segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

OBELISCO E ÁRVORES

Brasília, depois do projeto de obelisco proposto por Oscar Niemeyer, despertou com o barulho de dezenas de arquitetos que pareciam anestesiados diante das diatribes das construtoras.
Geógrafos, sociólogas, antropólogos e cidadãos comuns para quem Brasília foi construída são marginais nessa quase decisão de levantar na Esplanada dos Ministérios mais uma obra do gênio da arquitetura brasileira.
Enquanto isso, arvores são abatidas diariamente pelas motosserras do Departamento de Parques e Jardins, sem que a voz de biólogos se imponha à ditadura de chefetes administrativos manipulados por síndicos de edifícios, comerciantes obtusos, proprietários de carros e cidadãos displicentes.
Onde estão os arborologistas para humanizar com o verde e o oxigênio a frieza dos vazios, a impenetrabilidade dos asfaltos de avenidas e viadutos, a secura dos edifícios?
A inteligência humana parece tão frágil e indefesa quanto as árvores derrubadas pelos funcionários do Departamento de Parques e Jardins.
Qual é a função, afinal, do Departamento de Parques e Jardins de Brasília?

MONUMENTO CAÍDO

O arquiteto centenário Oscar Niemeyer convulsionou o mundo de arquitetos e a opinião pública cidadã com seu projeto de Praça da Soberania. Sugeriu a construção de um obelisco monumental na Esplanada dos Ministérios.
Poucas vezes, na história da arquitetura mundial, um monumento foi derrubado antes de erguer-se.
Aos petardos do bom senso juntaram-se os mísseis da ironia, os bombardeios da indignação, os tiroteios da crítica severa.
Não faltaram as palavras de conforto, os lenitivos para a depressão, os lenços para as lágrimas e pílulas tranquilizantes para a inevitável decepção do arquiteto centenário diante dos escombros de sua obra não levantada.
Que orgulho eu sinto da fortaleza de ânimo e firmeza de caráter do brasiliense diante da morte de um monumento anunciado.
Temos, na Esplanada dos Ministérios, um monumento insepulto. Em seu lugar ficou um vazio monumental. Diria até que o monumento invisível provocou um vazio soberano.
Nesse vazio imenso, podemos erguer muitos sonhos e povoar de muitas esperanças as paredes do horizonte. Nesse vazio soberano cabem centenas de plantas e bancos de praça para ler, pensar e ver a banda passar.
Poucas vezes, na história de Brasília, um vazio tornou-se tão imenso.
Poucas vezes esse vazio recheou-se de olhares curiosos que se deleitam de dia com o Sol e, à noite, com a Lua e o piscar das estrelas.
Niemeyer aprecia a amplidão dos vazios para enchê-los com suas aventuras arquitetônicas. Eu prefiro os vazios cheios da natureza para admirá-los e sentir sua força. Penetrar neles como numa caverna do tempo e perder-me no espaço livre.
Nesse vazio monumental caberemos todos e construiremos dentro dele a humanidade.

E AGORA, PEDRO?

Mateus, depois do enterro de Jesus, patrocinado pelo banqueiro Nicodemos, chamou o experiente pescador a um lado, pôs-lhe a mão no ombro, olhou-o firmemente no rosto:
− E agora, Pedro? − indagou-lhe, na espera de uma resposta encorajadora. Sem Jesus, como é que ficamos? Quando essas massas famintas vierem cobrar pão e peixe, que faremos?
Jesus voltou para o céu e a humanidade continuou comendo o pão que o diabo amassou.
Sindicalistas e intelectuais que ouviam e liam Marx profetizando sobre capitalismo e comunismo, perguntavam-se, à beira do túmulo, como subsistiria a revolução dos trabalhadores unidos sem ele e que rumo tomaria o mundo.
Os seguidores de Lênin temiam a trajetória da Revolução Russa depois de seu desaparecimento. Stalin e companhia encarregaram-se de pôr as bases de sua derrocada. Durou menos de um século.
Os cardeais do Vaticano afligiam-se com a iminente morte de Pio XII. Como ficaria a igreja católica sem ele? João XXIII provou que um papa camponês, comendo feijão com arroz, não precisa de muitos dogmas para rezar a ave-maria. Rafael, Miguelangelo e Leonardo da Vinci fizeram mais pela solidez da instituição católica do que a maioria dos papas.
Os generais que cercavam Hitler não podiam conceber um mundo sem sua presença carismática. Depois dele, a humanidade voltaria às cavernas. Foram desmentidos por Angela Merki.
Hoje, a humanidade parece perguntar-se como será a economia mundial sem o capitalismo financeiro e o frenesi do consumismo.
Como será o mundo daqui a cem anos, quando ninguém de nós estará vivo?
Diga-me, Pedro de Montemor, que falta faremos aos sobreviventes do ano 2110?
E se a humanidade desaparecer no ano 2507, quem dará água à última planta que sobreviveu à fúria imobiliária?

