segunda-feira, 31 de março de 2014

O PASSADO NO PRESENTE



O passado é a única testemunha do viver humano. Continua no presente e nada revela do futuro. Compõe-se de fatos imutáveis. Impassível, recebe interpretações diversas e controversas.
Podemos visitar o passado situado a milênios, a séculos ou a anos de distância. Aqui e hoje, lembramos marechais, generais e torturadores da ditadura militar, cujo golpe foi precedido de outros golpes preparatórios de contramanifestações de cunho moral e religioso e da atuação de personagens civis: Magalhães Pinto, Auro de Moura Andrade e Ranieri Mazzili.
São fatos e não se podem mudar os fatos. O Golpe Militar se deu. Parte da sociedade civil e religiosa o apoiou. Preferiu a força das armas ao diálogo democrático, ao aperfeiçoamento das instituições, à difícil tarefa de administrar a diversidade de propostas, necessidades e aspirações da população. Pretendeu impor a concretização da convivência social mantendo a desigualdade e controlando o irreprimível desejo humano de perceber e sentir a felicidade de viver em liberdade.
Ficaram no passado os vinte e um anos de ditadura militar. Há os que só têm passado e jamais terão presente. Nós podemos olhar o passado, que é parte de nós, e trazê-lo ao presente. Deixamos no sarcófago do passado a ditadura militar e a subserviência da sociedade que a aplaudiu.
Estamos vivos e temos o privilégio de olhar ao passado, aos que estão definitivamente no passado e aos que, do passado, iluminam nosso presente. O passado, que neste momento lembramos, decreta a vergonha e a infâmia de uns e ressuscita a amargura dos que sobreviveram. Amargura digna e criativa de uns. Indigna e destrutiva de outros.
Os personagens da ditadura militar demoliram instituições com atos institucionais. Censuraram a palavra, mas não puderam calar o pensamento nem antes, nem durante, nem depois que se homiziaram no passado. O país, entretanto, não pode viver a síndrome do passado.
O passado está a nos dizer que o presente pode e deve ser diferente e melhor. Um presente que seja de todos. Optamos pela democracia, infelizmente confinada à urna eleitoral. Na prática, a democracia está sendo cabresteada por várias formas de ditadura, isto é, sem a participação livre e consciente da maioria.
Democracia dominada pela ditadura econômica em mãos dos mais fortes que determinam preços, taxas e impostos. Pela ditadura financeira, em mãos de bancos especuladores que usam o dinheiro a seu bel-prazer. Pela ditadura administrativa, sem transparência, em mãos dos mais espertos e aproveitadores que privatizam a res publica. Pela ditadura ideológica da governabilidade em que se mistura o trigo ao joio de cuja farinha se produz um pão contaminado.
Optamos pela democracia. Há que passar de democracia representativa para a democracia participativa. Uma democracia ouvida. Hoje, para ser ouvido, apela-se desesperadamente para a queima de ônibus num país em que o transporte público depende de ônibus.
Há que democratizar a democracia. Há que romper o estatuto dos fatos consumados, das decisões de cima para baixo que determinam o que é bom e o que é ruim para a convivência igualitária.
Participar é exercer o pensamento. É questionar decisões antes que sejam tomadas. É desarticular esses conúbios teratológicos entre os interesses das oligarquias privadas e a administração pública. O impulso da participação tem que ser estimulado e organizado entre grupos de cidadãos, de baixo para cima, antes que os coletivos institucionais se apropriem de suas vontades, aspirações e desejos.
Podemos ter medo da rua pela insanidade do tráfego ou pela imprevisibilidade de sequestros. Não podemos ter medo da rua para expressar nosso pensamento e nossa vontade de participar nas decisões que se destinam a construir um presente que honrará nosso passado, o de nossos filhos e netos.


30.3.2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

ANARQUISMO LITERÁRIO


 (Palestra proferida na Associação Nacional de Escritores)

Estas reflexões e comentários nasceram da observação e exame da imperiosa necessidade que pessoas como os escritores têm de declarar seus pensamentos e oferecê-los aos outros. Os fatos que acontecem ao seu redor, sem sua presença, ou os que têm sua participação não podem perder-se no silêncio. Há que divulgá-los, comentá-los, neles pôr sentimentos, poesia, ironia, humor.
Cabe, inicialmente, um esclarecimento sobre o título Anarquismo Literário. O termo (do grego an+arkhé=sem comando) foge à semântica política, à sintaxe do poder e ao simbolismo da organização social em sua vasta extensão. Refiro-me à estrutura cerebral anarquista do escritor e não à utopia anarquista de um escritor. Não é anarquismo na literatura, mas literatura livre de comandos, criativa e evolutiva. Ressalto a essência anárquica do escritor que revela pela palavra o que seu cérebro descobre.

*****
Os escritores compõem uma nação global. Regem-se com independência e liberdade, em qualquer país, em qualquer idioma. Formam a frente única da palavra, carimbo que identifica e distingue o homo sapiens de todas as demais formas de vida do planeta. A censura tem impedido a leitura, cortado mãos, mas não calará o pensamento.

