domingo, 30 de dezembro de 2007

CIDADÃO, CONTRIBUINTE, CONSUMIDOR

Sócrates, Platão, Aristóteles não tinham CPF nem Registro Geral de identidade. O conselho de Atenas não precisou comprovar a identidade de Sócrates com um número, para condená-lo à morte.
Pedrinho segue os procedimentos rotineiros do peito da mãe à mamadeira, do berço ao Maternal I. A matrícula no colégio lhe dá um número.
- Número da matricula, por favor.
- 55.
A pasta do arquivo contém seu histórico escolar. Pedrinho continua sendo um menino, um ente do sexo masculino.
- Sabe o número de seu RG?
-2.500.000 - SSP-DF.
Esse número tem a ver com a polícia. Servirá para pedir um relatório de antecedentes criminais, sem nunca ter cometido um crime ou para se submeter a um concurso público. Sem esse número, Pedrinho é ninguém. Quererá, mais tarde, comprar casa, abrir conta em banco, inscrever-se numa escola profissional, obter carteira de habilitação, adquirir um celular ou computador, consultar um médico? O número do RG será a chave da operação. Com ela, Pedrinho será cliente ou paciente. Entra definitivamente na categoria de consumidor de bens e serviços. Mantém inalterado o sexo masculino, por enquanto. Ele é consumidor. Natália é consumidora.
A TV tem obsessivo fascínio pelos consumidores. Hordas deles, de ambos os sexos, fazem a euforia de repórteres que nos dizem, em repetidos percentuais, quanto gastam e como se comporta a loucura dos consumidores.
- Trouxe a cópia do CPF?
Pedrinho é, agora, contribuinte pessoa física. Diferente do consumidor, contribuinte não tem sexo definido. É hermafrodita. A Receita Federal, o famigerado fisco, se dirige ao cidadão brasileiro em termos formais e impessoais: senhor contribuinte. A única distinção de gênero que o fisco aceita é contribuinte pessoa jurídica, no feminino. Talvez, por isso, a trate com menor rigor e lhe abra mil facilidades para sonegar, desviar, corromper, dobrando-se ao poder feminino, hoje em alta.
O Brasil tem quase 200 milhões de pedrinhos consumidores e natálias consumidoras e ao redor de 40 milhões de contribuintes. Os cidadãos brasileiros, graças ao regime capitalista e neoliberal de nossos governos de direita e de esquerda são postos em arquibancadas distintas: contribuintes, de um lado e, de outro, consumidores.
Para os governos, as atenções maiores se dirigem aos contribuintes. A conversa é com eles. A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, segundo a ministra plenipotenciária do Palácio do Planalto, só afetava os ricos, os que têm CPF e gorda conta bancária. As legiões de pobres do programa Bolsa Família são consumidores secundários e eleitores principais. Por mais empregos que se criem, os clientes do Bolsa Família aumentam. Eles não mandam no país, mas elegem. Pertencem à maioria dominada pela minoria, mesmo quando escolhem um dos seus para presidir a Nação.
Eis a que ponto nos leva a substituição do nome do cidadão pela identidade impessoal de contribuinte ou consumidor. Tornamo-nos joguetes na mão prestidigitadora das estatísticas.
A demagogia democrática seguirá conclamando pedrinhos e natálias a serem fiéis consumidores e contribuintes para a grandeza do país.

PAIS DE METONÍMIAS, ALEGORIAS E EUFEMISMOS

Na informação rotineira dos fatos, acostumamo-nos à ineficiência dos que administram serviços públicos e privados, à displicência e aos gastos perdulários que já não damos importância se uma obra custou um ou dez milhões de reais. Qualquer obra, acima de um milhão é incontrolável.
Um roubo praticado por senadores ou deputados, fiscais da Receita ou funcionários da Previdência, só vem a furo quando ultrapassa os R$ 500 milhões. A displicência se generaliza de cima para baixo, garantida pela impunidade e reforçada por uma cascata de metonímias que governam a sociedade. As metonímias escondem o rosto dos responsáveis e difundem irresponsabilidades no exercício das multifárias atividades dos cidadãos.
São ordens do Palácio do Planalto, dizem os funcionários para a platéia brasiliense. Ou são ordens de Brasília, quando os subordinados se encontram no Acre ou no Mato Grosso do Sul. No período militar, eram ordens superiores que justificavam a prisão de oposicionistas ou a censura prévia. Quem manda no Palácio? Os desmentidos, o espírito de corpo e a proteção mútua asseguram a existência da autoridade sem rosto. Em situações mais delicadas, sabe-se que o Palácio não gostou de certa galhofa da ministra sobre as vicissitudes de turistas nos aeroportos.
Nos longos feriados de Páscoa, Natal ou Ano Novo, o jornalista, com ar triunfante, informa que a loucura do trânsito matou 20% a mais do que no ano anterior. Os condutores sobreviventes e os mortos não têm nome. Fazem parte da loucura do trânsito. Não ouvem conselhos dos agentes rodoviários, não percebem que transportam pessoas, não vêem as centenas de placas e sinais ao longo das estradas. Metonímia é dizer que o trânsito mata, ao invés de a imprudência do condutor.
A justiça é lenta, a polícia tortura, a violência está fora de controle, enterrada mais uma vítima de bala perdida, caiu na malha fina da Receita, as drogas são comercializadas pela organização criminosa e consumidas pela classe média alta, são algumas das expressões que compõem o conjunto de informações cotidianas. Construímos com alegoria e eufemismos uma sociedade sem rosto. As responsabilidades se escondem atrás dessa espessa cortina de frases feitas, de ordens maldadas e malcumpridas, de crimes sem culpados, de roubos sem ladrão.
No ano de 2007, o aquecimento da Terra foi a verdade inconveniente que abalou a humanidade. O aquecimento global do planeta se tornou, na boca de jornalistas de rádio e TV, o responsável por todas as calamidades sofridas, da inundação de Nova Orleans, Indonésia e China à seca do Nordeste e do Sul do país. Enquanto isso, continua-se queimando florestas, consumindo petróleo nos milhões de carros particulares, aumentando o calor da atmosfera, causando desastres diários com mortes de pessoas e perdas materiais. O aquecimento global é obra do homem.
Voltando de Vitória para Brasília, com escala no Rio de Janeiro, no longo período em que a incompetência administrativa dos aeroportos se manifestou nos departamentos do governo e nas empresas de aviação, os passageiros foram surpreendidos com uma nova metonímia proferida pelo comandante do avião.
Senhores passageiros, sua atenção, por favor. Estamos prontos para a partida. No entanto, o Solo nos orienta para aguardarmos 20 minutos. O solo, quem seria? Certamente, alguém com os pés no solo. Como responsabilizar o solo? Como prender a violência? Como deter o aquecimento global da Terra?
E assim vamos. Ouvimos e usamos o vocabulário das irresponsabilidades que facilitam a impunidade, numa sociedade sem rosto e sem nomes.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