NÍVEL ÓTIMO DE CORRUPÇÃO

Desde dezembro passado não me encontrava com Pedro de Montemor. Surpreendeu-me com uma questão intrigante:
− Qual é a medida aceitável de corrupção? Em outras palavras, qual é a altura máxima da corrupção que mova alguém, o Presidente da República, por exemplo, a gritar de dentro de seu palácio: Basta! Chega! Nem mais um centavo!?
Lembro roubos do erário, apropriação indébita, peculato, comissão de negócios com dinheiro do contribuinte, saques em contas bancárias, negociação de cargos, compra e venda de pareceres jurídicos, indenizações forjadas e aposentadorias por suposta perseguição política, remessa de dinheiro a bancos nas Ilhas Caimã. E ainda, o favorecimento de contratos e fraudes em licitações, superfaturamento na compra de equipamentos hospitalares ou escolares e uma dezena de outros artifícios, que a cabeça humana gera nos corredores do poder legitimamente constituído, fazem parte do dia-a-dia do mundo da corrupção.
Esse extenso rosário de atos ditos ilícitos, praticados à luz do dia e diante dos olhos dos cidadãos, é desfiado ininterruptamente. O dia de 24 horas ou a semana de sete dias não são suficientes para capturá-los e denunciá-los todos ao mesmo tempo.
− Por isso, concluiu Pedro de Montemor, a polícia os denuncia e prende por grupos escalonados. Nem a polícia tem efetivos para prendê-los todos num mesmo dia, nem as salas do judiciário são assaz amplas para recebê-los e julgá-los. Sem falar no déficit de vagas nas penitenciárias de alta periculosidade.
− É preciso esperar, agreguei, que uma turma seja ouvida para dar lugar à outra. Há que se levar em consideração a fértil criatividade dos bacilos corruptores. Suas espertezas e astúcias confundem a inteligência policial e a despistam com novos truques que a própria legislação desconhece ou encobre.
Como penetraram esses bacilos corruptores nas altas esferas da administração dos governos e de organismos coadjuvantes? Montemor acredita que a porta de entrada mais comum é o concurso público. Os aprovados sentem-se no direito de administrar os orçamentos a seu favor. Mas há os que adentraram as repartições e alcançaram as rubricas do orçamento pela via de amizades sólidas. Foram companheiros de escola primária, de sindicato, de campanhas políticas, de bar, de churrascos regados a boa cachaça, de peladas dominicais. São, portanto, pessoas de confiança das autoridades eleitas pelo voto e que lhe emprestam parte do poder para se corromper.
Os assessores e ministros do Presidente da República, denunciados, julgados, demitidos por falcatruas, achavam que seus ilícitos honrariam o amigo de tantos anos. E o fizeram sem consultá-lo, como surpresa de aniversário. O Presidente, nesses casos, não sabia da farra que lhe estavam organizando na sala ao lado, nem desconfiou dos misteriosos telefonemas que esquentavam os aparelhos de comunicação gravados pela empresa telefônica. Soube pelo alfaiate, depois da festa, pois ler jornais lhe dá azia, que seus ministros já não são ministros e assessores não frequentam mais os gabinetes contíguos. Eles se licenciaram para concorrer ao posto de deputado em busca de imunidades.
− Quais os sintomas da corrupção?, indagou-se Montemor
A corrupção assemelha-se a uma doença silenciosa como a hipertensão. Nem o paciente percebe sua enfermidade. O corrompido e o corruptor, de repente, causam um estremecimento no corpo financeiro e econômico do banco, do ministério, da Casa Civil e a sociedade toda se abala.
Só depois do ACV – ataque às contas do vizinho − é que o pronto socorro policial, jurídico e fiscal emite o laudo provisório: há suspeitos de fraude, ou roubo, ou ....Milhões de dólares que emigraram do inferno brasileiro pediram asilo a um paraíso fiscal. Outros milhões passaram de mão em mão, ou esconderam-se em malas, meias e cuecas. Apartamentos de luxo, casas na praia, chácaras de repouso nas montanhas de São Paulo ou Minas Gerais se relacionam com esses suspeitos, mas um juiz probo liberta as vítimas da chamada prepotência policial. Mansões alugadas para negociar as promissórias do poder, aviões e helicópteros para uso familiar, iates para lavar o dinheiro na água salgada são arrolados aos processos, mas não provam nada.
Às vezes, a corrupção exige o sacrifício de alguns implicados que reclamam da repartição discriminatória e desigual do roubo. As mortes não têm criminosos. Versões se contradizem e o morto assiste a tudo calado. Aos corruptos, a MP − medicina pública − receita comprimidos e a hipertensão é normalizada por algum tempo.
No dia seguinte ou nos anos subsequentes, os corruptos aparecem nas páginas de revistas e jornais, dão entrevistas na TV, frequentam casamentos e aniversários da elite, candidatam-se a vagas no Congresso ou à governança de estados e municípios, são eleitos e empossados.
− Não há, então, um nível ótimo de corrupção acima do qual seria inaceitável? − indaguei em voz alta.
Montemor opina que é indefinido o ponto de ruptura a partir do qual a corrupção perderia força ascendente e entraria na área de risco e falência.
− Há dois antídotos preventivos da hipertensão corruptora, disse ele, que, se aplicados no corpo da sociedade, poderiam reduzir a baixíssimo nível os ímpetos da corrupção. Um deles é a punição exemplar do corrupto. Como se sabe, a impunidade é a mãe biológica da corrupção ativa e passiva. O juiz que não pune, o empresário que não pune, uma justiça que busca asas no ovo para eximir-se de responsabilidades, a polícia que encobre crimes de seus superiores, todos são igualmente corruptos, beneficiados pela impunidade. Outro antídoto é a educação do cidadão para o respeito de todos os bens alheios, públicos e privados. O saleiro da mesa do bar, um lápis da repartição ou local do trabalho, um livro da biblioteca comunitária, o guarda-chuva esquecido no banco são itens tão importantes para a educação quanto os bilhões do erário formado pelos impostos do cidadão.
Por falta do uso desses antídotos, o cidadão comum se surpreende com milionários que surgem do nada a cada dia.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