No contexto proposto, desejo apenas sublinhar a independência, a autodeterminação e a liberdade arbitral de expressão do pensamento do escritor. Neste sentido, é anárquico. Não tem patrão nem governo além de sua consciência.
Não se há de estranhar, por isso, rebeliões contra a sintaxe, a regência de verbos e preposições, a fonética, a grafia ou contra o gênero literário dominante. Tentativas autoritárias também surgem no reino da gramática, do léxico, do calepino e na grafia da palavra. Há que aceitar que todo idioma, falado ou escrito, não será o mesmo em um século como não o foi a cinco.
Tem-se uma folha em branco e nela imprimem-se ideias, pensamentos, usando a mais poderosa arma – a palavra – sem proselitismo, livre das grades do gênero e da simples venda de receitas de felicidade.

O anarquismo está encravado nas raízes do desejo e da necessidade interiores de se religar ao outro que pertence ao mesmo corpo cultural, à mesma espécie dialogável, sem abdicar da autonomia. Está, ao mesmo tempo, relacionado à impotência, se não à frustração, de não conseguir expressar por inteiro e com intensidade verbal adequada os sentimentos que o cérebro produz.
A palavra, por vezes, é impotente, menor do que a grandeza do sentimento gerado nas circunvoluções cerebrais. A palavra não raro é infiel ao pensamento que o cérebro produz numa fração de segundo. Quando se busca a palavra o sinal se perde.
Apela-se, então, para a lágrima, o sorriso, o gesto, o Grito de Munch, à gargalhada do palhaço. Mais ainda. O impulso incontido de arrancar o pensamento das profundezas do cérebro se ampara, frequentemente, num estimulante exterior (droga ou álcool) capaz de liberá-lo das próprias amarras e das alheias para interpretar seus hieróglifos mentais. (O estado etílico de Elizabeth Bishop é apenas um caso entre milhares).

No ano passado, neste recinto, ouvimos, entre outros, Edmilson Caminha, Danilo Gomes, Anderson Braga Horta, José Rivera, João Carlos Taveira, Fábio de Souza Coutinho abordando e escavando as profundezas literárias de autores célebres, sua vida atribulada, suas angústias, seus truques originais para enganar e exorcizar os mil demônios que assolam o mundo e a mente das pessoas.

É divertido e até agradável especular sobre o que Machado de Assis quis ou não quis dizer, se Capitu deu ou não deu. Dar ou não dar, eis a questão.
Guimarães Rosa encontra no homem original, na periferia cultural da sociedade, inspiração para plasmar palavras, expressar sentimentos e vencer as barreiras da competição estabelecidas pela gramática social. Seu anarquismo literário criou seu estilo e sua estética comunicativa inimitável. Por isso sobrevive na lista dos que ultrapassaram o som de sua época.

Oscar Wilde (A alma do homem sob o socialismo), Victor Hugo (Os miseráveis), Graham Green (O terceiro homem) são exemplos, entre os grandes, de independência e liberdade literária escolhendo o tema e definindo o estilo.

Essa driblagem da semântica, da sintaxe, da fonética, essa virtude anárquica de ser dono de suas ideias e significados, de interpretar arriscadamente o comportamento alheio, de maquilar o próprio e preservar sua forma de expressão, faz do escritor um permanente desafio à crítica, aos rascunhistas de livros, aos editores e aos leitores.

É importante lembrar que os escritores de ontem e de hoje não são neófitos na arte de expressar o pensamento, relatar fatos com o toque da individualidade e da originalidade.
O escritor está na praça há, pelo menos, 40 mil anos. “O homem entrou (no universo) sem ruído”, sugeriu Teilhard de Chardin. Apareceu no meio de outras espécies que já ocupavam o universo. Pressentindo a continuidade milenar da espécie humana, colegas ainda iletrados deixaram ilustrações plasmadas nas cavernas, desde a simples e comovente impressão da mão direita na gruta de Roucadour ou desenhos na de Chauvet, a símbolos que identificavam seus feitos, seus sucessos, suas peripécias, suas tentativas de entender o universo, suas esperanças indefinidas. A linguagem rupestre conta a epopeia da sobrevivência, as vitórias do homo sapiens, ao longo de sua trajetória, sobrepondo-se às outras linhas evolutivas das quais compartilhava.

Desde cedo, o homo sapiens compreendeu que precisava de outros seres vivos para sobreviver e se reproduzir. Mas, principalmente, precisava de outros indivíduos semelhantes a ele para formar um grupo capaz de lançar-se, com a cooperação dos outros, à competição social.

Não se sabe em que circunstâncias e em que momento, ao longo de milhões de anos, o cérebro do homo sapiens tomou consciência de si, de ser, do próprio eu e dos outros eus.
Esse milagre cerebral marcou o momento histórico da virada. O homem saiu da pré-história e começou sua história. O homo sapiens descobriu-se e se identificou no outro que fugia dos mesmos perigos, abrigava-se das chuvas e dos ventos para sobreviver e reproduzir a espécie.
A evolução da espécie humana tomou um tremendo impulso quando a comunicação entre os eus se consubstanciou pela emissão da palavra. Por meio de vocábulos se consolidava o conhecimento do universo e se efetivava sua transmissão ao grupo mais próximo. Entrava o homo sapiens na fase avançada da identificação e nomenclatura das coisas e das pessoas.
Hoje, o planeta está povoado de pequenos grupos, de grandes grupos, de sociedades complexas, em permanente e indisfarçável cooperação e competição social. A estas se agregaram, milhares de anos mais tarde, a cooperação e a competição econômica, empresarial e tecnológica pela via do poder político sob os auspícios do poder religioso.
A sobrevivência do escritor depende de sua atitude cooperativa e competitiva dentro do grupo ao qual se une e entre os grupos que o cercam.


