quinta-feira, 31 de março de 2011

HÁ TRINTA ANOS

 

Há trinta, há vinte, há quinze anos, da rodoviária do Plano Piloto de Brasília ao Setor de Indústria e Abastecimento, onde estão as oficinas de automóveis, lojas de material de construção, madeireiras e armazéns, ia-se em dez minutos. Marcava-se o horário de atendimento para revisão do carro para as 8h e a desculpa do engarrafamento não existia.
Ontem fui convocado para uma reunião no SIA às 8h. Parti da 406 Sul às 7h25. Desviei o primeiro entupimento na Comercial 205 Sul e caí no engarrafamento da 907 Sul. Tentei descer pela W-3, sem sucesso. Na altura da 913 Sul, o congestionamento paralisava o metabolismo viário. Às 7h45, passei pelo contorno do cemitério e, lentamente, alcancei a pista do Setor Policial. Finalmente, depois de suportar condutores que se infiltravam pela direita e pela esquerda, bêbados de adrenalina, cheguei ao destino às 8h10.
Parece que não compreendemos ainda o tamanho do mal que nos estamos causando. Os horários de começo e fim do trabalho continuam, cabeçudamente, centralizados em Brasília, como padrão de ineficiência e ineficácia. Reuniões e eventos são convocados para as 8h ou 19h, ignorando que sejam momentos de maior congestionamento. E o que é mais ridiculamente irracional, todos os carros, todos os dias enfrentam as mesmas torturas.
O poder da organização social ainda não foi usado. Nós, a maioria, somos o segundo poder sem uso. E nos deixamos dominar pelo poder menor de quinta classe. Só este dado deveria provocar uma comoção social, um arrastão de bom senso. Um carro, em qualquer  lugar que esteja, na garagem, em frente a casa, na rua, no estacionamento, ocupa 6m2. Trafegam, no DF, 1,200 milhão de automóveis, comprometendo 7,2 milhões de m2, igual à área de 100.000 apartamentos de 72m2, que abrigariam, no mesmo espaço, 500 mil pessoas.
Se contarmos o volume de água necessário para fabricar um automóvel (15.000 litros), o rio que corre pelas vias de Brasília sobre rodas, diariamente, é de 18 bilhões de litros. Água suficiente para abastecer 90 milhões de pessoas, metade da população brasileira num dia.
Não há de se estranhar que a água esteja em perigo, que milhares de nascentes, no DF, desapareceram sob vias, viadutos e estacionamentos e que o clima está mudando. Só não mudamos nós que temos a força do segundo poder.

quarta-feira, 30 de março de 2011

OLHO D’ÁGUA


Escondido entre pedras, gramíneas, orquídeas e arbustos discretos, o olho d’água espiava uma nesga de céu azul. Vinha de longe, de profundidades silenciosas, retorcendo-se por entre camadas de rochas, infiltrando-se pelas veias da terra desde tempos imemoriais. Era um olho só na face enrugada, envelhecida pela pátina dos séculos, milênios ou anos-luz.
Era filho do gelo, da nuvem, da chuva. Borbulhava incansável. A pupila brilhava e cintilava mirando o sol. Quantas noites guardou na retina a palidez da lua! As lágrimas do olho d’água desciam pelas rugas do chão num choro suave e num cantarolar monótono, adormecendo as pedras. Corriam na direção do mar, levadas por riachos e rios, e quebravam-se nas areias da praia.
Um dia, notei que as sobrancelhas vegetais que circundavam o olho d’água perdiam a cor verde, amarelavam, secavam. Não longe dele, um trator arrasava plantas e o fogo deixava cadáveres em pé ou incinerados no chão. A esclerose do solo atacou o olho d’água. As lágrimas foram secando, a cegueira obscureceu o olho d’água. Uma pequena cova no rosto da terra era a cicatriz do golpe que arrancou o olho d’água. Ainda há sol e lua, nuvens e chuvas, mas o olho d’água não vê mais.
Arrancaram sem pena meu olho d’água. Por isso, há anos, protejo os olhos d’água que ainda restam no rosto belo da terra.

sábado, 26 de março de 2011

SÉTIMA POTÊNCIA

 

Percorro, neste período chuvoso, as ruas enlameadas do Engenho das Lajes. Sacos de lixo amontoados nas esquinas ou espalhados pelo chão. O esgoto das casas se derrama pelas sarjetas. Há dias, o país foi guindado à sétima potência econômica mundial, comprovada com o crescimento do PIB em 7,5%.
Encontrei algumas pessoas na rua, na Padaria do Zé, no supermercado do Roni. Comentei com alguns deles, levava comigo o Correio Braziliense, a notícia que consagrava o Brasil com a marca de sétima potência. No curso de todas as conversas, percebi que nenhum dos meus interlocutores tinha ideia do que fosse o índice 7,5%. Ao serem questionados sobre esse percentual, um deles arriscou: “então, é por isso que é a sétima potência”?
Quase todos, ao final da conversa, me perguntavam: “e o que é que isso muda pra nós”?
Cirino da Silva, o Foguinho, está desempregado. Tem seis filhos de duas mulheres. Vive do Bolsa Família e reparte entre as duas. Uma delas vende cafezinho e biscoitos numa banca improvisada, durante as manhãs.
Zico Chaves dos Santos é pau pra toda obra, de pedreiro a eletricista, pintor e arrumador de bicicleta. Deixou a esposa e filhos, em Goiás, e bebe aqui o pouco que apura no dia.
Selma tem quatro filhos, é diarista três dias na semana, ao preço de R$ 20,00 ao dia. Não conta com o dinheiro do marido, que é pedreiro, tem carro ano 75 e gasta tudo com outras mulheres à beira da Rodovia BR 060.
Zequinha, 65 anos, enxada nas costas, vive de empreitas nas chácaras ao redor do Engenho. Além da família, sustenta vários netos que nasceram de ligações perigosas.
Joelsivan Pereira Neto é vigilante de um empório de material de construção, em Samambaia. Nos dias de folga é ajudante de pedreiro.
Rosa Couto Morais, Rosinha, 13 anos, está no sétimo ano do Ensino Fundamental. É uma das 30 adolescentes do Engenho das Lajes carregando gravidez precoce.
Deixo algumas sugestões dos moradores do Engenho das Lajes com quem conversei, depois do anúncio feito pelo ministro da fazenda, doutor Mantega.
“Eu acho que o governo tem que olhar pra nós. Aqui não tem emprego”.
“Olha como é que está (sic) essas rua. Uma vergonha!”
Voltei à biblioteca popular do Engenho das Lajes e continuei a leitura de FEBEAPÁ 3, de Stanislaw Ponte Preta. Em 2020, está previsto, o Brasil será a Quinta Potência Econômica Mundial. Até lá, o Engenho das Lajes espera não ser mais o mesmo.