BATEDORES DA COCA-COLA

Ser assaltado no estacionamento da universidade ou na saída do cinema, ser obrigado a esvaziar a conta no caixa eletrônico para satisfazer o ladrão, que ameaça com revólver, são acontecimentos de rotina.
Os arrastões na praia, no supermercado ou em edifícios de bairros nobres, vigiados 24 horas por dia, também não são raridade neste país.
Como brasileiro só obedece a lei se a polícia está por perto, o governo resolveria o difícil problema do emprego, contratando milícias na proporção de um soldado, agente ou qualquer outra denominação mais apetitosa, por grupo de dez cidadãos. O único inconveniente é que não haveria quem controlasse as milícias.
Por falta de esquema de rígido controle da população, apesar de nos convencerem com estatísticas diárias do crescimento da renda, de que vivemos no melhor país do mundo e que nossas pequenas debilidades desaparecem diante dessa decantada virtude da cordialidade brasileira, os fornecedores de mercadorias às lojas e supermercados obrigam-se a contratar escoltas armadas para proteger-se contra os ladrões.
Haverá tantos ladrões soltos nas ruas de nossas cidades que caminhões da Coca-Cola devam ter por perto uma frota de carros blindados e homens fortemente armados, para descarregar pacificamente uma dezena de caixas no empório da esquina?
Soube, buscando melhores fontes, que essa providência só é tomada em locais de risco. Bancos, supermercados, centros comerciais, cidades satélites em torno de Brasília figuram entre os mais visados.
Com o passar dos dias, o risco estará em sair do supermercado com uma sacola de pão, um quilo de feijão e 300 gramas de carne.
Nunca foi tão grande a seriedade neste país.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

DEZ MANDAMENTOS DA LEI DA NATUREZA

1. Amarás as árvores, as flores e os animais como amas teus irmãos.
2. Não queimarás as florestas.
3. Não cortarás árvores em vão.
4. Replantarás tantas árvores quantas precisaste cortar para viver.
5. Descansarás em silêncio à sombra das árvores e sairás à noite para ver estrelas.
6. Protegerás todas as nascentes e todas as águas dos rios e lagos.
7. Não jogarás dejeto algum no solo.
8. Reciclarás todo artefato que possa poluir a terra e o ar.
9. Reduzirás o uso do carro individual e favorecerás o transporte coletivo.
10. Terás somente os filhos que possas sustentar sem agredir a natureza.

Eugênio Giovenardi

domingo, 2 de dezembro de 2007

A FEBRE DE DONA GAIA

A FEBRE DE DONA GAIA

Gaia, a deusa Terra, está enferma e febril. Cansada de gerar, amamentar e enterrar filhos ingratos, dá sinais de esgotamento. Os médicos de plantão não saem de sua cabeceira. Gaia não pode morrer.
Na última reunião da junta médica, na Noruega, os médicos Al Gore e Ragendra Pachauri foram apresentados como ganhadores do Prêmio Nobel da Paz, pela dedicação de ambos em desvendar as causas da febre de dona Gaia. Os diagnósticos dos premiados foram contestados por um pequeno grupo de cientistas céticos. Cada grupo de cientistas tem seu método de pesquisa. A lógica das hipóteses, que um método contém, leva a conclusões supostamente coerentes. Cada um prefere suas próprias razões. Diante dos debates, a grande família humana, apreensiva, espera novos resultados.
Quais são as causas do aquecimento do planeta Terra? A febre de dona Gaia é um sintoma da ação de alguma disfunção orgânica. Umas bactérias são mensuráveis, outras, pouco ponderáveis. O que aconteceu, há cem mil anos, é pouco visível. As suposições ajudam a formular hipóteses. Que informações antigas se têm, além do dilúvio descrito na Bíblia? Os egípcios relataram períodos de vacas magras. Isso tem a ver com secas prolongadas? Os romanos acumularam experiência em canalizar água, transformar desertos em florestas, em pomares e campos de cereais, no norte da África. Teria faltado água? Aqua vitae.
O aquecimento do planeta não se restringe à emissão de CO2. O universo tem suas leis e todas funcionam. Conhecê-las é um permanente desafio. Entre as causas do desconforto que sofremos, das doenças endêmicas, das mortes perpetradas pelos fenômenos naturais, há que se mencionar a ocupação da terra pelo homem. O crescimento progressivo da população mundial intensifica o uso das riquezas naturais, especialmente a terra, a água e as fontes de energia. O homem produz dióxido de carbono em grande quantidade. O desequilíbrio das relações entre o crescimento da população, a exploração da riqueza natural – terra e água – para a sobrevivência humana, os requerimentos do conforto social e de serviços essenciais à convivência não se fizeram acompanhar por sistemas eficazes de administração que promovessem investimentos estruturais no campo e nas cidades.
A Revolução Verde melhorou a produtividade agrícola, pela via do uso incontrolado da água, de fertilizantes e inseticidas para alimentar o mundo. Ganhamos mais comida, mas perdemos florestas. Secaram nascentes e rios. Quase um terço da humanidade passa fome e não tem acesso à água. Os incêndios que têm assolado o Brasil, a América do Norte, a Austrália e a Grécia contam com a imprudência humana e a longa estiagem. Quantos anos levará dona Gaia para se recuperar? Duas a três centenas de anos. As inundações na Índia, na China, Nova Orleans e regiões do Brasil destruíram cidades e instalaram, no caos urbano, as condições favoráveis ao desenvolvimento de pragas e doenças endêmicas. Os que não morrem pagam a conta da imprevidência.
A humanidade vai se adaptando às catástrofes. Enterra mortos. Reconstrói casas. Enquanto se discutem as causas do aquecimento do planeta Terra, acompanhamos, em tempo real, as queimadas da Amazônia pela TV, ou entramos no automóvel para ir ao supermercado, enfrentando engarrafamentos e estacionamentos lotados.
Tenho convicção de que a febre de dona Gaia diminuirá na medida em que se protegem nascentes de água, se plantam árvores, se respeitam as florestas, se oferece transporte alternativo ao carro individual. Mas essas ações serão muito mais complexas se a população mundial se expandir mais rapidamente do que as ações de combate às desigualdades entre países e pessoas.
A Terra se resume no pedaço de chão onde vivemos. Ame-o.

Eugênio Giovenardi (eugeniogiovenardi@yahoo.com.br) 24.10.07

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

REFORMA AGRÁRIA

Como estudante universitário de Ciências Sociais, na década de 60, também gritava pela reforma agrária. Com o golpe militar, de 1964, o assunto tomou outros rumos. Ressurgiu desfigurado com a restauração da democracia. Reencarnaram a reforma agrária numa caveira de burro. Todos os governos da Velha e da Nova República a incluíram em suas plataformas eleitorais, criando até um Ministério especial para o ofício. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária extinguiu-se, por inócuo,. Meses depois, ressuscitaram-no. Penduraram a autarquia num ministério que mudou várias vezes de nome, ao sabor dos mentores e ideólogos da reforma agrária.
Por que, então, não se avança hoje na execução da reforma agrária, após 10 anos de governos com currículo de esquerdistas? Simplesmente porque não existe proposta alguma de reforma agrária. O que se vem propondo são metas mais ou menos ambiciosas de assentar alguns milhares de famílias por ano. A isso convencionou-se chamar impropriamente de reforma agrária. A meta para 2007 é de 315 famílias por dia, fora do alcance da capacidade institucional do governo. A discussão não gira em torno de critérios ou dificuldades de se executar a reforma agrária, numa época de intensa competição e desalmada globalização. Aposta-se em quem assenta o maior número de famílias.

