(Palestra proferida na Associação Nacional de Escritores)
Estas reflexões
e comentários nasceram da observação e exame da imperiosa necessidade que
pessoas como os escritores têm de declarar seus pensamentos e oferecê-los aos
outros. Os fatos que acontecem ao seu redor, sem sua presença, ou os que têm sua
participação não podem perder-se no silêncio. Há que divulgá-los, comentá-los,
neles pôr sentimentos, poesia, ironia, humor.
Cabe,
inicialmente, um esclarecimento sobre o título Anarquismo Literário. O termo (do grego an+arkhé=sem comando) foge
à semântica política, à sintaxe do poder e ao simbolismo da organização social
em sua vasta extensão. Refiro-me à estrutura cerebral anarquista do escritor e
não à utopia anarquista de um escritor. Não é anarquismo na literatura, mas
literatura livre de comandos, criativa e evolutiva. Ressalto a essência
anárquica do escritor que revela pela palavra o que seu cérebro descobre.
*****
Os escritores
compõem uma nação global. Regem-se com independência e liberdade, em qualquer
país, em qualquer idioma. Formam a frente única da palavra, carimbo que
identifica e distingue o homo sapiens de
todas as demais formas de vida do planeta. A censura tem impedido a leitura,
cortado mãos, mas não calará o pensamento.
No contexto
proposto, desejo apenas sublinhar a independência, a autodeterminação e a
liberdade arbitral de expressão do pensamento do escritor. Neste sentido, é
anárquico. Não tem patrão nem governo além de sua consciência.
Não se há de
estranhar, por isso, rebeliões contra a sintaxe, a regência de verbos e
preposições, a fonética, a grafia ou contra o gênero literário dominante. Tentativas
autoritárias também surgem no reino da gramática, do léxico, do calepino e na
grafia da palavra. Há que aceitar que todo idioma, falado ou escrito, não será
o mesmo em um século como não o foi a cinco.
Tem-se uma
folha em branco e nela imprimem-se ideias, pensamentos, usando a mais poderosa
arma – a palavra – sem proselitismo, livre das grades do gênero e da simples venda
de receitas de felicidade.
O anarquismo está
encravado nas raízes do desejo e da necessidade interiores de se religar ao
outro que pertence ao mesmo corpo cultural, à mesma espécie dialogável, sem
abdicar da autonomia. Está, ao mesmo tempo, relacionado à impotência, se não à
frustração, de não conseguir expressar por inteiro e com intensidade verbal adequada
os sentimentos que o cérebro produz.
A palavra, por
vezes, é impotente, menor do que a grandeza do sentimento gerado nas
circunvoluções cerebrais. A palavra não raro é infiel ao pensamento que o
cérebro produz numa fração de segundo. Quando se busca a palavra o sinal se
perde.
Apela-se, então,
para a lágrima, o sorriso, o gesto, o Grito de Munch, à gargalhada do palhaço. Mais
ainda. O impulso incontido de arrancar o pensamento das profundezas do cérebro se
ampara, frequentemente, num estimulante exterior (droga ou álcool) capaz de liberá-lo
das próprias amarras e das alheias para interpretar seus hieróglifos mentais. (O
estado etílico de Elizabeth Bishop é apenas um caso entre milhares).
No ano passado,
neste recinto, ouvimos, entre outros, Edmilson Caminha, Danilo Gomes, Anderson
Braga Horta, José Rivera, João Carlos Taveira, Fábio de Souza Coutinho
abordando e escavando as profundezas literárias de autores célebres, sua vida
atribulada, suas angústias, seus truques originais para enganar e exorcizar os
mil demônios que assolam o mundo e a mente das pessoas.
É divertido e
até agradável especular sobre o que Machado
de Assis quis ou não quis dizer, se Capitu deu ou não deu. Dar ou não dar,
eis a questão.
Guimarães Rosa encontra no homem
original, na periferia cultural da sociedade, inspiração para plasmar palavras,
expressar sentimentos e vencer as barreiras da competição estabelecidas pela
gramática social. Seu anarquismo literário criou seu estilo e sua estética
comunicativa inimitável. Por isso sobrevive na lista dos que ultrapassaram o
som de sua época.
Oscar Wilde (A
alma do homem sob o socialismo), Victor Hugo (Os miseráveis), Graham Green (O
terceiro homem) são exemplos, entre os grandes, de independência e liberdade
literária escolhendo o tema e definindo o estilo.