COPINHO DE CAFÉ

A guerra exterminadora começa com o primeiro tiro. A inundação de uma cidade desordenada, com a primeira gota de chuva. A devastação de uma floresta, com a primeira árvore que tomba.
Um senhor grisalho, de bermuda, caminha lentamente pelas calçadas de Brasília, olha para um lado e para outro. Está cercado de plantas e de flores. Inspira e expele a fumaça do cigarro, coça a barriga. Num gesto inconsciente, joga a guimba na grama.
Jovens, filhos de boas famílias, estudantes de bons colégios privados, sentam-se junto às barras de ginástica, na esquina da entrequadra 406 Sul. Fazem circular o crack e a maconha. Bebem cerveja misturada com rum ou vodca. Uma a uma, as garrafas são lançadas entre as árvores, à espera dos garis que passarão amanhã.
Um homem de gravata termina o almoço no Fogão de Lenha, serve-se de cafezinho. Bebe-o andando para o carro e, antes de entrar, descarta o copinho que rola pelo chão.
Pelas janelas de automóveis e ônibus saem latas, cascas de frutas, palitos de picolé, sacolas e garrafas plásticas, fraldas de bebê.
Pichadores deixam seus sábios e contestadores hieróglifos sobre paredes brancas de escolas, igrejas, quiosques e bancos.
De repente, todos se admiram, se espantam, se indignam da barbárie de habitantes de rua que acendem fogueira e destroem azulejos de Athos Bulcão colados na parede de uma igrejinha.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