Palco burocrático

O governo, isto é, as pessoas que ocupam responsabilidades relacionadas à ocupação e exploração da terra, parecem ignorar os elementos essenciais que cercam o profissional do campo. Esses organismos são artificialmente criados, despojados de alma política, irreais, inadequados, vagando ao léu, longe das prioridades dos cidadãos profissionais da agricultura. Um Ministério não tem sentido se os investimentos projetados consolidam a estrutura de pobreza rural. Alguns milhões de reais aplicados em ações sociais, ainda que importantes, são remendos em fato novo ou aplicação de cremes e pó de arroz sobre as decrepitudes do atraso rural. Os elementos estruturais da produção agrícola: comercialização e agroindústria rural ficam, na prática, em segundo plano.
Um programa de metas para assentar famílias desempregadas, com alguns critérios e condições, não é o mesmo que reforma agrária. Assentar famílias é um dos itens finais de um programa de reforma agrária e não seu início. Nas condições atuais, o termo reforma agrária cheira a anacronismo. A ocupação espacial do território nacional mudou drasticamente nesses últimos 30 anos. No estágio atual da agricultura, com exceção de enclaves retrógrados de oligarquias rurais, não cabe o velho conceito de reforma agrária. Uma lei de reforma agrária deveria estabelecer limites ao tamanho das propriedades, ainda que pareça um cerceamento à liberdade de adquirir terras.
É duvidoso o critério de transformar qualquer cidadão, a faca e a machado, em agricultor. Absolver a incapacidade da economia capitalista de gerar empregos, ou tapar os ouvidos à explosão demográfica estimulada pela hierarquia católica e pelas esquerdas intelectualizadas, enclausurando milhares de famílias em terras inóspitas, é fazer dos pobres modernas buchas de canhão contra si mesmos. Quem morre nos enfrentamentos não são generais, são soldados.

Planejamento prévio de assentamentos

É desejável que se pratique um inteligente esquema de assentamento de agricultores que querem tornar-se ou que pretendem continuar sendo profissionais da agricultura, em áreas previamente definidas como aptas a superar a pobreza rural. O agricultor tem sido tratado como um pobre carente, um menor tutelado, um cliente político de organismos esclerosados, um paciente econômico e não um profissional da agricultura.
Um dos requisitos para ocupar a gleba destinada às famílias é planejar o uso dos recursos, definir previamente os produtos e o destino da produção, capacitar os agricultores para as atividades essenciais, ampliar os conhecimentos através de observação e estágio em propriedades regionais de sucesso. Esta capacitação pode ser feita num período de seis meses, com recursos do orçamento público. As famílias iriam ocupar a terra para executar um plano de produção elaborado por eles, durante o estágio preparatório, apoiados por serviços básicos de educação e saúde, transporte e comunicações.
Um elemento totalmente esquecido e que constitui um dos pilares da estrutura de pobreza rural é a ausência congênita de capital inicial por falta de acumulação primitiva do agricultor. Créditos a longo prazo, alguns deles a fundo perdido, com juros que permitam capitalização e poupança rural são absolutamente necessários. Não se trata de recursos iniciais de alimentação ou moradia ou simples créditos de custeio. O agricultor precisa de capital produtivo. Agricultura significa produção e produção exige poupança. Ouço já os bem pensantes condenarem o dinheiro “a fundo perdido”. Depende a quem e como se dá isso. As indenizações milionárias pagas pelo Estado aos proprietários, obedecendo à ordens judiciais, não são, por acaso, dinheiros a fundo perdido que enriquecem os ricos e transferem o capital rural para as cidades?

Agronegócio

Ocupação da terra e agronegócio não são incompatíveis. Devem constar da mesma proposta. São elementos essenciais para debelar a pobreza rural. Poucos são os assentamentos, nos moldes propostos nos últimos anos, que rompem a estrutura da pobreza rural. Falta-lhes o elemento modificador que é a agroindústria rural, familiar, associativa ou cooperativa. Agroindústria significa tecnologia, exige conhecimentos, saber, pesquisa, gerência, noção de mercado, planejamento de curto e longo prazo. A agroindústria é o estágio superior da agricultura e para ele devem tender os agricultores. Agricultura de subsistência é o culto da pobreza e da ignorância.

Conflitos agrários

Os conflitos agrários não levam necessariamente à reforma agrária nem facilitam o processo produtivo. Submetem as famílias ao medo, à angústia, ao sofrimento inútil. Ocupar terras públicas ou privadas improdutivas, ociosas e, a maior parte das vezes, sem água e de má qualidade, não se chega ao sucesso do assentamento.
O mérito dos movimentos sociais não é acelerar a sonhada reforma agrária. É cutucar e empurrar o paquiderme burocrático a mover papéis, reunir técnicos, acionar a justiça para legalizar a ocupação de terras e pagar altas somas aos proprietários. O assentamento de famílias não é só uma ação social. É, antes de tudo, econômica. Não se trata de tirar pobres das cidades e transformá-los em pobres do campo. Agricultura quer dizer renda familiar, capitalização da propriedade e não pode ser responsabilidade apenas de um movimento social. Há que se reconhecer o papel importante dos diferentes movimentos que apóiam o assentamento de famílias e sua ação posterior, ainda que limitada, para organizar esses grupos, as mais das vezes heterogêneos, com interesses divergentes. Mas a mística da posse da terra não substitui a técnica, o conhecimento profissional da agricultura, as relações com o mercado, a administração da propriedade. É um conjunto de ações que reclama uma política pública do Estado para a ecoagricultura, assim como ele o faz com a agricultura comercial, com os produtos de exportação, com os grandes produtores, aos quais perdoa dívidas ou defere o pagamento de bilhões de reais.

Eugênio Giovenardi, autor de OS POBRES DO CAMPO, Tomo Editorial, Porto Alegre, 2003.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

DIVAGAÇÕES SOBRE AS ESQUERDAS BRASILEIRAS

Graças aos governos de FHC e do PT do Presidente Lula, os vários grupos de esquerda política mostraram, ao conquistar o governo do país, suas nuances com muita transparência.
É arriscado traçar um mapa do território da esquerda brasileira. Uma das dificuldades para essa tarefa geopolítica é o próprio conceito escorregadio da expressão. Esquerda, sinistra, gauche, left wing.
Muitos, há tempos, se perguntam o que é ser de esquerda. Outros afirmam que ela simplesmente acabou ou que nada mais significa.
No mapeamento, é bom evitar princípios éticos e morais da política para não tornar ainda mais difícil a obra.
Algumas categorias saltam aos olhos na paisagem que ora se compõe nos partidos, no Congresso Nacional, no governo do país e na construção da nova sociedade, liderada hoje, supostamente, pela complexa teia da esquerda.
A fronteira entre uma categoria e outra é tênue e gera conflitos insolúveis.