Dirijo-me, nesta conversa, ao grupo da ANE composto de vários grupos. Nesse grupo maior, nem todos se conhecem. Nem todos me conhecem. Grupos invisíveis se formam por afinidades de pensamento, mesmo que os componentes estejam distantes ou desaparecidos no tempo.
O escritor, em sua solidão ontológica, está cercado de grupos que formam, cada qual, um tipo especial de competição social na produção e sobrevivência literária: 

ESCRITOR OU
GRUPO DE ESCRITORES
EDITORES
LEITORES
CRÍTICOS
LIVREIROS
ANE
OUTRAS
ASSOC.
NÃO LEITORES
 

      O diagrama mostra a ANE e grupos de escritores com sua idiossincrasia e relacionamentos específicos, visíveis e/ou invisíveis, com vivos ou com mortos. Não seria de estranhar que se manifestassem controvérsias, rebeliões mentais, oposição a decisões dentro e fora da ANE por grupos que a compõem. O princípio anarquista da mente comunicativa persiste no processo cooperativo por força da competição social para sobreviver num grupo cercado de grupos.

Cada escritor ou grupo de escritores afins são cercados pela própria associação ANE e por:
Grupos de escritores que pertencem a outras academias e associações de cooperação e competição literária.
Grupos de leitores que expressam suas preferências e acirram a competição social do escritor.
Grupos de críticos ou pretensos críticos literários que, consciente ou inconscientemente, favorecem escritores e enfraquecem outros.
Grupos de livreiros para quem o livro é um produto comercial como a batata ou o caviar com seu marketing específico.
Grupos de editores que veem no livro um investimento lucrativo ou ideológico.
Grupo vasto de não leitores para os quais o escritor é um espírito invisível e, o livro, um misterioso retângulo fabricado em série por máquinas inteligentes.
Cada grupo tem suas regras, seus códigos, seu juízo de valor. Há que se livrar de todos eles para escrever. Mas há que, de alguma forma, dialogar com todos eles para ser lido ou ouvido. Competir com eles para sobreviver.

A OBRA


Acuado por tantos grupos, o cérebro do escritor emite comandos, planeja ações, cria personagens, controla seus comportamentos, é juiz, réu e polícia. É pai e mãe. Premia e castiga. Entra em êxtase poético ou deprime-se ao olhar estrelas sem poder alcançá-las. Denuncia injustiças, propõe armistícios. É esta virtude anárquica que faz a grandeza do escritor. O anarquismo do bem, na linguagem do maniqueísmo político moderno.

Pratica esta virtude quando escreve. E, quando escreve, se denuncia e, no meio da denúncia pessoal, inclui a denúncia coletiva. Desnuda seu eu para que outros eus o vejam, o percebam e o ouçam. Por isso, nem sempre sabe se o personagem retratado é o próprio escritor travestido de personagem. Se o autor cria o personagem ou se o personagem denuncia o autor.

O crítico do romance MEMÓRIAS DE ADRIANO, de Marguerite Yourcenar, lhe perguntou: “Adrian est-vous, n’est-ce pas?” Ou seja, a romancista foi, por algum tempo, a augusta imperatriz de Roma e pôs nos comportamentos e atitudes de Adriano seus desejos e expectativas.

Como sou um escritor plebeu recém-chegado à ANE e desconhecido da maioria, um infiltrado na manifestação literária, me foi proposto comentar a trajetória de minha obra. Surgiu-me, então, ligar uma forma de anarquismo à literatura.

Se me permitem, revelo algumas circunstâncias de meus romances, que são parte preponderante de meus escritos, marcados pela transgressão a regras e costumes. Uma propensão inata à justiça e à equidade suscitou em mim, desde a infância, uma tendência à rebelião para manter a mente livre e independente. Todos os esforços institucionais para convencer-me a aderir a regras formais, seja de religião ou de partidos políticos, desvirtuaram-se diante da soberania libertária da mente. Considero-me, hoje, um cidadão livre de comandos.
A rebeldia, portanto, em meus romances e nos outros escritos socioambientais, é uma característica mental de contestação e ênfase ao que não parece justo, equitativo, coerente, racional. Logo adiante, me referirei mais precisamente à transgressão.
Um breve relato sobre meus seis romances.

1)     OS FILHOS DO CARDEAL – Meu primeiro romance, no qual sou personagem e escritor, foi publicado em 1997, aos 63 anos, escrito durante vinte anos (1977-1997). Na segunda edição tomou o título de O homem proibido –De fundo autobiográfico, o personagem deixa seus grupos básicos, familiares e sociais, rebela-se contra todos os códigos que conduziram e controlaram sua mente e vontade até os 30 anos de vida. Transgride todas as regras definidas por outra cultura e recupera seu próprio eu. Abandona sua Igreja, rompe com Deus e com a fé. O personagem é o escritor com falsa identidade. Uma biografia críptica. Um relato de fatos não lineares. Uma biografia autorizada.

2)     EM NOME DO SANGUE ( escrito entre 2000-2002). O personagem – sacerdote católico – é estimulado a transgredir as regras e códigos que o impedem de expressar sua identidade homossexual e reprimem sua sobrevivência social. É a guerra dos eus superiores contra os inferiores. A sociedade impõe suas regras e o pune com morte violenta. É a realidade cotidiana multifacetária. O livro ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura 2003, pela Casa do Livro de Porto Alegre.