sexta-feira, 25 de março de 2011

SÓ FALHAMOS NA EXECUÇÃO

 

Estava lendo na biblioteca popular do Engenho das Lajes, agrovila situada a 50 km do Palácio da Alvorada. Pela euforia  dos comentários de jornalistas e economistas numa importante emissora de rádio, presumi que as manchetes de jornais e noticiários de TV não falassem de outro assunto. O país foi despertado com um badalaço. O PIB cresceu 7,5% em 2010. Toda a riqueza do país está sintetizada nesse percentual. Simplificando, em 2009, a riqueza do país era igual a R$ 100,00, em 2010, subiu para R$ 107,50.
Adivinho que esse leve aumento da riqueza se deva a exportações de carne, soja, minérios, à produção e venda de carros, geladeiras, celulares, televisões, remédios, cirurgias plásticas, ao PAC I, PAC II e outros que virão. Não sei se a novíssima “contabilidade criativa” descontou, dessa riqueza toda, as perdas de 40 mil mortos no trânsito, os prejuízos das 200 cidades inundadas, as centenas de soterrados nos deslizamentos de morros, dos milhares de hectares desmatados na Amazônia e no Cerrado. O fato contábil é que, somando os ganhos da economia sem deduzir a perdas, passamos de cem para cento e sete reais e cinquenta centavos. Perdi-me nos cálculos e, na noite passada, sonhei que um logaritmo perseguia uma raiz quadrada entre as ruelas enlameadas do Engenho das Lajes.
Os governantes do Brasil, do presidente ao prefeito, desde muito tempo, adotaram um método simpático de administrar e resolver nossas dificuldades em escala progressiva: muitas boas intenções, promessas eleitorais, planos globais envolvendo 36 ministérios, programas detalhados para todos os setores econômicos, tecnológicos, culturais e sociais, projetos importantes e urgentes, entregues a empresas privadas, com bilhões de reais empilhados no orçamento invisível. A governança falha apenas na execução. Mas, no final, tudo dá certo. Para quem?
Em frente à biblioteca do Engenho das Lajes, passa muita riqueza pela rodovia BR 060, hoje duplicada. Passa. Cegonhas vão em direção a Goiás, vindas de Minas Gerais. Outras vêm de Goiás para Brasília. É o PIB passando. Há mais de vinte anos, por insistência da população do Engenho das Lajes, os governadores de turno prometem construir uma passarela para evitar atropelamentos e mortes de crianças que vão para a escola. Em vez de passarela ou semáforo, apareceu do nada um viaduto, até hoje, inacabado. Nada de passarela. As ruelas do Engenho das Lajes, no período chuvoso, ficam enlameadas. As águas sujas do esgoto, a céu aberto, se misturam com as da chuva. Nos meses secos, a lama vira pó que se junta à fumaça de milhares de carros que cruzam diariamente o povoado. Esqueci-me de dizer que o Engenho das Lajes pertence à sétima potência econômica mundial, onde 13 milhões de cidadãos não têm vaso sanitário em casa. Quer dizer...
Então, perguntei a vários habitantes do Engenho das Lajes o que sentiam na alma patriótica sendo cidadãos da sétima potência mundial. Darei o resultado em outra ocasião. Por enquanto, lendo Stanislaw Ponte Preta, pergunto-me por que temos que ser uma potência mundial? Sendo o Brasil grande por natureza, não será suficiente construirmos uma nação justa e igualitária, sem a esquizofrenia do PIB e a histeria de potência mundial?