PLANOMANIA

Na cultura burocrática da administração do Estado, nos níveis federal, estadual e municipal, a tarefa de planejar é divagação ao redor de um sonho cuja realização depende do acaso.
Os números sobre os quais se debruçam os planejadores aconteceram por força do destino. Não são os previstos nos planos anteriores nem os que se diz serem. Os números e percentuais a se incluírem no plano futuro dependem de sua estatura, beleza, tamanho e do impacto emocional capaz de sacudir a alma desse ente imponderável chamado sociedade, ou opinião pública ou povão pouco afeito a milhões e bilhões.
Um número redondo, grosso, difícil de entender, tipo bilhões ou trilhões, além de fugir a qualquer controle dos serviços da fiscalização e, portanto, passíveis de se perderem pelos ínvios caminhos das obras, servirão de base ao discurso oficial e à retórica do crescimento econômico.
Não raro os planos são um roteiro seguro do que não vai acontecer no tempo previsto. Essa tática é a garantia de outro plano corretor que supera o anterior em sagacidade e esperteza. A realidade é outra, pois é dinâmica. Esse dinamismo não foi previsto. O plano, portanto, deve ser outro.
É comum esconder-se no plano a possibilidade, quando não a probabilidade, de ações contrárias à Lei Orgânica, conflitantes com a Constituição, mas concordantes com os interesses múltiplos manifestados por empresários, investidores, legisladores que recebem gentilmente a anuência, a complacência, a conivência e a cumplicidade dos administradores públicos.
O fato é que nossa cultura burocrática é fascinada e obcecada por planos e programas, acolitados por grupos de apoio, comissões de alto nível, conselhos especiais, equipes de controle e avaliação. Embora o Nordeste seja campeão de planos e programas nacionais e internacionais, prefiro mencionar a experiência vivida em Brasília e no Distrito Federal.
O arquiteto e urbanista Lúcio Costa apresentou ao presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira o magnífico projeto de construção da nova Capital e deixou, como baliza, o Plano Piloto. Usou a palavra monumental de forma consciente. Prédios, avenidas, quadras residenciais, a arborização, a natureza do Cerrado obedeceriam ao conceito de monumento a ser diariamente admirado por seus moradores e visitantes. O plano executado mereceu a distinção de Patrimônio Cultural da Humanidade, consignado pela Unesco.
O monumental foi, ao longo do tempo, se degenerando e, hoje, atinge o trivial e o ordinário. Voltamos ao casebre, ao puxadinho, à barraca. A leveza desejável do transporte coletivo, transitando entre monumentos, deu lugar a engarrafamentos nervosos que impedem os olhos de admirar a cidade-parque. Essa mudança do monumental ao trivial foi dirigida pelos subsequentes planos, cada um com sua denominação gozadora, diletante, pretensiosa.
Ei-los: Plano Estrutural de Organização Territorial do DF - PEOT (1978), Plano de Ocupação Territorial – POT (1985), Plano de Ocupação e Uso do Solo - POUSO (1986), Brasília Revisitada (1985-87), pela equipe de Lúcio Costa, diante da sanha modificadora dos legisladores, empreiteiros imobiliários; Plano Diretor de Ordenamento Territorial - PDOT, (1992), revisado em 1997 e adaptado à trivialidade imobiliária, nos estertores de 2008.
O conceito de Brasília – cidade-monumento, parque e arte – é substituído pela tendência corriqueira do crescimento urbano dominado pela volúpia imobiliária.
A cidade-monumento, no próximo plano, se restringirá à Esplanada dos Ministérios e, o gramado central se transformará num monumental estacionamento administrado por centenas de cuidadores de automóveis.

BRASÍLIA SUSTENTÁVEL

Confesso que o termo sustentabilidade me deixa confuso. Na linguagem esotérica dos planejadores e programadores públicos e de organismos privados, um empreendimento para sustentar-se, isto é, durar indefinidamente, precisa ser culturalmente aceito, ecologicamente correto, socialmente justo e economicamente viável.
Ora, Brasília não reúne, atualmente, todos esses advérbios. Por isso, concluo que nossa cidade-parque não é sustentável. Mas se a sustentabilidade de Brasília, como projeto urbanístico, depende da ocupação de todos os espaços livres para o uso imobiliário, entregue a empreiteiras com a complacência da administração pública, está no caminho certo.
Se a sustentabilidade do Distrito Federal consiste em semear condomínios ilegais para depois serem legalizados e bairros sobre mananciais para abrigar imigrantes de todo o país, ela está garantida.
Se a sustentabilidade depende da duplicação e triplicação de avenidas, da construção de viadutos, da abertura de retornos e instalação de dezenas de semáforos para a ilusória rapidez de milhares de carros, os planejadores acertaram em cheio.
Se a sustentabilidade está em arrasar o cerrado, devastar os mananciais e desertificar o solo, o alvo está sendo atingido.
Se a sustentabilidade precisa privilegiar o transporte individual e provocar engarrafamentos diários nas principais avenidas e encher o ar de dióxido de carbono, o sucesso está assegurado.
Se a sustentabilidade do Distrito Federal e de Brasília subordina-se ao desemprego de 200 mil trabalhadores para manter um exército de reposição temporal e baixos salários que garantem a desigualdade na mais bem-paga cidade, o êxito dos administradores está certificado.
Brasília, então, não é sustentável como cidade-parque e arte ao mesmo tempo. Tiraram-lhe as colunas do silêncio e a maior parte da natureza original. A Natureza reclamará, nos próximos anos, seu espaço, suas árvores, suas nascentes. As águas e os ventos assolarão os bairros mais pobres e não respeitarão os mais ricos. Nós tornamos Brasília insustentável.
Há quem ria e deboche das circunstâncias no presente e se refugia nos esconderijos da modernidade.
Amanhã, pediremos a solidariedade dos sensatos. Enquanto isso, a nau dos insensatos navega no mar fantasioso da sustentabilidade e do “controle do crescimento de Brasília”.