3)     AS PEDRAS DE ROMA (escrito entre 2003-2009). O chefe supremo da maior empresa religiosa do mundo competitivo se rebela contra as muralhas dogmáticas que o aprisionam. Enfatiza, na Renascença, os símbolos da arte que são anteriores à superstição, definida por Lucrécio em seu poema De rerum natura. O personagem agnóstico propõe que a religião não precisa provar a existência de Deus. Deus não pensa. Pensar é próprio do homem. Mas a religião é uma das fontes de inspiração da arte e da literatura. O personagem permite ao autor governar o Vaticano por seis anos.
4) HELIODORA (escrito e publicado em 2010), o personagem deixa sua terra, sua família, sua cultura para continuar, em Brasília, a escalada migratória que se iniciou na África há 70/80 mil anos. O imigrante perde seu chão natural e emocional, seu pedaço de céu estrelado, seu berço, seu vizinho, suas festas. É excluído de sua própria terra. Afinal, somos todos migrantes, emigrantes e imigrantes e a vida vai conosco a frente.

5) SILÊNCIO (escrito e publicado em 2011). O personagem se dá o direito e o prazer de falar com seu próprio eu, de caminhar seu caminho, de compulsar sua solidão ontológica, de sentir-se ingenuamente superior aos medíocres e surpreender-se um cidadão invisível, desconhecido, um mero contribuinte. O Homo sapiens transformado em homo contribuens.

6)     O ÚLTIMO PEDESTRE (escrito e publicado em 2013). O personagem (ou o autor) é escravo de um sistema anárquico governado por um grupo superpoderoso da sexta economia mundial que decide o que é bom para a sustentação do poder político confundido com a felicidade de todos os eus da mátria. O personagem vive e morre, a 50 km do Palácio do Planalto, asfixiado pelos gases do gueto em que está trancado. Seu desaparecimento do cenário da competição social não é notado nem faz falta.

A competição social em que a espécie humana está envolvida é um complicado processo de enganação no qual enganamos os outros e os outros nos enganam. Manipulamos com perfeição este mecanismo cerebral. Mentimos desde a infância. Aprendemos a mentir com os pais, tios e tias. Mentimos com as mãos, com os olhos, com o sorriso, com palavras e isto nos ajuda a escrever mentiras em forma literária. Romance, por definição, é uma mentira longa.
O escritor é mentiroso e enganador por sua própria natureza, por infidelidade cerebral, isto é, não consegue expressar com a palavra a pureza do pensamento. Qual é a verdadeira fotografia literária do escritor? A que ele divulga ou a que o leitor vê?
A espécie humana é a mais mentirosa do planeta. Nosso cérebro é um exímio jogador e conta com o intrincado enredo de suas circunvoluções. Deleita-se a inventar e a criar. O humor é uma das mais prazerosas manifestações do cérebro. A piada, a anedota, o chiste é expressão exponencial da comunicação humana para contrabalançar a sisudez da verdade aparente. O conselho de Voltaire foi seguido pela espécie humana muito antes que fosse por ele proposto: menti, menti, alguma coisa permanecerá...

Uma característica da espécie humana, deste ser chamado homo sapiens, é sua agressividade na luta pela sobrevivência e reprodução. Sua energia vital, de pensar, de querer, de amar, de se dedicar ao outro é também suficiente para inventar artefatos de destruição (criatividade destrutiva), não só das formas de vida que a natureza lhe oferece para sobreviver, como de aniquilamento cruel da própria espécie humana.

A agressão, a regressão, a transgressão e a digressão estão presentes de maneira anárquica na literatura. O homo sapiens é agressor, transgressor, digressor, regressor. Talvez, por isso, traga em si o germe da mentira inventiva. Se o poeta é um mentiroso (Fernando Pessoa) e o escritor, um enganador compulsivo, ambos sabem disfarçar esses impulsos agregando humor, ironia, raiva, indignação, tolerância, amor. Torna-se ao escrever um enganador perfeito e um mentiroso virtuose. Engana-se e engana os outros. Mente a si e mente aos outros sob a forma de muitas e variadas verdades.

E quem não mente? Mente o pai, a mãe, a tia, o avô. Mente o professor, o político, o economista, o deputado, o senador, a presidente, o padre, o pastor, o papa. É a válvula de escape da sobrevivência para pedir cooperação aos outros e vencer a competição dos outros.

Mas sempre existe a surpresa no flagrante de mentira.
Um diz: Desculpe, não foi isto o que eu quis dizer...
Outro: Fui mal interpretado...
Um terceiro: A frase foi colhida fora do contexto...
Finalmente, o acusado mente descaradamente quando diz: Tudo não passa de uma deslavada mentira...

Talvez a única expressão real, objetiva diante do dizer humano seja: é inacreditável.
O ceticismo faz parte da curiosidade e da inventiva humanas. Pode ser até que a mentira seja o outro lado da verdade.

Com isto quero dizer que o escritor registra a caminhada humana espelhando-se na largura de seus próprios passos e marca a evolução de suas ações cercado de uma variedade de formas de vida, de uma riquíssima biodiversidade na qual se incluem as árvores, os insetos, os pássaros, os mamíferos e, entre eles, o homo sapiens. O que poderia ou deveria ser, mistura-se ao que é. A objetividade é dissecada pela subjetividade. E a escultura sai à nossa imagem.