quarta-feira, 23 de março de 2011

Stress hídrico


No Dia Mundial da Água, fui despertado com um bombardeio assustador de números e porcentagens sobre o difícil abastecimento e o possível racionamento de água. Sabemos tudo sobre os que têm muita, pouca ou nenhuma água. Sobre os grupos privilegiados que, em Brasília, gastam mais de 1.000 litros por pessoa/dia e os que usam 120, nas bordas da metrópole. Que o Brasil é um dos países mais ricos em água doce, mas está onde vive pouca gente e escassa nos superpovoamentos. Que o bioma cerrado perdeu metade de suas matas, de suas águas e de seus bichos.
A ANA (Agência Nacional de Águas), para salvar nossas cidades do racionamento de água, propõe investimentos de R$ 22 bilhões nos próximos quatro anos. Sabemos que nossos rios estão sujos, que esgotos correm soltos, que o lixo, associado às águas, consolida o dengue e outras epidemias. Especialistas deram conselhos e truques para consumir menos e eliminar o desperdício.
A Adasa (Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal) chegou mais perto do precipício e alertou: “Gente de mais. Água de menos”. Quer dizer, quanto mais gente, mais água. Quanto mais água, menos água.
O Sr. Magela, Secretário de Desenvolvimento Urbano, anunciou um novo loteamento, no Riacho Fundo II, para 20 mil pessoas de baixa renda, isto é, comprometeu 4 milhões de litros de água/dia.
Mas o toque oficial e burocrático, a coroar todas as análises mais profundas do inconsciente e subconsciente da água, determinando o diagnóstico psicanalítico do H2O, veio da Senhora Ministra do Meio Ambiente: “estamos enfrentando o estress hídrico”.
Sim, precisamos urgentemente de um sofá ou de um leito para a água. Quem sabe onde se esconderam as 10 mil nascentes que existiam no DF? Embaixo de quase três milhões de habitantes, prédios, carros, vias, viadutos, estacionamentos. O que está sendo feito para proteger as sobreviventes da catástrofe urbanizadora? Quem fiscaliza os 30 mil poços artesianos que estão provocando um deserto subterrâneo, eliminando nascentes, secando córregos e destruindo rios?
É no nascedouro que reside o segredo da água. Conheço este segredo há 30 anos e meu Sítio das Neves é dos poucos que o maneja para garantir água para todos: desmatamento zero, floresta nativa, detenção de águas da chuva em pequenas barragens.
Convido a ANA, a Adasa, a Caesb, o IBRAM, o Ibama, o Ministério do Meio Ambiente, a conhecer o segredo e revelá-lo aos agricultores grandes e pequenos para curar o “stress hídrico”.
A terapia é um complexo vitamínico de menos gente, menos consumo e, principalmente, mais produção de água, prolongando a vida dos mananciais.

domingo, 20 de março de 2011

A HISTERIA DO CONSUMO



A ênfase dos noticiários é posta nos números e nas datas comemorativas do consumo. Centros comerciais, lojas de marca, concessionárias de automóveis, lado a lado com o futebol e o carnaval, estão na mira de jornalistas e comentaristas dos acontecimentos econômicos. A histeria do consumo faz a festa da economia. Não importa a ninguém que um cafezinho custe, no Brasil, R$ 4,00, ou que as taxas de juros do crédito subam a nove ou doze por cento ao mês. Endividar-se é a lei. Não importa que 19 milhões de aposentados vivam o resto dos dias pagando dívidas do crédito consignado.
Onde residem os focos desta histeria do consumo estimulada por áulicos do governo, estrategistas do poder econômico e por fanáticos adoradores do PIB? Comece-se pelos R$ 13 bilhões concedidos aos beneficiários do Bolsa Família que os gastam no comércio local e nas redes de super e hipermercados. Esse dinheiro garante parte do feijão que faltava na mesa, e complementa o necessário para o celular pré-pago, o aparelho de som de 1.000 W, a nova TV digital, a geladeira, a máquina de lavar. Esses R$ 13 bilhões são apenas o complemento da renda existente e representam um empurrão na roda do consumo. Sabe-se que o Bolsa Família não é incompatível com piscina, carro na porta adquirido com ingressos não declarados provindos de bicos extra profissionais. Constituem o caixa dois da pobreza. Esses bilhões garantem milhares de carnês mensais e boletos das dívidas familiares, orgulho do consumidor. Para pagar o carro, desdobra-se o trabalhador em diferentes funções: balconista de dia e garçom à noite. E, para a estatística, é a diminuição da desigualdade.