1. A esquerda pragmática se dobra à “real politic” da chamada governabilidade. Negocia, firma alianças, assume compromissos, abre leilões de cargos, dispõe-se a defesas mútuas, compra reeleição e aprovações de MP de interesse eleitoral. O Governo resulta numa mistura, num complexo vitamínico cujos efeitos e responsabilidades são impossíveis de identificar. Confundem até a justiça que, em seus pareceres, desconfia e contradiz as provas da Polícia Federal. Embevecidos, deslumbrados pelo poder ainda tenro, os novos governantes entregam-se a anunciar a descoberta da roda, da lâmpada, do telefone. Nunca se fez no país o que só eles sabem fazer mesmo que, na oposição, fossem contrários ao que agora praticam. Justificam todos os atos administrativos com argumentos sólidos e convicção peremptória. Seu objetivo primordial focaliza o poder e o exerce na perspectiva eleitoral. Perenizar-se no poder faz parte do sonho da esquerda que antes preferia implantar regimes fortes a caminho de uma democracia renovada, reinterpretada. O povo é meta eleitoral. Alimentar as massas é mais importante do que investir em educação. Líderes pedem o favor a seus eleitores estupefatos, que não lembrem quanto disseram ou escreveram no período preparatório à chegada ao poder. O poder exige esquecimento de lições aprendidas nos tempos da resistência e na oposição. FHC pediu que esquecessem seus escritos de professor exilado. Lula declarou que nunca foi socialista nem sabe o que é ser de esquerda.

2. A esquerda nostálgica analisa os fatos de hoje à luz do tempo em que seus membros eram ativistas. Integram-na grupos profissionais bem sucedidos. Acreditam em pressão institucional, representações populares, diálogo com áreas específicas do Governo e com forças conservadoras da sociedade pluralista. Praticam a revisão de métodos, entremeados de “mea culpa” por erros do passado. Pedem perdão à democracia. Não se furtam de reclamar indenizações polpudas por danos morais, psicológicos e políticos, pois arriscaram a vida na guerrilha, na prisão, na tortura para livrar o povo da miséria e do imperialismo.
Defendem a presença da esquerda no poder, cuja função precípua é ocupar-se de programas voltados a aliviar as condições econômicas de pobres e miseráveis. Apresentam sérias restrições à globalização e às privatizações de empresas estatais. A concentração da riqueza em bancos e grandes empresas de informática, comunicação, biolaboratórios é tolerada com reservas e eventuais ataques, mas consideram esses atos econômicos salvadores da inflação e alimentadores da moeda forte. Não dá para resolver tudo num só dia. Seus membros são quase todos de extração católica. Deus fez o mundo em sete dias e a falha original da sociedade está no homem. A busca do homem novo é tarefa cotidiana.

3. A esquerda convertida ao capitalismo social e ao neoliberalismo controlado, próxima à esquerda pragmática, é mais realista que o rei. Ex-comunistas, participantes de grupos revolucionários que lutaram para libertar o país do jugo imperialista, dar cidadania às “massas” e levá-las ao poder, concentram sua ação jornalística, profissional, gerencial, em empresas privadas e públicas ou ministeriais. Atuam na periferia do poder e não participam de decisões de governo. Interpretam favoravelmente e apóiam os êxitos da economia de mercado. Aprenderam a manipular números, cifras, estatísticas, porcentagens comparativas. Têm opiniões respeitáveis, ditas e divulgadas em permanentes entrevistas. Alimentam certezas e dúvidas, próprias e alheias.
Entre seus alvos prediletos estão governantes socialistas de países vizinhos. Não reconhecem o direito desses povos de eleger um indígena num país com maioria esmagadora autóctone, governados durante séculos pela direita que hoje grama na oposição acirrada a medidas constitucionais. Eles são diferentes de nós. No Brasil pode-se eleger um trabalhador metalúrgico, de trajetória popular, nem esquerdista nem socialista, que aprimora o neoliberalismo e amacia as desigualdades sociais com salários mínimos.
É a esquerda confiante, rica, bem instalada em apartamentos ou mansões. Viaja pelo mundo, encanta-se com países desenvolvidos, tem confiança no Brasil-potência. Critica a má gestão e erros administrativos resultantes da incompetência e da inexperiência de ex-companheiros ou novos aliados. Servem de faróis aos navegadores costeiros. Apontam os perigos das águas profundas.

4. A esquerda ambientalista refugia-se na grandeza e na importância da natureza, no fascínio do universo. Embora poucos tenham plantado um pé de couve ou praticado ações concretas para salvar uma nascente de água, propõem atitudes e comportamentos que aproximam a espiritualidade do homem à divindade oculta entre árvores e galáxias. A esquerda ambientalista não é linear. O universo natural é amplo e cabem nele todos os matizes. Há um ramal que atua na instituição não governamental. A defesa e proteção do meio ambiente é um fim em si. Faz parte dos objetivos da organização. Junta ações legislativas e normativas a tarefas pontuais, à conscientização dos cidadãos, fiscalização e controle de decisões governamentais. Aciona o poder público. Festeja vitórias e amarga derrotas, especialmente no campo da urbanização descontrolada e na ocupação destruidora da fauna e da flora por empresas comprometidas com o PIB e com o PAC. A maioria de seus membros não associa o crescimento demográfico à destruição do meio ambiente. O governo e organismos internacionais apóiam e subsidiam, em parte, o funcionamento da vigilância ambiental desses grupos nem sempre homogêneos.

5. A esquerda sindical, associada a movimentos sociais e igrejas, atua na esfera da organização popular e na consciência cidadã. Lutam por resultados práticos: emprego, salários, direitos sociais e trabalhistas, terra, reforma agrária, casa, crédito bancário para consumo. A força de pressão institucional não alcança o poder político de decisões de governo. É uma esquerda tolerada pela esquerda pragmática instalada no governo que a atende em aspectos marginais da economia. Essa esquerda atuante e marginalizada é convidada e prestigiada em reuniões, congressos e seminários de discussão ideológica ou em caso de se legitimar propostas governamentais. Seu discurso é contundente e aplaudido. Opõe-se ao capitalismo e ao neoliberalismo. A luta pela justiça social tem lhe proporcionado enfrentamentos com a força uniformizada do Estado e sofrido não poucas mortes de seus adeptos. Usa o dinheiro do Estado para sobreviver e alimenta a ideologia com a própria resistência carismática, expressa em comportamentos sóbrios, ocupações de terra e órgãos públicos, passeatas e manifestações de grande impacto, especialmente fora do país. A sobrevivência dos movimentos, com grande capacidade de organização, depende, em grande parte, da imensa camada de cidadãos à margem dos êxitos da propalada economia de mercado. Sonham com um país diferente que só eles podem construir. Desfrutam da simpatia de camadas da sociedade, muitas vezes silenciosa, e do apoio de organizações internacionais, inclusive financeiro.