Somos gerados ao azar. E como escritores, contamos as peripécias e os vacilos do azar anárquico dos movimentos da sociedade na qual competimos para sobreviver e nos reproduzir. Para isso, inventam-se personagens físicos ou simbólicos que se confundem com o eu do escritor. Por vezes, esse personagem se mascara em flor, em vento, em amor, em inveja, em ciúme, em crime, em noite, em lua, em estrelas. E cansado do inferno, Dante convida Virgilio:
Uscimmo a riveder le stelle.(Dante, Inferno)

A espécie humana tem essa faculdade única da palavra para dizer o que pensa, o que não pensa, o que gostaria de pensar, o que pensam os outros e o que não pensam.

É nessa floresta que caminha a espécie humana e é nela que escavamos a palavra mais adequada e o personagem mais apropriado para dizer o que somos.
Nessa floresta, o cérebro humano, aparelho admirável e complexo, pode fazer do homem um Alexandre Magno, um Stálin, um Hitler, um Mozart, um Gandhi, uma Thatcher, uma Teresa de Ávila, um Jesus Cristo, um Pelé, um Fernandinho Beira-Mar. Somos uma unidade humana variável.

Assim, passamos a vida a ver, perceber e compreender o outro em nós para nos unirmos a ele, defender-nos dele e, se for preciso, eliminá-lo do grupo. Somos regidos pela competição social que nos impõe truques de sobrevivência e de reprodução. Por isso mesmo e, contraditoriamente, precisamos dos outros e os outros precisam de nós. Anarquia plena.

Somos hábeis criadores de próteses. Utilizamos os outros, os leitores, para prolongar e ampliar nossa vitalidade. Terceirizamos nossa mente, nossos olhos, nossos ouvidos, nossos braços e nossas pernas. Utilizamos o que a natureza pode nos beneficiar por meio de outros seres vivos.
A polícia precisa do olfato do cão para descobrir a droga escondida no sapato do passageiro. Só quando o cão lhe envia um nosebook, o homem, que já perdeu quase completamente o olfato, pode ver a droga. O cão é a prótese pericial do policial.
Sobreviver como escritores é deixar descendência plasmada nos personagens criados e nas palavras inventadas. Sobrevivência e reprodução são forças imanentes. A competição social é um de seus truques mais eficazes. A competição social pela sobrevivência de grupos produziu o desaparecimento dos Neandertais e dos índios das Américas. Cometeu o genocídio nos campos de concentração, sem esquecer Hiroshima, Iraque, Palestina, Afeganistão, Ucrânia e demais catástrofes provocadas pela espécie humana.
Assim caminha a humanidade é um lugar comum que resume toda sua grandeza e baixeza.

Alegro-me de ter podido me dirigir a participantes deste grupo para quem a palavra é a única testemunha e juiz de sua identidade, de sua existência, de sua liberdade de ser o personagem descrito por si próprio.
Tenho orgulho de fazer parte desse grupo antigo de escritores que escreveu seu primeiro livro nas paredes das cavernas e que, ao longo de milênios, tem por missão perenizar na humanidade a cultura da palavra. O escritor é um vetor de esperança à evolução cultural da mente humana na perspectiva da paz e da liberdade.
Mais do que aviões supersônicos, mais do que armas químicas, mais do que Iphones e Ipads, o escritor inventa e semeia a palavra que democratiza a democracia, civiliza a civilização e humaniza a convivência humana.
Nossos descendentes, na reprodução da cultura, são os leitores, não importa quem, não importa quantos.

A história da literatura tende, inevitavelmente, ao anacronismo. Cada época reconstrói a experiência literária em seus próprios termos. Cada historiador reordena o catálogo dos clássicos. A literatura, enquanto isso, rejeita as tentativas de imobilizá-la no interior de esquemas interpretativos. (Robert Darnton)