Vai-se aos altos funcionários e aos postos da elite administrativa da burocracia, na qual se inclui a presidência da república, câmara e senado, câmaras estaduais e municipais, ministros de tribunais, ativos e aposentados. É ali que se abastecem de pingues ordenados os apadrinhados, a claque eleitoral, os laranjas, a linha multicor do nepotismo: filhismo, maridismo, mulherismo e penduricalhos afins, agregados em escala descendente com salários de marajás. Nomes não faltam. As primeiras páginas dos jornais os publicam com frequência sem que a indignação popular abale os fundamentos da pátria. Podem até prender “supostos” ladrões do erário por algumas horas, mas o dinheiro fica solto à espera da próxima festa badalada onde todos dançam e tudo se esquece.
Tudo isso seria inconsistente sem o apoio incondicional da sonegação contumaz. Os auxiliares indispensáveis da histeria do consumo atendem pelo nome de cheque especial, cartão de crédito, crédito em consignação, financiamento direto ao consumidor, em 12 ou 36 parcelas sem juros. Outra categoria de auxiliares terapêuticos da histeria do consumo se denomina superfaturamento, propina, obras não acabadas, desvios do INSS, falsas aposentadorias, sorte nas loterias.
Essas camadas superpostas da pirâmide econômica: bilionários, milionários, Classe A, Classe Média Alta, Nova Classe Média, a classe do Salário Mínimo, a linha imaginária da pobreza sustentada pelo Bolsa Família, a categoria escrava do zero ao meio salário, são a base e garantia da indústria desigual, do comércio desigual, dos serviços desiguais, do crescimento e do desenvolvimento desiguais.
Por isso e para assegurar a desigualdade profunda, mascarada pela fantasia política da inclusão, criaram-se sonhos incansavelmente vendidos aos consumidores. A carteira assinada por um patrão é o símbolo da estabilidade e inclusão no rebanho de consumidores, pastorado pelo sistema vertical do cumprimento de ordens. O carro, posto na rua como valor de ascensão social e, a casa própria, transformada em dívida sem fim, completam as virtudes cardeais da cidadania moderna.
Embalados por esses sonhos, arrastados por essas ondas incontidas, os cidadãos acordam dominados pela volúpia ensandecida do consumismo que contaminou, há tempos, as células mais sensíveis do organismo social: educação e saúde. As escolas privadas, da creche à universidade, dividem a sociedade em ricos e pobres, extorquem os clientes com pesadas mensalidades, enquadram alunos em uniformes exclusivos e criam absurdas despesas complementares com festas de formatura desde a conclusão da fase do ensino fundamental à colação de grau universitário. As escolas públicas, incluídas no sistema de segregação da cidadania, filhas enteadas do Estado, por serem gratuitas servem aos alunos as sobras do bolo econômico e cultural.
A saúde pública, salvo exceções que dignificam a regra, como a Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação, está entregue à extorsão dos planos de seguro ou às vergonhosas filas de hospitais semiacabados. O conceito de saúde preventiva se esconde tímido por trás de campanhas esporádicas e dispersas para combater epidemias arraigadas à cultura do lixo, da sujeira e do descaso.
A histeria do consumo nos colheu no arrastão econômico e cultural que devasta a sociedade. No comando da histeria avassaladora, os guardiões vigilantes  esperam o pequeno cidadão na maternidade para transformá-lo num consumidor contumaz. Cada passo de sua aventura existencial é bombardeado por anúncios em que ele mesmo é ator. Aos três anos, já domina os mais avançados aparelhos eletrônicos e está apto a dar lições aos anciãos que ainda insistem em buscar nas enciclopédias e dicionários o significado das palavras e o valor dos fatos históricos. O pensar filosófico e o raciocínio crítico estão sendo substituídos por soluções mágicas, práticas e rápidas, feitas de toques e cliques.
A histeria do consumo nos impõe decisões rápidas, o culto do imediato, a farra inesquecível do hoje. Amanhã, teremos o novo, o atual, o moderno e aderimos a ele por osmose cultural. A histeria do consumo homogeneíza, pasteuriza a sociedade e estabelece o critério de igualdade baseado no sagrado e inviolável direito de consumir.