6. A esquerda depressiva e esquizofrênica é marcada pela desilusão e decepção diante da impotência política e ideológica da esquerda no poder ou do anacronismo revolucionário. Sente-se afetada também pelo fracasso de experimentos “comunistas” em países de vanguarda ideológica. Muitos se refugiam na arte, na literatura, na religião, no misticismo. Não se sentem nem de esquerda nem de direita. Criticam com lucidez e severidade os dois lados. Esperam por uma catástrofe ambiental ou política para retomar ideais antigos. Negam-se a ler jornais, a ouvir discursos de outrora companheiros de ideologia. Fecham ouvidos e olhos aos noticiários. A sociedade é um conglomerado de violência, corrupção, esperteza dos políticos, desprezo pela inteligência, mentira pública, crime hediondo, impunidade, vítimas do trânsito, seqüestro. Guarda-se a ilusão de o Brasil ter o melhor futebol do mundo e o mais popular dos presidentes. “Tudo dá enjôo, enfado, desilusão! Chega! Não dá para suportar! Não saio mais de casa”.

7. À esquerda partidária pertencem aqueles que fundaram ou já encontraram o partido rompido em pedaços, modificado, revisado, desalinhado, modernizado. A teoria é marxista, a análise é de oposição ao neoliberalismo. A prática, pequeno-burguesa. Têm consciência de que jamais chegarão ao poder, mas atuam como se alguma reviravolta os pudesse guindar à liderança do país. Aliam-se, em certas ocasiões, com argumentos sibilinos, a forças políticas contrárias a seus ideais. Em busca da abertura sem preconceito e de alianças pluralistas, apóiam candidatos de direita.

Em todo caso, as esquerdas estarão sempre na contramão da via política. Mesmo quando chegam à instância do poder, entrarão pela contravia das idéias e propostas que antes defendiam.
O esquerdista, ao chegar ao poder, age convencido da justeza inquestionável de suas análises e propostas na busca de sua própria promoção. Impõe, propõe e executa planos e programas, acreditando estar servindo ao povo.

28.06.2007

N.B. Suas sugestões e comentários poderão ser incluídos no texto, com citação de autoria, se aceitar.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A SAGA DE UM SÍTIO

Informo aos leitores que em breve sairá à luz meu oitavo livro:

A SAGA DE UM SÍTIO.

Se você é amigo da natureza,
Se você condena as queimadas e o desmatamento,
Se você ama as nascentes, as flores, os pássaros, as borboletas,
Se você precisa tirar da terra os bens necessários sem esgotá-la,
Se você quer devolver à terra a mesma generosidade que ela lhe mostrou,
Se você deseja conhecer as peripécias de um sítio,
Se você quer apreciar a beleza do Cerrado do Planalto Central,
Você tem 7 razões para ler

A Saga de um Sítio

O LIVRO É O MELHOR PRESENTE

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A LEI UNIVERSAL DO MERCADO

Os comerciantes de drogas ou armas ilegais também obedecem ao instinto de sobrevivência organizacional. Para sobrevier na sociedade, ocupar espaços na feira de fornecimento de bens para os quais há procura, é imperioso ter-se organização. A inteligência, a disciplina, o comando, a gerência são qualidades e virtudes do ser gregário. Elas se manifestam em toda e qualquer atividade, em escala simples e complexa, atingindo empresas familiares ou transnacionais, movimentos populares, sindicados patronais ou de trabalhadores do campo e da cidade.
Como na Câmara e no Senado, entre os gerenciadores dos negócios ditos ilícitos, também há corruptos, desleais, aproveitadores, parasitas e mentirosos. Seus princípios, porém, parecem mais severos e drásticos e se aplicam com mais rigor contra os traidores de sua confiança, de suas promessas e convicções. Eles também têm inimigos e adversários dos quais precisam se proteger. Têm seus códigos próprios contra as leis inimigas com a vantagem de, em algumas circunstâncias, poder usufruir delas.
Sua atividade comercial é difícil e tem que ultrapassar barreiras e até fronteiras vigiadas, para levar o produto a seus consumidores ansiosos nas longas filas da noite, em bares populares ou restaurantes da grã-finagem, nas portas dos colégios e templos universitários. O isolamento e a reclusão impostos por leis inimigas fazem parte dessa profissão clandestina e reforçam o marketing subliminar de seus produtos. Esse comerciante conta com a expectativa do consumidor contumaz. Há um princípio de lealdade e fidelidade entre o comerciante preso e o consumidor livre.
O que aconteceu em São Paulo, nos dias em que o PCC tomou a cidade, foi uma campanha maciça de publicidade para tranqüilizar os clientes de que há organização forte e estoques suficientes para suprir a necessidade da clientela, tanto quanto celulares para presentear às mães no segundo domingo de maio. A profissão desses comerciantes é que está em jogo, mas essas dificuldades normais do comércio serão superadas. Seus advogados sabem orientá-los para falar, calar e desmentir. Aquelas toneladas de maconha e coca apreendidas serão repostas como os estoques de arroz e óleo levados pelo arrastão dos famintos da Zona Norte do Rio, como o dinheiro do INSS, do Banestado e do Valerioduto.
Enquanto os policiais acuados, mal-armados e malcomandados enterravam seus companheiros de guerra, mortos em defesa das leis e da sociedade desarmada, um pequeno exército de meninos de rua abastecia, nos pontos de entrega, os feirantes e os clientes indóceis na periferia da cidade. Operações à margem da legalidade, mas dentro das normas mais sadias da competição do livre mercado. Por ele transitam celulares e computadores contrabandeados, ambulâncias superfaturadas, em nome da irrevogável lei da oferta e da procura.
As leis do mercado se aplicam aos centros comerciais, aos supermercados, à feira dos importados e aos pontos de fornecimento de drogas e armas. Todos são produtos comercializáveis, submetidos à lei da oferta e da procura. Esta velha lei exige e impõe organização, competência e empreendedorismo, com assessoria de consultores do Sebrae, da Bolsa de Valores e de Auditores Independentes. O Segredo do Sucesso e A Arte da Guerra são livros de cabeceira do executivo ambicioso, dentro e fora da prisão.