Essa driblagem
da semântica, da sintaxe, da fonética, essa virtude anárquica de ser dono de
suas ideias e significados, de interpretar arriscadamente o comportamento
alheio, de maquilar o próprio e preservar sua forma de expressão, faz do escritor
um permanente desafio à crítica, aos rascunhistas de livros, aos editores e aos
leitores.
É importante
lembrar que os escritores de ontem e de hoje não são neófitos na arte de
expressar o pensamento, relatar fatos com o toque da individualidade e da
originalidade.
O escritor está
na praça há, pelo menos, 40 mil anos. “O homem entrou (no universo) sem ruído”,
sugeriu Teilhard de Chardin. Apareceu no meio de outras espécies que já
ocupavam o universo. Pressentindo a continuidade milenar da espécie humana, colegas
ainda iletrados deixaram ilustrações plasmadas nas cavernas, desde a simples e
comovente impressão da mão direita na gruta de Roucadour ou desenhos na de Chauvet,
a símbolos que identificavam seus feitos, seus sucessos, suas peripécias, suas tentativas
de entender o universo, suas esperanças indefinidas. A linguagem rupestre conta
a epopeia da sobrevivência, as vitórias do homo
sapiens, ao longo de sua trajetória, sobrepondo-se às outras linhas
evolutivas das quais compartilhava.
Desde cedo, o homo sapiens compreendeu que precisava
de outros seres vivos para sobreviver e se reproduzir. Mas, principalmente,
precisava de outros indivíduos semelhantes a ele para formar um grupo capaz de
lançar-se, com a cooperação dos outros, à competição social.
Não se sabe em
que circunstâncias e em que momento, ao longo de milhões de anos, o cérebro do homo sapiens tomou consciência de si, de
ser, do próprio eu e dos outros eus.
Esse milagre
cerebral marcou o momento histórico da virada. O homem saiu da pré-história e
começou sua história. O homo sapiens descobriu-se e se identificou no outro que
fugia dos mesmos perigos, abrigava-se das chuvas e dos ventos para sobreviver e
reproduzir a espécie.
A evolução da espécie
humana tomou um tremendo impulso quando a comunicação entre os eus se
consubstanciou pela emissão da palavra. Por meio de vocábulos se consolidava o
conhecimento do universo e se efetivava sua transmissão ao grupo mais próximo.
Entrava o homo sapiens na fase
avançada da identificação e nomenclatura das coisas e das pessoas.
Hoje, o planeta
está povoado de pequenos grupos, de grandes grupos, de sociedades complexas, em
permanente e indisfarçável cooperação e competição social. A estas se agregaram,
milhares de anos mais tarde, a cooperação e a competição econômica, empresarial
e tecnológica pela via do poder político sob os auspícios do poder religioso.
A sobrevivência
do escritor depende de sua atitude cooperativa e competitiva dentro do grupo ao
qual se une e entre os grupos que o cercam.
Dirijo-me, nesta
conversa, ao grupo da ANE composto de vários grupos. Nesse grupo maior, nem
todos se conhecem. Nem todos me conhecem. Grupos invisíveis se formam por
afinidades de pensamento, mesmo que os componentes estejam distantes ou
desaparecidos no tempo.
O escritor, em
sua solidão ontológica, está cercado de grupos que formam, cada qual, um tipo
especial de competição social na produção e sobrevivência literária:
ESCRITOR OU
GRUPO DE ESCRITORES
|
O diagrama
mostra a ANE e grupos de escritores com sua idiossincrasia e relacionamentos
específicos, visíveis e/ou invisíveis, com vivos ou com mortos. Não seria de
estranhar que se manifestassem controvérsias, rebeliões mentais, oposição a
decisões dentro e fora da ANE por grupos que a compõem. O princípio anarquista
da mente comunicativa persiste no processo cooperativo por força da competição
social para sobreviver num grupo cercado de grupos.
Cada escritor
ou grupo de escritores afins são cercados pela própria associação ANE e por:
Grupos de
escritores que pertencem a outras academias e associações de cooperação e
competição literária.
Grupos de
leitores que expressam suas preferências e acirram a competição social do
escritor.
Grupos de
críticos ou pretensos críticos literários que, consciente ou inconscientemente,
favorecem escritores e enfraquecem outros.
Grupos de
livreiros para quem o livro é um produto comercial como a batata ou o caviar
com seu marketing específico.
Grupos de
editores que veem no livro um investimento lucrativo ou ideológico.