sábado, 19 de março de 2011

UM NEGRO NO BRASIL


Barack Obama, Presidente dos EUA, visita o Brasil,  acompanhado de Michelle, Malia (12) e Sasha (9).
O Brasil é um país com quase dois terços de população negra ou afrodescendente. Recebe um negro, presidente de país influente e poderoso no âmbito mundial. O aparato de proteção a este negro singular, num país de negros, não tem similar na história de visitantes ilustres.
Escravizamos negros durante um longo período de nossa história pátria. Nossa polícia tem sido truculenta com seus consanguíneos. Depois da Lei-Áurea, que deu fim à escravidão, acantonamos os negros em favelas sub-humanas. Praticamos o racismo no trabalho, na escola, mas aplaudimos o negro nos campos de futebol, no gingado do carnaval ou na música que desce dos morros.
Sabemos proteger e admirar autoridades. Seja ela um presidente negro de um império em decadência, seja um presidente operário semianalfabeto, seja um presidente ou governador corrupto antes de ser deposto.
Temos alma infantil e generosa. Fazemos manha, jogamo-nos no chão, choramos amuados, mas logo voltamos aos braços do pai e ao seio da mãe.
Não tenha medo, Obama. Este é um país de negros. Enquanto você estiver por aqui, nós o defendemos e respeitamos. Respeito é bom e caro a todos nós.


sexta-feira, 18 de março de 2011

CRECHES OU ESCOLAS-PARQUES


“Nenhuma criança de zero a seis anos fora da creche” é a mais recente palavra de ordem dos governos distrital e federal no elenco das prioridades em educação. As creches aparecem como solução democrática apresentada ao público com o propósito de abrir o caminho da escola a toda a população desde o nascimento. Com essa iniciativa, o mínimo de nove anos de escolaridade será mais facilmente preenchido e, dentro de quatro anos, teremos estatísticas festejadas e aplaudidas. Com seis anos de creche acrescidos de nove do ensino fundamental, para os que chegam até lá, supera-se o número mínimo de anos dedicados à educação e à aprendizagem.
Não importa que, daqui a quinze anos, as crianças egressas deste novo modelo educativo continuem sem ler nem escrever corretamente. Nem importa que digam “latra”, “vrido”, “tauba” ou “largata” que é como ouvem em casa e que nossas escolas rurais e da periferia da metrópole brasiliense não conseguem endireitar. Nem importa  que os professores usem o plural sem esses.
Para facilitar a implantação deste brasileiríssimo modelo, que servirá de exemplo criativo para o mundo civilizado ou emergente, por que não transformar as maternidades em creche ou vice-versa? As crianças nasceriam nas creches e teriam, ali, espaço, berço, aleitamento, chocalhos, fraldas, babás, toda a bicharada e bonecas supridos pelo Estado. Seria a réplica do Admirável Mundo Novo nas mãos da eficiente pedagogia estatal operada por babás psicólogas a implantar nas cabecinhas tenras o Hino Nacional e os princípios de Ordem e Progresso. Por falar nisso, já começou a recrutamento para o futuro treinamento dessas babás? Ou o serviço será prestado por empresas terceirizadas, com pessoal especializado em trocar fraldas e esquentar mamadeiras?
Teremos, é natural neste país, creches tipo A para a nova classe média, incluída no sistema de consumo e que precisa garantir a renda para pagar o carro, a passagem aérea e a viagem à Disney em  prestações a perder de vista. Creches tipo B para empregadas domésticas, diaristas, mães solteiras, caixas de supermercado, varredoras de rua e as múltiplas categorias de trabalhadores de empresas terceirizadas. Se os formuladores desta nova política educacional, tratada com urgência e metas definidas, observassem o funcionamento de escolas primárias, ditas de ensino fundamental, em Santa Maria, Recanto das Emas ou Engenho das Lajes, todas na periferia de Brasília, a 50 quilômetros do Palácio do Planalto ou do Buriti, a decisão seria outra, sem menosprezo das creches.
Uma política educacional não começa pela projeção do número de escolas ou creches. O primeiro passo, na escala de importância, é o recrutamento da elite estudantil, isto é, entre os que mais se destacam no processo de aprendizagem, para sua preparação ao magistério, acenando para uma remuneração competitiva à de outras profissões e com etapas de aprimoramento contínuo, como no Chile ou Finlândia. O investimento profissional precede o investimento material e este depende daquele. Sem essa arrancada inicial, todo o processo educativo se esfacela pelo caminho com remendos e tapa-buracos como é, hoje, a educação neste país.
Um segundo passo, proposto com a construção de Brasília e defendido ardentemente pelo pioneiro médico pediatra Ernesto Silva, é a demarcação do espaço físico onde se gesta a aprendizagem e a ensinagem. A escola-parque é um modelo próximo ao ideal que soma natureza, liberdade, amplidão espacial e ambiente propício à fixação dos fundamentos intelectuais, culturais e morais das gerações presentes. É o contrário dos muros apertados dos bunkers escolares de hoje.
Conheço bem o Centro de Ensino Fundamental da Agrovila Engenho das Lajes, na periferia de Brasília, fundado em 1966, onde 420 alunos se amontoam nas estreitas calçadas cercadas de muros altos a impedir que os olhos vejam mais além. Por que tamanha sovinice com o espaço das escolas públicas? A liberdade educativa é prisioneira da insensibilidade dessas políticas erráticas. A escola do Engenho das Lajes, como milhares de outras, muitas delas vizinhas do poder maior e do centro de decisões políticas, está entregue a sua própria sorte, desconectada de Brasília e do mundo. Nesses quarenta anos, sequer pensou-se em dotá-la de biblioteca. Essa lacuna foi preenchida por iniciativa popular, sem ter encontrado o mínimo gesto de simpatia por parte da Secretaria de Educação do DF. Segundo informações colhidas entre pais e mestres, a maioria das crianças que terminam a nona série não prosseguem os estudos. Centenas de jovens começam cedo o caminho da jogatina, da bebida, das drogas. E o número de meninas que engravidam aos 13 ou 14 anos cresce assustadoramente nesse povoado. Essas crianças, filhas da precocidade e da ignorância, também precisarão de creches para que as jovens mães não interrompam seus estudos ou ganhem a vida como diaristas.
Conceda-se, teoricamente, um grau de importância às creches, com todas as restrições de seu funcionamento. Porém, é preciso dar o grau de urgência para o aspecto essencial da educação em nível de excelência igual para todos os cidadãos. Impõe-se a transformação dos bunkers escolares existentes na periferia da metrópole brasiliense em escolas-parques. Grande parte das dificuldades sociais e profissionais será resolvida, com ou sem creches.