Eugênio Giovenardi, sociólogo e escritor.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

O GOVERNADOR E O CARDEAL

Os jornais de outubro estamparam duas declarações.
Uma, do poder laico, sem estratégias eficazes nem capacidade administrativa para resolver conflitos sociais: “Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”. O Governador do Rio de Janeiro acredita que o aborto é uma arma contra a violência. Ao diminuir a população, reduz-se o número de criminosos potenciais
A segunda, do poder religioso, defende a existência dos pobres, enquanto o governo não faz o que deve: “Essas declarações do Governador são muito graves. Refletem um profundo preconceito e supõem que, para ele, a solução para a violência é a eliminação dos pobres”. O Cardeal Scherer se acomoda na frase evangélica: pobres sempre os tereis convosco.
Em seguida, outros comentários repetem os chavões de sempre. Filho de pobre é bandido, de rico, não, induzindo a concluir que, num país rico, não há violência nem corrupção. O foco da discussão parece ser outro. Não é durante a gestação nem depois dela que o poder laico e o poder religioso deviam se preocupar. É antes dela. Em matéria de aborto, não há que se privilegiar rico ou pobre. Abortos são freqüentes em todos os grupos sociais, em todas as idades, dos 13 aos 50 anos. Eles vão continuar, com ou sem lei do aborto legal, em maior ou menor intensidade, dependendo da pressão das circunstancias.
O ponto central do debate é o progressivo crescimento da população, mesmo que com índices mais baixos. O país não tem estratégias eficazes nem capacidade administrativa para atender a grandes populações. Governar um país é administrar sua população e não apenas promover o crescimento econômico como valor final de acumulação de riqueza monetária. Não é segredo de justiça que as populações marginadas do desenvolvimento do país aumentam duas vezes mais do que a parte rica. E é a população pobre a maior vítima do desemprego e subembrego. A batalha de estreitar a distancia entre pobres e ricos parece perdida, a médio prazo.
A economia brasileira está dirigida a menos de um terço da população. Os outros dois terços, sustentados por programas de emergência e salários mínimos, recebem, segundo o discurso oficial, a ajuda suficiente e necessária para sentir-se satisfeitos, à margem da grande economia e contentar-se com as sobras do banquete.
Enquanto se aprimoram os meios e as habilidades para prender e matar cidadãos, a batalha contra as desigualdades sociais está perdida. O governo, o poder laico e o religioso estão dando provas de que não têm força nem meios de aplicar as leis de combate às atividades ilícitas dos bandidos ricos e dos ditos marginais. Na ilicitude, há cumplicidade entre eles. Um consome a droga, outro fornece. Um vende a arma, outro dispara.
A superpopulação brasileira derrotou o poder laico e o poder religioso, o governador e o cardeal. O desordenado crescimento da população brasileira é um erro histórico perpetrado por ambos e que lhes tira o sono. Seremos dois Brasis por mais cem anos, um com medo do outro.
Os resultados mais evidentes da construção da segurança para a sociedade se refletem no aumento de prisões e de covas nos cemitérios. A prioridade da educação é, ainda, uma peça de retórica, sustentada por estatísticas que não refletem a essencial realidade da maioria da população brasileira.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A FLAUTISTA

Ela entrou formosa sob os aplausos de uma assistência seleta. Era uma jovem flautista, com carreira gloriosa iniciada aos cinco anos.
Seus dedos finos ajustaram a flauta dourada, um milésimo de volta, com um movimento delicado. Assoprou duas vezes no orifício, provocando um som leve e apagado.
Ao sinal do pianista fez um gesto com a cabeça, mostrando uma serena concentração na partitura que tinha em frente.
Escolhera um vestido longo e preto, com um discreto decote que escondia o essencial sem negá-lo de todo. Os braços nus naquela noite morna desenhavam contra o fundo escuro a posição de um abraço. Quando balançava o corpo ao ritmo da música, os cotovelos se mostravam torneados e provocantes, ressaltados pela velocidade dos dedos que subiam e desciam, apertando, vez por outra, as chaves metálicas.
Tinha o cabelo longo caído sobre os ombros seminus que dançavam aos movimentos das notas. Mantinha os pés separados, a pouca distância um do outro, suficiente para se equilibrar no balanço que lhe impunha a sonata.
Toda a graça da composição da flautista demorava no lábio inferior jeitosamente estendido ao lado do orifício, sobrepondo-se e contrastando com o dourado da flauta. Quando a música exigia-lhe um sopro continuado, detendo-lhe a respiração por algum tempo, rapidamente deslizava a língua sobre os lábios e aqueles poucos centímetros de carne vermelha ficavam expostos sobre a flauta.
A flautista tocava uma tarantella de Saint Saëns. Não me perguntem de que ano era essa composição. Esqueci. E esqueci também de aplaudir quando a música terminou, apesar da catarata de aplausos da platéia fascinada. Eu havia ficado preso ao lábio inferior da flautista.
E hoje, muitos anos depois, ao ouvir Saint Saëns e lembrando do lábio da flautista, surpreendi-me, só, aplaudindo a tarantella.

Eugênio Giovenardi, autor de EM NOME DO SANGUE, Prêmio Açorianos de Literatura 2003.

TERRA DO GELO - ISLÂNDIA

Islândia. – A terra natal da cantora Björk é uma ilha enigmática, entre a Noruega e a Groenlândia. Pitheas, explorador grego, 400 anos antes de nossa era, a denominou Ultima Thula. Depois desse ponto, viria o desconhecido Ártico.
Três quartos de seus 308 mil habitantes - a população dobra no verão com o afluxo de turistas - vivem na capital Reykjavik – Baía da Fumaça. Assim a denominaram os primeiros exploradores ao avistar as nuvens de vapor expelido por borbulhos de águas ferventes à flor da terra. As erupções são denominadas gêiseres que se lançam a dezenas de metros de altura, a intervalos de cinco a dez minutos. A tecnologia islandesa permite canalizar esses vapores como geradores de energia.
Os 103 km2 da Ilha são um conglomerado de vulcões ativos e crateras abertas há milênios. Os terremotos, ao longo dos séculos, compuseram paisagens surpreendentes. Desfiladeiros, paredes abruptas, monumentos de pedras sobrepostas, esculturas lapidadas pelo tempo. Musgos verdes, cinzas e amarelos cobrem grandes extensões de áreas inabitadas. A natureza vive só, na solidão dos dias e das noites. Ambiente propício à meditação e à paz atraiu, já no século V, eremitas cristãos da Irlanda.
Os glaciais cobrem ainda um décimo da superfície da ilha. Os degelos anuais do verão formam rios caudalosos que se precipitam por despenhadeiros em cachoeiras e cascatas amedrontadoras e magnificentes. Os glaciais estão sendo afetados pelo aquecimento do planeta Terra. Perdem, a cada ano, 100 metros de gelo. A inundação e a submersão da ilha, embora sejam acontecimentos para os futuros islandeses, são dados que preocupam geólogos, biólogos e geógrafos que se debruçam sobre o comportamento geológico da área. Em 2007, faltou água na Islândia. O tempo não conta para o funcionamento do universo. As leis físicas não têm pressa. Os fenômenos naturais se sucedem e hoje surpreendem a imprudência e a frágil sabedoria da sociedade humana da era industrial e tecnológica.
A ecologia é um tema difícil. As relações do homem com o universo estão ainda marcadas pelo perigoso axioma bíblico que o ordena a dominar a natureza para desfrutar das riquezas que dela possa extrair. A fatura nos está sendo apresentada diariamente com inundações e secas que destroem o que os homens edificaram em espaços impróprios. O custo em sofrimentos e vidas é cada dia mais impressionante.
A pequena floresta que cobria a ilha, erguida sobre rochas há milênios, foi arrasada em 15 séculos. Na ilha, limpíssima, ordenada e rica, o carro individual elimina muitas boas intenções e discursos em defesa do ambiente natural. Em compensação, as leis do trânsito são severas e observadas, sem o auxilio de placas de limite de velocidade. As que existem são excepcionais e em locais de risco. A abundância e a riqueza induzem ao uso individual do automóvel mais do que ao compartilhamento do uso do transporte coletivo. Aceita-se estar no mesmo teatro, ouvir a mesma orquestra, mas não sentar no mesmo ônibus que tiraria de circulação 30 carros. A estultícia humana não foi ainda dimensionada.
A riqueza da ilha dá ao islandês uma fatia de 54.850 euros do bolo econômico e coloca a Islândia no quinto lugar na escala de renda dos países. A pequena população permite ao Estado uma atenção quase pessoal ao cidadão. A riqueza vem da produção e exportação de alumínio e da indústria de pescado. A indústria bancária criou um paraíso fiscal, com todos os serviços de depósitos e transferências, apoiada por eficiente sistema de informática. Atrai as transações secretas dos novos bilionários das bolsas de valores. Criadores de cavalos de raça nacional, os islandeses consagraram o pônei como símbolo da meiguice animal. Ovelhas de longas lãs circulam livremente pelos prados e montanhas e constituem o prato tradicional dos restaurantes.
Perdida como um barco no meio do oceano, a Islândia deve ser vista como ilha de escritores e poetas. Na segunda quinzena de agosto, celebra-se a Noite da Cultura, com a presença massiva de toda a população, ocupando ruas, teatros, ateliês e livrarias.
Em 1955, a Islândia arrebatou o Prêmio Nobel de Literatura, conferido ao escritor Halldór Laxness - ex-católico convertido, ex-marxista - em cuja extensa obra de contos e ensaios se destaca o romance Povo independente.