quinta-feira, 27 de março de 2014

VAL, A DIARISTA



A quarta-feira nos traz, com a presença da diarista Val, aspectos da realidade urbana e traços humanos da pessoa que a vive. Mora na cidade de Valparaíso, no estado de Goiás, na divisa do Distrito Federal, a 30 km de nosso apartamento.
Grande parte dos moradores dessas áreas, que hoje compõem a metrópole brasiliense, depende da oferta de trabalho no Plano Piloto e cidades satélites mais importantes como Taguatinga.
Diarista de profissão, é no Plano Piloto que ela consegue melhor remuneração. Mas o aspecto mais desgastante não são as condições rotineiras do trabalho. O deslocamento de sua casa, do Condomínio Albatroz ao ponto de trabalho, faz parte do martírio diário.
O programa habitacional Minha Casa Minha Vida, executado pela Caixa Econômica Federal nessa área, comprometeu por trinta anos seu salário e a pequena aposentadoria do companheiro. Esse programa de características sociais, políticas e eleitorais deu oportunidade de moradia simples a milhares de famílias. Esses condomínios estão situados longe de tudo, plantados num deserto urbano e funcionam como roda solta.
– Com o que eu ganho, não posso escolher onde morar. É onde dá o meu dinheiro.
Não se pensou no transporte urbano. E, se a mobilidade foi mencionada em algum documento oficial, não foi levada à prática. Pertence a outra secretaria do governo estadual que não se comprometeu a prestar o serviço por falta de orçamento e de empresas de transporte interessadas.
Como as prestações da Caixa são implacáveis, sob permanente ameaça de confiscar o imóvel por inadimplência, Val sai todos os dias para garantir o valor da prestação mensal. O dia começa entre 4h30 e 5h da manhã. Vence meia hora de caminhada até a parada de ônibus. Toma lotação pirata até o Gama. Entra num ônibus lotado e viaja em pé até o Plano Piloto, suportando o cotidiano engarrafamento em pontos críticos do Park Way. Toca o interfone às 9h30 para cumprir a rotina do serviço doméstico.
Vendo sua disposição quase alegre e, se não lhe tivéssemos perguntado, não adivinharíamos que nossa diarista é hipertensa, diabética, sofre de dores na coluna, é susceptível de gripes frequentes e engole vários comprimidos ao longo da jornada.
Deixa o local de trabalho às 16h para entrar em seu condomínio às 18h30 e cuidar da própria casa hipotecada à Caixa.
Quando lhe abro a porta, sabendo de seus males, de suas análises críticas à indiferença generalizada e de sua descrença nos administradores da coisa pública, convido-a a entrar.
– Bom-dia! Tudo bem, Val?

– Tudo jooiia!

quarta-feira, 26 de março de 2014

UPP OU UPP – EIS A QUESTÃO


Ao ouvir o primeiro anúncio do governo do Rio de Janeiro, em 2008, sobre a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora em comunidades dos morros cariocas, também ditas favelas, opinei, em círculos restritos, contra esse equívoco administrativo.
A essência da atividade policial é reprimir, não pacificar. Toda a concepção policial e sua educação profissional são para usar a força e as armas com ou sem razão. Apertar o gatilho é mais fácil do que dialogar. Segundo o próprio governo, os integrantes de UPP não receberam o treinamento necessário e específico para tratar com pessoas e cidadãos desarmados. Para os policiais todos os cidadãos são suspeitos até prova em contrário.

PRÉ-UPP

Milícias militares ou paramilitares que atuavam nas favelas eram policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares fora de serviço ou na ativa. Agiam em comunidades urbanas de baixa renda, conjuntos habitacionais e favelas sob a alegação de combater o narcotráfico. Mantinham-se com recursos financeiros provenientes da venda de proteção da população carente, extorsão de comerciantes e pessoas denominadas chefes de zonas de comércio de drogas.
As milícias policiais controlavam mais de 400 das 1006 favelas da cidade do Rio de Janeiro. Contavam com respaldo de políticos e lideranças comunitárias locais, muitos deles ligados à distribuição de entorpecentes.
Mancomunados com facções distribuidoras de drogas, essas milícias paralelamente organizadas e de pleno conhecimento dos comandos da polícia do Estado, de políticos em exercício de mandatos, altos funcionários do governo, advogados e meritíssimos juízes, além de pedágios para garantir a segurança das comunidades, cobravam a execução dos “contratos” averbados segundo a lei da droga: o não cumprimento do “acertado” leva à pena de morte.
Parte dessa organização policial paralela, que engloba várias categorias de pessoas públicas, permanece ativa. Como se noticiou, alguns policiais pertenciam aos dois grupos enfrentados e integraram a polícia pacificadora. Buscaram legitimar sua ação criminosa, cujos acontecimentos desastrosos são amplamente divulgados como acidentes de percurso.

UPP

Primeiro equívoco. A base da concepção da UPP é que a comunidade está em guerra. A guerra se travava entre os distintos chefes do tráfico de drogas e uma parte organizada da polícia que havia tomado a si a administração dos morros. Recordem-se os filmes Tropa de Elite I e II. Mortes, prisões e sequestros cometidos por ambos lados foram registrados pela imprensa durante décadas. Havia, portanto, em um dos lados, a milícia paralela organizada para controlar a comunidade, negociar e receber parte do resultado da distribuição da droga. Não raro, se confrontavam com a outra banda que, além de armamento moderno, gerenciava os estoques de entorpecentes para atender à intensa demanda de consumidores.