quarta-feira, 16 de março de 2011

CONTROLE OU DESCONTROLE



Ouvi, durante quatro horas, análises, propostas e depoimentos de especialistas orientados a sanar graves distorções no crescimento da urbanização do Distrito Federal. Como, nesses eventos, a participação do cidadão é limitada a ouvir e aplaudir, reproduzo aqui o que gostaria de ter dito lá. A expansão da área metropolitana de Brasília se estende além das fronteiras que separam o DF dos estados de Goiás e Minas Gerais, o que torna complexo o planejamento urbano envolvendo administrações independentes.
Brasília, como polo de desenvolvimento regional, desbordou de suas funções de capital federal, centro do poder e de decisões políticas. Atraiu imigrações heterogêneas que se instalaram dentro e fora dos limites geográficos do DF. Criaram-se núcleos habitacionais (cidades satélites ou bairros) em volta do Plano Piloto que concentra mais de dois terços das atividades burocráticas e dos serviços gerais à população. O superpovoamento extrapolou os limites estreitos do DF, em círculos centrífugos, ocupando espaços de forma desordenada, à revelia do planejamento urbano-rural. Hoje, menos de um décimo da área do DF está disponível para ocupação urbana. A quase totalidade da área é restritiva à ocupação.
A lógica da ocupação, pressionada pela forte imigração em torno da capital, se estabelece pelo deslocamento e mobilidade espacial e horizontal na direção centro-periferia. O custo do assentamento expulsa os habitantes de menor poder aquisitivo para pontos mais distantes e também com menor acesso aos serviços urbanos. Produz-se um transbordamento espontâneo e sucessivo para fora do centro urbano da metrópole, mas dependente dele, onde se concentram os serviços, os locais de trabalho funcional, e a oferta de empregos temporários ou permanentes. A concentração da população no perímetro do Plano Piloto dobra e triplica nos dias de semana, pressiona a prestação de todos os serviços e congestiona o tráfego por falta de transporte público racional e eficiente.
À luz do pessimismo, diante dessa lógica desumana de metropolização aguda do DF, há evidências de que, há vinte anos, a expansão  populacional sobre o espaço físico, está fora de controle. As invasões, o retalhamento de terras, a especulação imobiliária giram como rodas soltas na contramão das leis e dos controles.
À luz do otimismo, é preferível admitir que seja possível balizar critérios e estabelecer normas para controlar, inibir e até interromper a ocupação indiscriminada da região, ainda que com um atraso de vinte anos.
Existem meios, equipamentos técnicos, instituições públicas, conhecimentos acumulados e especialistas para determinar a capacidade de suporte da área física relativa à quantidade de pessoas por metro quadrado e o impacto mútuo natureza/homem. A capacidade de suporte indica os limites de prestação dos serviços básicos demandados pela população: água, alimentos, energia, transporte, educação, saúde e outros, necessários à organização social e econômica da população, ao uso dos meios de produção rural, industrial, lazer e à forma de ocupação do espaço.
O DF, situado no Planalto Central, está sentado sobre um vasto divisor de águas, com milhares, mas frágeis nascentes. Essas águas humildes, escondidas na amplidão quase invisível do cerrado não despertaram nos administradores da riqueza hídrica a sensibilidade merecida para determinar critérios rígidos de sua utilização, como fez Israel com o rio Jordão.
Saiu-se em busca das grandes águas para abastecer grandes populações. Esse equívoco de análise e decisão ocasionou a destruição de grande parte das dez mil nascentes registradas por fotos de satélites. Milhares delas, irrecuperáveis, soterradas sob rodovias, viadutos e construções públicas e privadas. A urbanização é uma forma explicita de desertificação.
Chegando ao limite da captação de água pelo indiscriminado processo de povoamento, a alternativa foram os rios que circundam o DF: Santo Antônio do Descoberto, Santa Maria, São Bartolomeu, Sobradinho e, agora, Corumbá, a 150 km de Brasília. O desprezo pelas pequenas águas se estende às chuvas abundantes do período invernal que se perdem morro abaixo. Agrava-se essa indiferença pelas nascentes com a leviandade da perfuração de poços artesianos, hoje estimados, no DF (IBRAM), em 30 mil, dos quais só 4 mil possuem autorização e registro. Não é apenas o deserto exterior que se está provocando com a urbanização descontrolada. Cria-se, ao mesmo tempo, um deserto subterrâneo, dado o número de poços desativados por exaustão do lençol freático. O conceito de sustentabilidade, termo indispensável nos documentos oficiais e políticos, foi abolido pelo comportamento dos cidadãos e pelo descaso ou incompetência dos responsáveis e fraqueza das instituições.
Percebe-se que o planejamento urbano é inconsistente se desacompanhado do planejamento rural. A área rural deveria cumprir  a função de reserva legal para proteger o espaço de preservação da metrópole em expansão. Transformar o que resta de área rural, matas ciliares ou de galeria e veredas em reservas e parques naturais impõe-se como dever do Estado e do cidadão.
Esses critérios e medidas deveriam ser complementados com a detenção e armazenamento de águas da chuva em galerias subterrâneas em todos os núcleos habitacionais da metrópole. Essas reservas de água serão utilizadas no período seco para irrigação de gramados e jardins, limpeza de ruas e praças. Salvariam Brasília da secura por meio de chafarizes, sem tocar nas águas tratadas que agregam enormes custos sociais. As águas da chuva são gratuitas. Temos engenheiros competentes, equipamentos adequados e dinheiro suficiente que se evade pelos canais da corrupção.
Em vez de gastar bilhões de reais enterrando mortos, reconstruindo casas, vias, pontes e viadutos, estaremos andando na direção da natureza que nos dá de graça a fonte da vida. Do contrario, ela nos cobrará com sofrimentos inúteis a imprudência, a ignorância, a ganância, a irresponsabilidade.

