quarta-feira, 12 de março de 2008

DEPENDÊNCIAS

Depende.
É a resposta frequentemente ouvida.
Depende-se de muitas pessoas e de situações as mais diversas.
Enumerá-las, arrisca-se de esquecer algumas muito importantes.
Do nascimento ao enterro, alguém precisa fazer algo a qualquer mortal.
Da parteira ao coveiro interpõem-se centenas de fios que ligam a pessoa ao universo e de mãos que os tecem.
Dependendo do dia, da hora, do mês, da idade, do humor, de pé, sentado, encostado à parede, na esquina da rua, à mesa do restaurante espera-se que algo aconteça para continuar a caminhada.
Depende-se do sinal de trânsito, da boa educação do condutor na passagem de pedestre;
do supermercado, da moça do caixa e do sistema para passar o cartão de crédito; da senha,
da abertura do banco, do saldo, do tente mais tarde;
de qualquer fila que não anda;
da editora que recebeu os originais e não responde;
da escola, do professor;
do correio, do carteiro e do zelador do bloco;
do pintor, do pedreiro, do marceneiro e do encanador;
do compressor de ar para calibrar os pneus;
do carro, do mecânico, da bomba de gasolina, do frentista;
da linha telefônica, do contato da internet que não pode exibir a página solicitada, do processador, do servidor;
do representante da receita – todos os nossos representantes estão ocupados, o tempo de espera é de oito minutos;
do horário comercial, da informação da loja de reparos;
do garçom, da conta;
do bombeiro, da polícia;
do cartório;
da água, da energia elétrica;
do cabeleireiro, do manicuro;
do ônibus, do táxi, do avião, da agência de viagem, da companhia aérea;
do sol e da chuva;
dos horários de atendimento de lojas, repartições públicas e da boa vontade do atendente;
dos programas de rádio e TV;
do telefonema prometido;
do vizinho;
do síndico;
do hospital, do médico, do seguro saúde, do coveiro;
da sombra e da luz;
do dia e da noite;
do resultado do concurso;
dos exames clínicos;
do cumprimento das promessas do governo e dos políticos.

Obs. O leitor pode sugerir outros itens de dependência.

segunda-feira, 10 de março de 2008

RAÍZES DA DESIGUALDADE

A desigualdade, no Brasil, começa na educação discriminatória. O processo educativo se adapta à imposição do sistema econômico da exploração das capacidades humanas de trabalho e produção, cujo resultado se acumula em mãos expertas em administrá-lo. A riqueza, produto do trabalho, divide a sociedade em ricos e pobres, em privilegiados e desprotegidos, em feitores de leis e súditos.
O crescimento da população facilita o acúmulo da riqueza em poucas mãos e dificulta o acesso às oportunidades de participar do armazém de benefícios que ajuda a criar.
Um dos privilégios da vida em sociedade é desfrutar da capacidade coletiva de obter conhecimentos, de compreender o funcionamento do universo, de penetrar os segredos da natureza, de descobrir os mecanismos do cérebro e transmiti-los através da palavra ou recebê-los através da escrita.
A sociedade brasileira está dividida não só entre pobres e ricos. Divide-a o precário sistema educativo. Os ricos além de escolas públicas usufruem de escolas particulares, nas quais aprendem que são diferentes dos demais cidadãos. Os pobres têm por alternativa a escola pública, precária, malservida, por vezes distante do cidadão, nas quais ele compreende que pertence a uma categoria diferente de pessoas.
A desigualdade entre os cidadãos se estabelece e se consolida no processo educativo. A educação tornou-se um negócio. É mercadoria que se vende por mensalidades, anuidades. Alimenta a industria do manual escolar, que se renova a cada ano com seus acessórios de papel e lápis. Eis o equívoco da política educacional do Brasil. Se há um serviço que devesse socializar-se, inteiramente coberto por orçamento público e administrado por conselho misto participativo da sociedade é a educação.
Escola pública para todos, sem discriminação de cidadãos, com os mesmos critérios de qualidade e eficiência. Os impostos progressivos justificam a presença de todos no mesmo e universal sistema escolar. Todos, igualmente, teriam acesso ao mesmo conhecimento. Alcançariam o mesmo nível de oportunidade de propor sua participação e oferecer sua criatividade em benefício da sociedade. Estariam garantidas a liberdade e a democracia.
Por que Alfonso Guimarães pode estudar no Colégio La Salle, com laboratório de química e física, vídeo-show de experiências científicas, computadores e Judson da Silva tem que se contentar com uma escola precária na Agrovila Engenho das Lajes, nos confins de Goiás, com biscoitos água e sal como incentivo de freqüência às aulas?