Grupo vasto de
não leitores para os quais o escritor é um espírito invisível e, o livro, um
misterioso retângulo fabricado em série por máquinas inteligentes.
Cada grupo tem
suas regras, seus códigos, seu juízo de valor. Há que se livrar de todos eles
para escrever. Mas há que, de alguma forma, dialogar com todos eles para ser
lido ou ouvido. Competir com eles para sobreviver.
A OBRA
Acuado por
tantos grupos, o cérebro do escritor emite comandos, planeja ações, cria
personagens, controla seus comportamentos, é juiz, réu e polícia. É pai e mãe. Premia
e castiga. Entra em êxtase poético ou deprime-se ao olhar estrelas sem poder
alcançá-las. Denuncia injustiças, propõe armistícios. É esta virtude anárquica
que faz a grandeza do escritor. O anarquismo do bem, na linguagem do
maniqueísmo político moderno.
Pratica esta
virtude quando escreve. E, quando escreve, se denuncia e, no meio da denúncia
pessoal, inclui a denúncia coletiva. Desnuda seu eu para que outros eus o
vejam, o percebam e o ouçam. Por isso, nem sempre sabe se o personagem retratado
é o próprio escritor travestido de personagem. Se o autor cria o personagem ou
se o personagem denuncia o autor.
O crítico do
romance MEMÓRIAS DE ADRIANO, de Marguerite Yourcenar, lhe perguntou: “Adrian
est-vous, n’est-ce pas?” Ou seja, a romancista foi, por algum tempo, a augusta
imperatriz de Roma e pôs nos comportamentos e atitudes de Adriano seus desejos
e expectativas.
Como sou um escritor
plebeu recém-chegado à ANE e desconhecido da maioria, um infiltrado na
manifestação literária, me foi proposto comentar a trajetória de minha obra.
Surgiu-me, então, ligar uma forma de anarquismo à literatura.
Se me permitem,
revelo algumas circunstâncias de meus romances, que são parte preponderante de
meus escritos, marcados pela transgressão a regras e costumes. Uma propensão
inata à justiça e à equidade suscitou em mim, desde a infância, uma tendência à
rebelião para manter a mente livre e independente. Todos os esforços
institucionais para convencer-me a aderir a regras formais, seja de religião ou
de partidos políticos, desvirtuaram-se diante da soberania libertária da mente.
Considero-me, hoje, um cidadão livre de comandos.
A rebeldia, portanto,
em meus romances e nos outros escritos socioambientais, é uma característica
mental de contestação e ênfase ao que não parece justo, equitativo, coerente,
racional. Logo adiante, me referirei mais precisamente à transgressão.
Um breve relato
sobre meus seis romances.
1)
OS FILHOS DO CARDEAL – Meu primeiro romance, no qual
sou personagem e escritor, foi publicado em 1997, aos 63 anos, escrito durante
vinte anos (1977-1997). Na segunda edição tomou o título de O homem proibido –De fundo
autobiográfico, o personagem deixa seus grupos básicos, familiares e sociais,
rebela-se contra todos os códigos que conduziram e controlaram sua mente e
vontade até os 30 anos de vida. Transgride todas as regras definidas por outra
cultura e recupera seu próprio eu. Abandona sua Igreja, rompe com Deus e com a
fé. O personagem é o escritor com falsa identidade. Uma biografia críptica. Um
relato de fatos não lineares. Uma biografia autorizada.
2)
EM NOME DO SANGUE ( escrito entre 2000-2002). O
personagem – sacerdote católico – é estimulado a transgredir as regras e
códigos que o impedem de expressar sua identidade homossexual e reprimem sua
sobrevivência social. É a guerra dos eus superiores contra os inferiores. A
sociedade impõe suas regras e o pune com morte violenta. É a realidade
cotidiana multifacetária. O livro ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura 2003,
pela Casa do Livro de Porto Alegre.
3)
AS PEDRAS DE ROMA (escrito entre 2003-2009). O chefe
supremo da maior empresa religiosa do mundo competitivo se rebela contra as
muralhas dogmáticas que o aprisionam. Enfatiza, na Renascença, os símbolos da
arte que são anteriores à superstição, definida por Lucrécio em seu poema De rerum natura. O personagem agnóstico propõe
que a religião não precisa provar a existência de Deus. Deus não pensa. Pensar
é próprio do homem. Mas a religião é uma das fontes de inspiração da arte e da
literatura. O personagem permite ao autor governar o Vaticano por seis anos.