domingo, 13 de março de 2011

Ninguém sou eu


Os dias ficam curtos e silenciosos.
Passam horas vazias.
Desejos confusos seguem os ponteiros e se chocam nas badaladas dos sinos.
Um vento dissimulado sopra em minhas costas.
Meus cabelos voam e os pensamentos me escapam.
Flores se escondem por entre os ramos da barriguda e os beija-flores pairam no ar diante delas, espetados na corola.
E eu, aqui, confuso, olhando nuvens que se fundem e desaparecem na tempestade.
A chuva cai.
A enxurrada leva as mazelas da cidade para os esconderijos das bactérias.
Lava as folhas. Gotas brilham à luz moribunda de lâmpadas amarelas.
Quem é você? Pergunto-me sem responder.
E, nesse momento, a moça que conduzia o Cocker no laço olhou-me assustada.
Eu não era ninguém. Um fantasma apenas a murmurar perguntas metafísicas.
Os astros giram e eu, na casca de um deles.
Um hiperbóreo recém-amanhecido na Aurora Boreal.
Uma sombra perdida nas cores do arco-íris.
Que nota musical é essa que saiu daqueles olhos?

quarta-feira, 9 de março de 2011

TERRA DA ABUNDÂNCIA E DO DESPERDÍCIO


Vivemos numa terra abençoada pela natureza em que se plantando tudo dá e em não se plantando também dá. A generosidade do brasileiro nos vem dessa abundância  pródiga com tal força que o desperdício se torna uma virtude a contrariar a sovinice. Vi meninos pedirem comida nas mesas de bares e jogar fora metade da pizza. Vi, em mesas fartas, clientes deixarem sistematicamente parte da comida no prato e, outra, na travessa que volta à cozinha e, dali, à lata do lixo. Se quiser horrorizar-se com o desperdício, entre numa churrascaria famosa de qualquer cidade brasileira.
Dizem as informações oficiais sobre colheitas de supersafras agrícolas, com  máquinas modernas, que um terço do produto se perde pelo campo, pelas estradas, nos armazéns. Antigamente, quando o trigo, a aveia, o centeio eram ceifados a mão, permitia-se aos de pouca terra respigar os campos. Essa época da economia foi superada pela alta tecnologia do desperdício. Há uns trinta anos, administradores de cooperativas indianos vieram conhecer a região cafeeira da Alta Paulista. Voltaram escandalizados e penalizados com as toneladas de mangas que apodreciam no chão, invadidas por moscas e mosquitos.
A abundância e o desperdício nos tornam indiferentes e descuidados com o dia seguinte e esquecidos do dia anterior. Não precisamos de memória  histórica. Os fatos se renovam amanhã, mais numerosos e com mais riqueza de detalhes. Dos assassinatos à esperteza da corrupção. Convive-se, portanto, com a abundância e com o desperdício. Confia-se na abundância da terra e na dos ricos que a acumulam. Parte desse desperdício alimenta os pobres risonhos e conformados.
A abundância é também de gente, não só de terra e água. Desperdiça-se gente, o melhor patrimônio de um país. Gente sobra nos campos e nas cidades e,  como na colheita do centeio, respigam-se empregadas domésticas, diaristas, catadores de lixo, cuidadores de carros em estacionamentos pagos, serventes de pedreiros e dezenas de outras subatividades rurais e urbanas. Nesta terra da abundância, nossos planos e programas políticos de governo se adaptam a ela e ao desperdício, acrescidos de farras contínuas e inescrupulosas com o dinheiro público. Sobra dinheiro para todos. Imensos salários para deputados, senadores, ministros, governadores, presidentes e diretores de empresas públicas, e salário mínimo para os respigadores, bolsa família para os filhos da abundância e do desperdício.
Tudo é grande e imenso nesta terra do pau-brasil. Corre por ela mais de um décimo de toda a água doce do planeta em rios longos e profundos ou repousando em lagos magníficos. Nossas florestas, as que ainda restam, são celebradas como os pulmões vegetais da natureza. O país, pelos 850 milhões de hectares, é dito continental, banhado por quase 8 mil quilômetros de praias amenas. Tudo aqui é grande e imenso e com muita, muita gente. Nem temos medo da superpopulação do país nem do superpovoamento das cidades. Já nos contentamos com 4,2 hectares por habitante, contados os rios e as florestas, nem nos assusta a redução constante do espaço de  cada cidadão. Nem admitimos, se nos ocorre pensar, que é a superpopulação uma das principais causas da injustiça e da desigualdade. É utópico, se não irônico, jogar a culpa sobre a desigual distribuição da riqueza. Real é admitir que não há capacidade instalada de administrar superpopulação e não se vê no horizonte avanços nessa direção. Um exemplo só. Para a camada rica da população oferecem-se apartamentos de 200 a 400 metros quadrados. Para outra, na periferia suburbana, casa ou minúsculo apartamento de 32m2 para família de cinco pessoas. A opção política e religiosa pelos pobres considera suficiente uma ajuda caridosa que os mantenha no limite da linha imaginária da pobreza.
Abundância e desperdício somam-se para aceitar e administrar democraticamente as desigualdades. Volto-me apenas para o uso da água abundante vinda de fontes, de rios e das chuvas. Nos bairros afluentes de Brasília, Lagos Sul e Norte, Condomínios de luxo (os Alfa Ville), o nobre cidadão, sentado sobre 10 mil m2, com quadra de esporte e piscina, possivelmente com poço artesiano irregular, consome 600 litros de água por dia. Nos bairros da periferia, onde as condições de higiene são precárias, o contribuinte mal chega a 90 litros por dia. Onde se evaporou a abundância de água de nossos rios e das chuvas torrenciais? Os fenômenos naturais não discriminam nem escolhem espaços para se manifestar. Apenas precisam de espaço. Quando seus espaços são invadidos, as consequências são anunciadas, embora não ouvidas. Ai, estão centenas de cidades debaixo das águas sujas dos rios transbordados.
O superpovoamento das cidades, empurrado pela desigualdade e injustiça, fruto da inépcia política, confiante na abundância e desatento ao desperdício, tomou os espaços dos fenômenos naturais que, em nosso país, são também grandes, soberbos e espetaculares. Quais são as soluções para atender a superpopulação em nome do combate à desigualdade e da opção pelos pobres? Longas avenidas, túneis, viadutos gigantescos da engenharia ousada. Agora, em Brasília, propõem-se estacionamentos subterrâneos, decorados com centros comerciais, lojas de conveniência, restaurantes e bares, creches, salas de cinema, teatro e música.
Não duvido que este país da abundância encontre dinheiro e empreiteiras para furar o chão e criar uma nova capital subterrânea. Temos engenheiros ousados e competentes, arquitetos coroados de fama internacional, milhares de desempregados em busca do salário mínimo que executarão essa façanha imobiliária com reflexos positivos na curva do PIB, o mágico guia da economia neossocial-capitalista.
 O regime de chuvas no Planalto Central é sistemático. Divide o ano em duas estações: a seca e a chuvosa. Cinco a seis meses de umidade semelhante à de um deserto e, outros tantos, de chuva. Sobre a área do Distrito Federal (5,822 km2 ), caem, no período chuvoso, 1.500ml, isto é, aproximadamente, 87 bilhões de litros o que representa, hoje, média de 160 litros por habitante/dia. Para onde vai toda essa água? Para os córregos, rios e lagos levando a sujeira da cidade.
Usando sabiamente a inteligência, aproveitando a abundância das chuvas e reduzindo razoavelmente o desperdício, salta aos olhos que se devam construir galerias subterrâneas para armazenamento de parte dessas águas e usá-las no período seco para amenizar os efeitos da baixa umidade. Chafarizes e irrigação por aspersão manteriam nossos gramados verdes e coloridos os canteiros de flores.
A mesma tecnologia, os mesmos engenheiros competentes, as mesmas empresas especializadas para abrir estacionamentos subterrâneos, os mesmos desempregados em busca do salário mínimo seriam convocados a construir galerias de reserva de água da chuva. Temos dinheiro abundante e desperdiçado, tecnologia invejável, água em abundância e subsolo sem limites.
A água é essencial e sobrepõe-se à importância do carro e à urgência do estacionamento.