Eugênio Giovenardi, autor de SOLITÁRIOS NO PARAÍSO.
eugeniogiovenardi@yahoo.com.br

O LIMBO

Meu amigo Marcondes me telefonou. Não escondeu sua frustração incurável diante dos anúncios do Vaticano de extinguir o Limbo.
Privado do batismo pelo pai comunista, morreria pagão. Tinha escolhido seu lugar no além, um espaço que julgava quieto e silencioso, à meia-luz, longe de diabos e anjos, esses espíritos xeretas que vasculham nossa vida e nos chateiam pelo bem e pelo mal que fazemos.
Era das poucas fábulas que ainda embalavam os dias restantes de Marcondes. O paraíso sempre lhe pareceu distante, no fim de um difícil caminho e, na prática, inacessível. Ele detesta pistolões para lhe conseguir um lugar lá em cima. No Limbo, podia entrar sem bater. Quase aos prantos, depois de me explicar a origem e o criador desse lugar maravilhoso, fez-me um pedido.
- É preciso salvar o Limbo. É inconcebível que milhões de criancinhas, pagãos, loucos, bêbados de carteirinha, vagabundos, índios antes da Descoberta do Brasil e quase todos os chineses mortos sejam despejados de sua casa com tamanha frieza.
O espaço do Limbo foi inventado por São Gregório, no século IV, e depois aperfeiçoado por Tomás de Aquino no século XIII com o fim de resolver o problema teológico das crianças que morriam sem batismo. Teólogos mais rigorosos, antes de Gregório, haviam determinado que iriam para o inferno todas as almas não batizadas. Poetas, pintores afeitos a bibliotecas e galerias dão ao limbo nomes artísticos: ante-sala do Paraíso ou mezzanino do Inferno.
O limbo se origina da palavra latina que significa "borda", "limite". Faz sentido. É uma quarentena para não contagiar nem ser contagiado. Para se enturmar com anjos e santos, o pagão passaria por uma purificação, reservada aos mortos sem passaporte cristão. Muita gente de bem viveu antes da chegada de Cristo. Não estavam informados das novas leis. Nem sequer conheciam a Judéia. Moravam no Pólo Norte, nas selvas da Amazônia, nos confins da África. O Limbo serviria de reciclagem de conhecimentos, atualização de regras do jogo, com a oportunidade de escolher entre o céu e o inferno. Bem bolado. Daqui, deste vale de lágrimas, mandam-se mensagens aos do paraíso para que acelerem os processos e liberem os inocentes.
O limbo é um lugar antigo e limpo. Tem história. Ali ninguém tem razão. A ignorância dos dogmas nivela a todos. São todos autistas. Olham a tudo com cara de paisagem. Não há discussões, não há partidos, ninguém condena ninguém. É uma atmosfera ideal para ser feliz. O limbo foi uma auspiciosa descoberta.
Soube, ontem, que o Vaticano suspendeu o veto que extinguia o Limbo. Aonde mandá-los? Não houve acordo entre teólogos sobre o destino dos habitantes do Limbo. Telefonei a Marcondes para tranqüilizá-lo.
- O Limbo está onde sempre esteve. Em lugar incerto e não sabido.

eugeniogiovenardi@yahoo.com.br

14-05-2007

O LIMBO

Meu amigo Marcondes me telefonou. Não escondeu sua frustração incurável diante dos anúncios do Vaticano de extinguir o Limbo.
Privado do batismo pelo pai comunista, morreria pagão. Tinha escolhido seu lugar no além, um espaço que julgava quieto e silencioso, à meia-luz, longe de diabos e anjos, esses espíritos xeretas que vasculham nossa vida e nos chateiam pelo bem e pelo mal que fazemos.
Era das poucas fábulas que ainda embalavam os dias restantes de Marcondes. O paraíso sempre lhe pareceu distante, no fim de um difícil caminho e, na prática, inacessível. Ele detesta pistolões para lhe conseguir um lugar lá em cima. No Limbo, podia entrar sem bater. Quase aos prantos, depois de me explicar a origem e o criador desse lugar maravilhoso, fez-me um pedido.
- É preciso salvar o Limbo. É inconcebível que milhões de criancinhas, pagãos, loucos, bêbados de carteirinha, vagabundos, índios antes da Descoberta do Brasil e quase todos os chineses mortos sejam despejados de sua casa com tamanha frieza.
O espaço do Limbo foi inventado por São Gregório, no século IV, e depois aperfeiçoado por Tomás de Aquino no século XIII com o fim de resolver o problema teológico das crianças que morriam sem batismo. Teólogos mais rigorosos, antes de Gregório, haviam determinado que iriam para o inferno todas as almas não batizadas. Poetas, pintores afeitos a bibliotecas e galerias dão ao limbo nomes artísticos: ante-sala do Paraíso ou mezzanino do Inferno.
O limbo se origina da palavra latina que significa "borda", "limite". Faz sentido. É uma quarentena para não contagiar nem ser contagiado. Para se enturmar com anjos e santos, o pagão passaria por uma purificação, reservada aos mortos sem passaporte cristão. Muita gente de bem viveu antes da chegada de Cristo. Não estavam informados das novas leis. Nem sequer conheciam a Judéia. Moravam no Pólo Norte, nas selvas da Amazônia, nos confins da África. O Limbo serviria de reciclagem de conhecimentos, atualização de regras do jogo, com a oportunidade de escolher entre o céu e o inferno. Bem bolado. Daqui, deste vale de lágrimas, mandam-se mensagens aos do paraíso para que acelerem os processos e liberem os inocentes.
O limbo é um lugar antigo e limpo. Tem história. Ali ninguém tem razão. A ignorância dos dogmas nivela a todos. São todos autistas. Olham a tudo com cara de paisagem. Não há discussões, não há partidos, ninguém condena ninguém. É uma atmosfera ideal para ser feliz. O limbo foi uma auspiciosa descoberta.
Soube, ontem, que o Vaticano suspendeu o veto que extinguia o Limbo. Aonde mandá-los? Não houve acordo entre teólogos sobre o destino dos habitantes do Limbo. Telefonei a Marcondes para tranqüilizá-lo.
- O Limbo está onde sempre esteve. Em lugar incerto e não sabido.