4) HELIODORA (escrito e publicado em 2010), o personagem deixa sua
terra, sua família, sua cultura para continuar, em Brasília, a escalada
migratória que se iniciou na África há 70/80 mil anos. O imigrante perde seu
chão natural e emocional, seu pedaço de céu estrelado, seu berço, seu vizinho,
suas festas. É excluído de sua própria terra. Afinal, somos todos migrantes,
emigrantes e imigrantes e a vida vai conosco a frente.
5) SILÊNCIO (escrito e publicado em
2011). O personagem se dá o direito e o prazer de falar com seu próprio eu, de
caminhar seu caminho, de compulsar sua solidão ontológica, de sentir-se
ingenuamente superior aos medíocres e surpreender-se um cidadão invisível,
desconhecido, um mero contribuinte. O Homo
sapiens transformado em homo
contribuens.
6)
O ÚLTIMO PEDESTRE (escrito e publicado em 2013). O
personagem (ou o autor) é escravo de um sistema anárquico governado por um
grupo superpoderoso da sexta economia mundial que decide o que é bom para a
sustentação do poder político confundido com a felicidade de todos os eus da
mátria. O personagem vive e morre, a 50 km do Palácio do Planalto, asfixiado
pelos gases do gueto em que está trancado. Seu desaparecimento do cenário da
competição social não é notado nem faz falta.
A competição
social em que a espécie humana está envolvida é um complicado processo de
enganação no qual enganamos os outros e os outros nos enganam. Manipulamos com
perfeição este mecanismo cerebral. Mentimos desde a infância. Aprendemos a
mentir com os pais, tios e tias. Mentimos com as mãos, com os olhos, com o
sorriso, com palavras e isto nos ajuda a escrever mentiras em forma literária.
Romance, por definição, é uma mentira longa.
O escritor é
mentiroso e enganador por sua própria natureza, por infidelidade cerebral, isto
é, não consegue expressar com a palavra a pureza do pensamento. Qual é a
verdadeira fotografia literária do escritor? A que ele divulga ou a que o
leitor vê?
A espécie
humana é a mais mentirosa do planeta. Nosso cérebro é um exímio jogador e conta
com o intrincado enredo de suas circunvoluções. Deleita-se a inventar e a
criar. O humor é uma das mais prazerosas manifestações do cérebro. A piada, a
anedota, o chiste é expressão exponencial da comunicação humana para
contrabalançar a sisudez da verdade aparente. O conselho de Voltaire foi
seguido pela espécie humana muito antes que fosse por ele proposto: menti,
menti, alguma coisa permanecerá...
Uma
característica da espécie humana, deste ser chamado homo sapiens, é sua agressividade na luta pela sobrevivência e
reprodução. Sua energia vital, de pensar, de querer, de amar, de se dedicar ao
outro é também suficiente para inventar artefatos de destruição (criatividade
destrutiva), não só das formas de vida que a natureza lhe oferece para
sobreviver, como de aniquilamento cruel da própria espécie humana.
A agressão, a
regressão, a transgressão e a digressão estão presentes de maneira anárquica na
literatura. O homo sapiens é
agressor, transgressor, digressor, regressor. Talvez, por isso, traga em si o
germe da mentira inventiva. Se o poeta é um mentiroso (Fernando Pessoa) e o
escritor, um enganador compulsivo, ambos sabem disfarçar esses impulsos
agregando humor, ironia, raiva, indignação, tolerância, amor. Torna-se ao escrever
um enganador perfeito e um mentiroso virtuose. Engana-se e engana os outros.
Mente a si e mente aos outros sob a forma de muitas e variadas verdades.
E quem não
mente? Mente o pai, a mãe, a tia, o avô. Mente o professor, o político, o economista,
o deputado, o senador, a presidente, o padre, o pastor, o papa. É a válvula de
escape da sobrevivência para pedir cooperação aos outros e vencer a competição
dos outros.
Mas sempre
existe a surpresa no flagrante de mentira.
Um diz: Desculpe, não foi isto o que eu quis dizer...
Outro: Fui mal interpretado...
Um terceiro: A frase foi colhida fora do contexto...
Finalmente, o
acusado mente descaradamente quando diz: Tudo
não passa de uma deslavada mentira...
Talvez a única
expressão real, objetiva diante do dizer humano seja: é inacreditável.
O ceticismo faz
parte da curiosidade e da inventiva humanas. Pode ser até que a mentira seja o
outro lado da verdade.