Nasce um novo conceito: substituir a polícia corrupta ligada ao tráfico pela polícia pacificadora. Em razão do primeiro equívoco de que as comunidades estão em guerra, a polícia entra nelas para exterminar um dos contendores com tanques, helicópteros, caminhões de soldados armados da polícia militar, do exército, da marinha e da aeronáutica.
Numa guerra não morrem apenas soldados como se viu e se verá ao longo do tempo. Que espera do pacificador uma comunidade em guerra? Que o pacificador elimine ou sane a causa da guerra. Que ponha no lugar da causa da guerra a causa da paz.
A polícia não tem causa de paz para oferecer. Na prática, a polícia pacificadora matou pessoas ditas criminosas que têm mãe e pai, quando não são eles pai e mãe. A polícia pacificadora matou cidadãos inocentes, extorquiu dinheiro, roubou, mentiu, chantageou pessoas. A polícia pacificadora expulsou da comunidade, com o critério da limpeza humana, pessoas que ali nasceram, brincaram e têm raízes pátrias. A polícia, à força e com poder de fogo, dividiu famílias e grupos de amizade. Eliminam-se pessoas. A droga permanece.
Segundo equívoco. Quem sustenta o Shopping Iguatemi? Ninguém mais do que os milhares de consumidores que ali vão para abastecer-se de bens úteis ou supérfluos. Quantos pequenos negócios foram eliminados pela guerra empresarial movida pelas megaempresas em nome da escala econômica e do barateamento dos produtos?
Quem sustenta os “supermercados” de variedades de drogas instalados nos morros e favelas do Rio de Janeiro? Os consumidores de drogas da Zona Sul do Rio, jovens que buscam alternativa à mesmice da vida cotidiana, executivos que precisam mostrar capacidade e eficiência, políticos, altos funcionários públicos e até molambos humanos de rua que perderam o endereço de sua identidade. Ninguém refreia a oferta se a demanda é intensa.
Polícia pacificadora não agrega nada à educação, à saúde, ao emprego, à remuneração justa, ao transporte público e à própria segurança coletiva. É próprio da polícia que conhecemos instalar o medo, a submissão, o uso da força, a denúncia remunerada, a corrupção, a mentira, a perseguição. A morte do pedreiro Amarildo dos Santos e a mulher presa e baleada, arrastada por policiais, envolvidos em outros assassinatos, ao longo de uma avenida do Rio de Janeiro, são ações típicas de soldados em guerra.
A polícia, treinada para usar armas e matar, sabe que uma ação gera reação na mesma ordem e na mesma intensidade. Contabilizam-se dezenas de mortos nas “comunidades pacificadas”. No último ano, três policiais foram mortos e 24 feridos. A revolta e a indignação das pessoas desarmadas sugerem que não se pode falar em pacificação policial. Com as UPP se estabeleceu, na prática, a pena de morte.


UPP ou UPP

Tivesse o governo do Rio de Janeiro proposto Unidades de Políticas Públicas, a exemplo de Bogotá (O aço que domou Bogotá), com ampla participação popular, funcionários preparados para o diálogo, ações coletivas para proteção ambiental, dadas as condições geográficas da área, abastecimento de água, tratamento de esgotos, sistema de coleta de lixo, transporte alternativo, escolas, diversão, lazer, estímulo à arte e à música, postos de saúde eficientes, segurança inteligente baseada na aproximação de pessoas e não na simples prisão ou eliminação de cidadãos, o papel primordial da polícia poderia consequentemente ter melhor êxito. A teoria dos expurgos foi testada durante dezenas de anos na União Soviética (Stálin e Cia,). Os resultados negativos caíram sobre gerações posteriores como herança de equívocos ideológicos, maniqueístas e administrativos.
Um sistema de diálogo e cooperação da comunidade eliminaria termos como “bandidos”, “criminosos” que generalizam os comportamentos e incitam a polícia a cometer também atos criminosos justificados como acidentes de trabalho. O diálogo da cidadania deve preceder à ação policial.
 O terror é instalado pela UPP, pois as ameaças são permanentes vindas de policiais armados ou de comerciantes de drogas a moradores que outrora foram beneficiados por estes em razão da ausência crônica de políticas públicas dos governos.
Não há condições reais de pacificação se as políticas públicas em cumprimento da Constituição não chegam às comunidades. Muitos benefícios reais foram oferecidos pela organização do narcotráfico à comunidade dada a ausência do Estado. Esse boleto também é cobrado pelo terror de um e outro.
Resta para a polícia pacificadora controlar a demanda e o consumo de drogas que são a verdadeira causa da existência de “supermercados” de entorpecentes cujos verdadeiros donos e herdeiros não são perturbados.
Os fatos mais recentes de mortes e prisões de ambos lados confirmam a opinião de analistas sociais de que as UPP, concebidas na área policial, são uma declaração de guerra à organização distribuidora de drogas instalada dentro de uma comunidade e, portanto, parte integrante dela durante décadas.
Nessa complexa organização social, consolidada há décadas, é virtualmente impossível separar relacionamentos familiares, culturais, econômicos e políticos com ações policiais. Isto é, não é possível eliminar um elemento da equação social extinguindo apenas os altos mandos do tráfico, pois o comércio de drogas é sustentado por fatores externos à comunidade. Pode-se dizer que o comércio de drogas possui auto-organização que não se elimina com a prisão ou a morte de alguns chefes. Ela rebrota do próprio tronco.
O comércio de drogas tem experiência milenar. Classificado como produto ilícito, exige um tipo de organização complexo capaz de atender a demanda persistente e burlar os controles legais. Os chefes da organização se estabelecem numa hierarquia empresarial cuja competição agregou o uso de armamento para defesa de seu funcionamento e dos valiosos estoques. O comércio de armas está intimamente ligado ao comércio de drogas. Além de outras, as guerras têm razões econômicas. O tráfico de armas tem tido, em muitos casos, a participação da polícia e de militares da ativa.