domingo, 6 de março de 2011

PRODUZIR ÁGUA: NASCENTES

Insisti por quase dez anos, desde a publicação de meu pequeno livro bilíngue, O Retorno das Águas, ampliado com A saga de um Sítio, para que órgãos oficiais de controle e fiscalização ambiental fossem a meu pedaço de cerrado, onde aplico técnicas simples para proteger as nascentes e produzir água. Produzo água, embora nem o Ministério da Agricultura, nem o de Desenvolvimento Rural, nem o INCRA considerem água como produto de uma propriedade agrícola. O proprietário de uma área cuja atividade seja produzir água terá sua propriedade considerada improdutiva, sujeita a desapropriação para reforma agrária, além de uma cobrança irracional do ITR. Produzir água quer dizer preservar o pulmão de uma cidade, garantir oxigênio e expor as belezas naturais de uma região.
Mandei mensagens à Agência Nacional de Águas (ANA), à Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do Distrito Federal. (ADASA), ao Ministério do Meio Ambiente. Elas se perderam nos meandros da burocracia tumultuada de órgãos superpostos e confusos.
No dia 4 de março, o Instituto Brasiliense Ambiental (IBRAM) mobilizou um grupo de técnicos para proceder a uma vistoria minuciosa dos trabalhos executados durante dezenas de anos na construção de pequenas barragens para conter e deter águas da chuva. O objetivo dessas obras é favorecer a infiltração das águas no solo e assegurar melhor recarga dos aquíferos. A vistoria obedeceu a procedimentos para concessão de Reserva Legal e definição de Área de Proteção Ambiental (APP).
Parece difícil, se não impossível, para boa parcela de administradores de serviços públicos coordenarem e equilibrarem simultaneamente três pesos: o essencial, o importante e o urgente. O que aparece aos olhos do cidadão é o tumulto administrativo. Uma grande confusão de obras que apontam ora ao urgente, ora ao importante, segundo os que decidem. Não raro, o urgente se sobrepõe ao importante. E é comum o importante se tornar urgente pela desídia e inapetência dos planejadores. O essencial é, mais das vezes, nem importante, nem urgente a julgar pelos atos administrativos e pelas justificativas políticas.
Se os gestores públicos dessem à preservação dos mananciais o mesmo peso das discussões e ações que se concede à inflação, ou ao crédito de consumo, ou à taxa de câmbio, os resultados na vida dos cidadãos seriam muito mais racionais e sólidos. Teria o efeito de uma revolução filosófica. Um experimentado político colombiano dizia que o mais difícil é pôr-se de acordo sobre o essencial. O que é essencial? O essencial, como a água, de tão óbvio parece entregue à própria sorte, por isso poucos se ocupam dele. Água? É um desses óbvios ululantes. É evidente que ninguém subsiste sem água. E para-se nesse axioma. Água é essencial. E só. O resto sai da torneira.
Para os romanos, a água era essencial e nos deram os gigantescos aquedutos. Engenharia, arquitetura, arte para homenagear a água. Eram represas ambulantes, flutuantes no espaço. As “fontane” de Roma e de outras cidades pelo mundo imperial romano expressavam o elemento essencial da urbe. Da água dependia a saúde da população. Água no corpo. Água na urbe. Águas nas Termas de Caracala.
Já antes de nossa era, as margens do rio Tibre, que atravessa Roma, sujeito a transbordamentos na primavera por efeitos da chuva e do derretimento das neves, eram respeitadas e temidas. Só a aglomeração consecutiva por imigrações e conquistas e o superpovoamento da urbe, mais recentemente, empurraram a população à beira do rio. Roma recolhia as águas usadas e os dejetos em cloacas subterrâneas, longas galerias compartimentadas de decantação de sólidos.
A proteção de mananciais de onde colhiam as águas de fontes, no alto das montanhas, diligentemente trabalhadas com barragens de pedras. Aquedutos de dezenas de quilômetros, muitos deles sustentados na base por colunas e arcos romanos. A tecnologia atual e a engenharia das águas se, por um lado, abriram um leque de fontes de captação, como rios e aquíferos subterrâneos, para abastecer grandes populações, por outro, descuraram das nascentes, as esqueceram ou as destruíram.
Há que voltar a elas. A nascente é o começo do rio e a base essencial das represas gigantescas. O desprezo às nascentes é uma das causas das inundações nas cidades, do desmoronamento e deslizamento de montanhas. As mortes por soterramento são o preço que se paga pelo uso irracional da tecnologia. Confia-se mais na técnica da engenharia e no uso indiscriminado da natureza do que nas leis físicas implacáveis.
Quem sabe onde começa o Rio São Francisco ou o Iguaçu? Tenho o orgulho ambiental de informar aos que me leem que uma das humildes nascentes do rio Paraná está em meu Sítio das Neves, no Distrito Federal. Ela despeja água limpa no Ribeirão das Lajes, que deságua no rio Santo Antônio do Descoberto, que enche o Corumbá, que entra no Paranaíba, que forma o Paraná e repousa no Mar del Plata.

terça-feira, 1 de março de 2011

ÁGUAS ABAIXO


Perguntam-me, por vezes, de onde provém meu interesse pela contenção das águas da chuva, sendo eu sociólogo e escritor. O assunto, como se sabe, é pertinente a biólogos, geógrafos e geólogos. Um jornalista me telefonou, certa ocasião em que se discutia a ocupação ilegal do Jardim Botânico, em razão de um depoimento que fiz, por correio eletrônico, a um jornal da cidade de Brasília. Diante de minhas respostas sobre o risco de perdemos os mananciais daquela área com o povoamento descontrolado, afetando com isto a fauna e a flora do Jardim Botânico, ele me perguntou se eu era biólogo.
– Não, sou sociólogo, respondi.
– E por que se interessa pela água?
Permaneci mudo por alguns segundos e lhe disse que a água devia interessar a todos. O entrevistador prometeu contatar-me, mas nunca mais telefonou. Ignorou minhas respostas. Eu não sou biólogo.
Hoje, eu lhe diria que me interesso por todas as águas e especialmente pelos ¾ de água que transporto em meu corpo. Meu corpo é uma sanga que corre pelas ruas entulhadas de carros de minha cidade. Uma passeata de protesto pela Esplanada dos Ministérios é uma inundação. Uma área invadida por 70 mil pessoas, como no bairro Vicente Pires, é igual a um transbordamento, uma enxurrada arrasadora diária de 1,980 mil litros de água, ao volume médio de 28 litros por corpo. E, para repor essa água que 70 mil habitantes levam no corpo, são usados 14 milhões de litros diários, estimando-se o consumo de 200 litros por pessoa.
Como, então, não se preocupar e se ocupar da água? E o que escapa ao cidadão, seja ele jornalista ou engenheiro, é que essa água toda, todos os dias, volta suja aos córregos e sua evaporação infecta o ar que respiramos. A água limpa da chuva tem a virtude de manter limpa a água do corpo.