Com isto quero
dizer que o escritor registra a caminhada humana espelhando-se na largura de
seus próprios passos e marca a evolução de suas ações cercado de uma variedade
de formas de vida, de uma riquíssima biodiversidade na qual se incluem as
árvores, os insetos, os pássaros, os mamíferos e, entre eles, o homo sapiens. O que poderia ou deveria ser,
mistura-se ao que é. A objetividade é dissecada pela subjetividade. E a
escultura sai à nossa imagem.
Somos gerados
ao azar. E como escritores, contamos as peripécias e os vacilos do azar
anárquico dos movimentos da sociedade na qual competimos para sobreviver e nos
reproduzir. Para isso, inventam-se personagens físicos ou simbólicos que se
confundem com o eu do escritor. Por vezes, esse personagem se mascara em flor,
em vento, em amor, em inveja, em ciúme, em crime, em noite, em lua, em
estrelas. E cansado do inferno, Dante convida Virgilio:
Uscimmo a
riveder le stelle.(Dante, Inferno)
A espécie
humana tem essa faculdade única da palavra para dizer o que pensa, o que não
pensa, o que gostaria de pensar, o que pensam os outros e o que não pensam.
É nessa
floresta que caminha a espécie humana e é nela que escavamos a palavra mais
adequada e o personagem mais apropriado para dizer o que somos.
Nessa floresta,
o cérebro humano, aparelho admirável e complexo, pode fazer do homem um
Alexandre Magno, um Stálin, um Hitler, um Mozart, um Gandhi, uma Thatcher, uma
Teresa de Ávila, um Jesus Cristo, um Pelé, um Fernandinho Beira-Mar. Somos uma
unidade humana variável.
Assim, passamos
a vida a ver, perceber e compreender o outro em nós para nos unirmos a ele,
defender-nos dele e, se for preciso, eliminá-lo do grupo. Somos regidos pela
competição social que nos impõe truques de sobrevivência e de reprodução. Por
isso mesmo e, contraditoriamente, precisamos dos outros e os outros precisam de
nós. Anarquia plena.
Somos hábeis criadores
de próteses. Utilizamos os outros, os leitores, para prolongar e ampliar nossa
vitalidade. Terceirizamos nossa mente, nossos olhos, nossos ouvidos, nossos
braços e nossas pernas. Utilizamos o que a natureza pode nos beneficiar por
meio de outros seres vivos.
A polícia
precisa do olfato do cão para descobrir a droga escondida no sapato do
passageiro. Só quando o cão lhe envia um nosebook,
o homem, que já perdeu quase completamente o olfato, pode ver a droga. O cão é a prótese pericial do policial.
Sobreviver como
escritores é deixar descendência plasmada nos personagens criados e nas
palavras inventadas. Sobrevivência e reprodução são forças imanentes. A
competição social é um de seus truques mais eficazes. A competição social pela
sobrevivência de grupos produziu o desaparecimento dos Neandertais e dos índios
das Américas. Cometeu o genocídio nos campos de concentração, sem esquecer
Hiroshima, Iraque, Palestina, Afeganistão, Ucrânia e demais catástrofes
provocadas pela espécie humana.
Assim caminha a
humanidade é um lugar comum que resume toda sua grandeza e baixeza.
Alegro-me de
ter podido me dirigir a participantes deste grupo para quem a palavra é a única
testemunha e juiz de sua identidade, de sua existência, de sua liberdade de ser
o personagem descrito por si próprio.
Tenho orgulho
de fazer parte desse grupo antigo de escritores que escreveu seu primeiro livro
nas paredes das cavernas e que, ao longo de milênios, tem por missão perenizar
na humanidade a cultura da palavra. O escritor é um vetor de esperança à
evolução cultural da mente humana na perspectiva da paz e da liberdade.
Mais do que
aviões supersônicos, mais do que armas químicas, mais do que Iphones e Ipads, o
escritor inventa e semeia a palavra que democratiza a democracia, civiliza a
civilização e humaniza a convivência humana.
Nossos
descendentes, na reprodução da cultura, são os leitores, não importa quem, não
importa quantos.
A história da literatura tende, inevitavelmente, ao
anacronismo. Cada época reconstrói a experiência literária em seus próprios
termos. Cada historiador reordena o catálogo dos clássicos. A literatura,
enquanto isso, rejeita as tentativas de imobilizá-la no interior de esquemas
interpretativos. (Robert Darnton)