUAS
A água é um recurso natural básico, mas consegui-la para quem precisa dela é um problema para os governos. Contudo, para os empreendimentos comerciais, trata-se de uma oportunidade de negócio lucrativo.
PRESERVAÇÃO DO ESTOQUE
A água doce é um recurso cada vez mais escasso e valioso. Deveria ser usado da maneira mais eficiente possível. As pequenas águas vão acabando, Restam as grandes represas. As águas estão longe e cada vez mais caras.


PRIORIDADES
Os recursos hídricos têm de ser administrados de modo integrado, atendendo às necessidades sociais, econômicas e de saúde das pessoas, além de suprir o meio ambiente.
VISÃO DO FUTURO
O futuro das águas do mundo está na berlinda. Os possíveis cenários variam e dependem de políticas e ações locais, nacionais e internacionais. O melhor cenário é o que privilegia a produção de alimentos com uso racional da água, reduzindo o uso industrial e doméstico. Essa economia produz maior evaporação e melhora a renovação dos aqüíferos, com reflexos positivos sobre a natureza.

NO BRASIL
O Brasil possui entre 12% e 16% da água do planeta Terra, mas sua distribuição não é homogênea e está ameaçada por fatores socioeconômicos diversos. Mais da metade dos esgotos e águas contaminadas corre diretamente para os rios e lagos.
Área total: 8.574.761 km2
População: 190.000.000 hab
Vazão média: 182.633 m3/s
Note-se que a vazão é constante, enquanto a população cresce e as necessidades de água aumentam.


Eugênio Giovenardi
02/12/2008
Fonte: Atlas da Água, PUBLIFOLHA