CRIATIVIDADE DESTRUTIVA

Uma organização de guerrilha militar para comercialização de um produto ilícito não se justifica. O armamento simples ou sofisticado, cuja função é eliminar pessoas, faz parte da criatividade destrutiva que caracteriza o estado primitivo da evolução cerebral. Declarar guerra para preparar a paz podia ser útil ao Império Romano. A fila humana andou mais de três mil anos depois disso. Há que encontrar na criatividade construtiva mecanismos de conversação e diálogo generosos, educativos e de saúde pública, que alimentem a organização social ecumênica, plural, capaz de respeitar as diferenças e as diversidades humanas.
Enquanto durarem as ações comandadas pela organização policial com o fim de estabelecer uma ordem policial de convivência, as mortes continuarão de lado e lado.
A concepção e a implantação de políticas públicas têm nas UPP policiais um obstáculo de origem. Ações administrativas pontuais, mesmo importantes, para efeito de propaganda oficial beneficiam alguns ou até parte da comunidade. No entanto, o conflito permanece no âmago da organização social comunitária.
As ações do governo para atender ao conjunto de necessidades das comunidades ocupadas pela força militar são mal planejadas, ineficientes, sem continuidade nem participação dos cidadãos nas decisões e dependentes do comportamento policial autônomo. A ideia de guerra permanece.
A definição de crime organizado se restringe apenas ao grupo armado que controla as agências distribuidoras da droga? Ou atinge também os produtores e consumidores do produto? Por que foram selecionadas as comunidades dos morros cariocas para atacar o “crime organizado”??? A polícia e seus investigadores da Coordenação de Repressão às Drogas (CORD) têm desarticulado grupos de distribuidores de entorpecentes em São Paulo, Rio, Porto Alegre, Brasília e outras cidades.
Esses distribuidores circularam há anos pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, abasteceram universitários e funcionários graduados de órgãos públicos, sócios de clubes, médicos, advogados e juízes. A classe média e alta, em qualquer parte do país nunca terá o privilégio de ser controlada por uma UPP. Elas são meras consumidoras de droga e garantem a acumulação de fortunas aos distribuidores.
Há uma reserva de milhões de reais para o consumo de drogas, desde o crack mais ordinário à escama de peixe da cocaína. Essa reserva está protegida pela constituição brasileira. Seus legítimos proprietários estão dispostos a investi-la em drogas. O fornecedor é apenas um empreendedor de risco. Se fracassar por descontrole ou desonestidade na prestação de contas, as leis do tráfico o punem com morte. Se cair nas malhas do CORD, em nada modifica o volume da reserva disponível dos consumidores para futuras transações. Se presos, os distribuidores responderão em liberdade. A falta de feijão na gôndola do supermercado não extingue a vontade de comer uma suculenta feijoada.

TABU PERSISTENTE

Permanece o tabu da questão: a legalização do comércio da droga. O comércio da droga depende em grande parte do consumo contra o qual nenhuma guerra será eficaz. Por que não legalizá-lo? Trata-se de uma economia de bilhões sobre os quais não incidem impostos. Talvez este seja um dos motivos da guerra. A sonegação de impostos, com certeza, atingirá também o comércio de drogas como é praticada pela grande indústria e pelo alto comércio. A Receita Federal produz mecanismos sofisticados para cobrar inadimplentes.
Os bilhões de dólares que nos está custando a guerra contra a distribuição de drogas certamente serão somados ao PIB e não à paz social.
Ou queremos construir uma organização social e política comandada pela força policial mediocremente preparada para garantir a convivência humana?
A convivência social tem que evoluir para o diálogo e a participação dos cidadãos nas decisões adequadas de políticas públicas e não para o terror das armas prontas a disparar em todas as direções.

26.3.2014


terça-feira, 18 de março de 2014

DE CIMA PARA BAIXO




Foto: Transporte de massa!

A informação de que parte dos cidadãos mais ricos de São Paulo deixa o automóvel em casa e entra num ônibus confortável, para ir a seu escritório, foi dada como alvíssaras de mudança.
O motivo da opção escolhida por esses novos passageiros ou usuários da mobilidade – outrora dita transporte público – foi o menor tempo gasto no trajeto. Outros detalhes foram menos destacados: possibilidade de leitura durante a viagem, conversa demorada ao celular e até um cochilo.
Lembre-se que os mais ricos sempre tiveram opções de transporte dignas de sua condição de condutores da economia. Usavam o auto, enquanto a maioria enfrentava o bonde puxado por bestas. Eles embarcavam em aviões e os outros em ônibus pinga-pinga ou em trens sonolentos.
Vieram, depois, os “frescões”, os helicópteros, enquanto os trabalhadores comuns superlotavam os trens de subúrbio. Agora, cansados de engarrafamentos, os ricos usam as linhas expressas de ônibus modernos para ganhar tempo que é dinheiro.
Para a grande maioria sobra o transporte de massa. Massa de pão. Massa de macarrão. Só se percebe a massa quando desce dos vagões do metrô transformada em talharins humanos. Os menos ricos foram iludidos a adquirir seu automóvel para ajudar a economia do PIB a crescer. Cansados de ser massa de pão, eles preferem gastar duas horas no engarrafamento a três na máquina de macarrão. Tempo, aqui, não é dinheiro como lá.
O motivo ecológico, único a dar dignidade à convivência humana passou ao largo. A desigualdade funcional consolidada na vida social e política encontra, a seu tempo, as formas de distinguir quem é quem. O número de automóveis e a emissão de gases de efeito estufa aumentaram.
Trocou-se apenas o patrocinador dos engarrafamentos. O que antes era comandado pelos ricos de cima para baixo, hoje, o é de baixo para cima pelos desiludidos do transporte público.

17.3.14


Nota: Sou ecossociólogo, naturalista e escritor. Administro uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo obsessivo. Reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para refúgio de variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa (3.500 espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação e retenção de águas pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de algumas espécies da biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).