segunda-feira, 3 de março de 2008

O JULGAMENTO DE EMBRIÕES

A questão nacional, nestes dias, é saber em que momento a vida começa. A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal para julgamento de futuros cidadãos virtuais ou potenciais.
Para uns, vida é simplesmente vida.
Para outros, de cunho religioso, vida é sinônimo de alma, cujas conseqüências se estendem ao destino dela depois da morte: inferno ou paraíso.
Respeitar a vida, para esse grupo, é salvaguardar a alma, não importa o estado da carcaça em que ela se encontre. O atleta, a criança sem cérebro, a pessoa carente de medula, a que tem doença degenerativa estão todos no mesmo plano, igualados pela alma imortal.
Quando começa a vida? A vida começa necessariamente com um elemento vivo do qual procede.
Os espermatozóides ejaculados estão vivos e guardam potencialmente a virtude de se transformar em vida, Os óvulos da mulher desperdiçados são pessoas virtuais. Ambos podem ser congelados e, no silêncio climatizado do laboratório, se unir para a criação de um futuro gênio ou criminoso. Ambos portadores de alma.
No caso de serem congelados depois da fecundação, esse projeto de vida, segundo uma das correntes, a alma já está presente. A alma também se congelará imersa na temperatura de 50º negativos? Ou esperará na porta da câmara frigorífica ou do bujão de gás.
A alma veio pelo conduto do espermatozóide ou do óvulo? Ou a alma tem duas partes: o lado masculino e o lado feminino? Há os que acreditam que Deus cria as almas, uma a uma.
Para os cristãos, educados na doutrina da cruz, do sofrimento, do martírio, a vida tem que ser aceita em nome do sangue do Crucificado. Eis a questão de consciência que interfere na ciência.
A ciência, segundo a Igreja católica, não deve interpor-se na trajetória desse sofrimento para não diminuir o valor e a virtude da alma, cuja purificação é necessária para redimi-la e conquistar, na eternidade, a felicidade que não pode perceber na terra.
Penso que a ciência é um ato humano que permite os elementos vivos em um estágio, auxiliar outros elementos vivos em estado de degeneração ou atrofia.
É a vida auxiliando a vida.

domingo, 2 de março de 2008

A MÃE NATUREZA

Um grupo de agricultores, acompanhados de funcionários da Secretaria de Agricultura, da Administração Regional do Gama, do Ministério Público, Conselheiros do Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável, visitou o Sítio das Neves, propriedade da flora e da fauna que nele habitam.
Os visitantes conheceram as técnicas simples e artísticas de contenção e detenção das águas da chuva: barragens de pedra em arco romano e barragens castor com galhos secos e terra de cupim.
O Cerrado respondeu generosamente, nesses trinta anos de preservação. Milhares de árvores e flores, pássaros e animais, milhões de insetos formam o desejado equilíbrio ambiental ao qual me associo como animal humano participante.
Não sou o único a pensar com a natureza e agir com ela. Em pontos isolados, criam-se grupos de resistência, interessados em proteger a mãe natureza dos ataques e da leviandade dos filhos pródigos. Somos ainda poucos os que põem a mão em obras. São mais os que combatem através da organização, do protesto, da palavra, da manifestação. Ambos associados estão conseguindo vitórias contra gigantes. Vitórias parciais, conquista de terrenos ainda marginais. Os bons bocados continuam com os inimigos da mãe.
Projetos do Governo que atendem aos empresários da destruição civil em nome do crescimento a qualquer preço e da urbanização descontrolada, baseada no uso intensivo do carro individual, seguem na pauta diária das discussões. A superpopulação impõe sua necessidade acima da racionalidade. A passividade da sociedade, alienada pelo discurso oficial e pelos ímpetos do sistema econômico devastado, abre caminho aos aventureiros de todo tipo.
Os partidos políticos não têm programa, nem força, nem organização, nem mobilização, nem critérios e perspectivas para projetar o futuro. Deixam-se abater covardemente pelas colunas organizadas de investidores que, em nome do crescimento econômico, do combate à inflação, da oferta de bens de consumo pelo endividamento de crianças, adultos e idosos manipulam as estatísticas de geração de empregos e aumento da renda. Assumem cinicamente a postura de exatores e realizadores de decisões perniciosas à tranqüilidade social e à essência do viver humano.
Cada casa construída é uma árvore a menos.
Cada carro que roda pelas vias é um espaço tolhido ao caminho das águas.
A excitação do consumo estimula a população a obter dinheiro a qualquer custo para adquirir bens como lastro da felicidade. Essa coceira é difundida aos grotões de pobreza que se orgulham da geladeira sem energia ou sem provisões. Embebedam-se de TV com BBB e tinturas decorativas de conhecimento geral, superficial e solto, que não permite ao desavisado espectador distinguir entre Brasil e Minas Gerais.
Minha diarista, 40 anos, mãe de dois filhos, devota espectadora de novelas e noticiários, depois de 20 anos de casa, ainda pensava que íamos ao aeroporto tomar um ônibus para Paris, no vizinho estado da Bahia.
Esses são alguns dos obstáculos que se encontram no caminho da proteção ambiental e da racionalidade econômica.
No bombardeio cotidiano da retórica oficial e empresarial, a felicidade humana está no consumo obsessivo de quinquilharias que nos dêem a sensação de estarmos dançando conforme a música.