eugeniogiovenardi@yahoo.com.br

14-05-2007

terça-feira, 13 de novembro de 2007

CORRUPÇÃO POLÍTICA

CORRUPÇÃO POLÍTICA

Será corrupção política ou política de corrupção? A prática não é só brasileira pelo que se sabe dos governos latino-americanos e europeus. Nem é nova, se lembramos a esperteza da compra da primogenitura por um prato de lentilhas. Hoje, no Brasil, a corrupção faz parte dos hábitos culturais de inumeráveis homens públicos.
A corrupção se manifesta pela mentira, pelo cinismo, pela deslealdade das pessoas a quem se confiou a responsabilidade de administrar os bens alheios, principalmente o patrimônio de uma nação construído pelos cidadãos ao longo de séculos. É mais revoltante quando a corrupção atinge o exercício da política, as atividades e funções do serviço público, desviando o dinheiro dos impostos em benefício próprio.
A corrupção na política degenera em política da corrupção. Estabelece-se um ideário acompanhado de esquema prático que instala e consolida a corruptibilidade. Tirar proveito do cargo, vender a função e a atividade pública em benefício próprio como prova de esperteza, pouco a pouco, dominam as mentes e encaixam-se nas formas de concretizar a malícia administrativa em roubos burocraticamente mascarados em pareceres, decisões, emendas, decretos, medidas provisórias.
O ideário e a prática se revelam nos noticiários com nomes de novelas televisivas - gafanhotos, sanguessugas, anaconda, mensalão, huracane (furacão) – esquemas de roubo do erário dos quais participam assessores diretos do Presidente da República, ministros de estado, deputados, senadores, desembargadores, promotores públicos, delegados de polícia, advogados. Uma trama diabólica capaz de desanimar o cidadão de bem. É a política da corrupção.
Corromper é preciso. Que seria dos políticos de nossa época sem a corrupção instalada em quase todas as instituições públicas? Com a corrupção, que se tornou profissional, o candidato a qualquer posto público pode burilar seu discurso ético e moralizador e conciliá-lo, depois de eleito, com a prática do aproveitamento e com o afã de tirar vantagem. A corrupção se tornou necessária para movimentar as instituições, dar legitimidade ao trabalho da polícia, encaminhar os processos da justiça, alimentar a opinião pública com noticiários vibrantes, demonstrando ironicamente a vitalidade da musculatura governamental.
A corrupção política e a política da corrupção têm a seu favor um eficaz coadjuvante que mantém vivo o ideário e o esquema do roubo público: a impunidade. Nada acontece aos corruptos. Todo o aparato da justiça está equipado para contornar, prorrogar julgamentos ou absolver os integrantes da política de corrupção e consolidar a corrupção da política. A punição dada a um juiz corrupto é aposentá-lo com vencimento integral. É o coroamento da vida de um homem que praticou a justiça em proveito próprio.
É desconcertante a severidade de juizes criteriosos e ilibados. Ao invés de penas alternativas, condenam a três ou quatro anos de prisão, pessoas que num gesto de desespero, levam das gôndolas de um supermercado milionário um produto no valor de dois reais.
O círculo da corrupção política, da qual os pobres são criteriosamente excluídos, é sustentado pela elástica política de corrupção.

O OBSERVADOR

AOS AMIGOS E ÀS AMIGAS, AMANTES DA LEITURA E DO VINHO,
Apresento meu blog. Poderemos conversar e trocar idéias em favor das riquezas naturais e da convivência humana.
Para começar, transcrevo a tradução, de minha autoria, da ORAÇÃO DA FREIRA, do século XVII, na qual pede a seu Deus que não deixe cair na tentação de falar demais e de saber tudo.

ORAÇÃO DA FREIRA – Século XVII


Helsinque. - Passei alguns dias de verão à beira de um magnífico lago da Finlândia, entre misteriosas florestas de pinheiros e bétulas. Encontrei afixado à parede de madeira da singular casa de verão de minha sogra, recentemente falecida à idade de cem anos, a oração de uma freira , em inglês do século XVII. A sóror anônima resumiu, em suas preces, as preocupações antecipadas de sua velhice, ao observar o comportamento de provectas mulheres piedosas, amargas e ranzinzas.
Se o leitor não tiver oração melhor, talvez esta lhe seja útil nos momentos de desencanto que a convivência humana nos traz.

“SENHOR, tu sabes melhor do que eu que estou envelhecendo e, algum dia, serei velha. Guarda-me da tendência desastrosa de pensar que deva sempre manifestar minha opinião sobre qualquer assunto e em todas as ocasiões. Faze-me prestativa, mas não de mau humor, útil mas não dominadora. Com meu vasto depósito de sabedoria é pena não usá-lo todo, mas tu sabes, Senhor, que afinal de contas quero ter alguns amigos.
Preserva minha mente livre de relatar intermináveis detalhes; dá-me forças para ser sucinta. Fecha meus lábios à lamentação de dores e penas. Elas aumentam gradualmente e, com o passar dos anos, o prazer de curti-las torna-se mais apetitoso. Não ouso pedir-te a delicadeza suficiente para fazer minhas as histórias de penas alheias. Ajuda-me, porém, a suportar essas lamúrias com paciência.
Não me atrevo a implorar-te que melhores minha memória e sim que aumentes minha humildade e me diminuas a crista de sabe-tudo quando minha memória conflita com a de outras. Ensina-me a gloriosa lição de aceitar que, ocasionalmente, possa estar errada.
Conserva-me razoavelmente afável. Não quero ser santa – com algumas delas a convivência é difícil – mas uma pessoa velha e amarga é obra-prima do demônio.
Dá-me a habilidade de apreciar o lado bom das coisas e reconhecer talentos impensáveis em pessoas simples. E dá-me, Senhor, a graça de dizê-lo a elas. Amém.”

Eugênio Giovenardi, autor do livro SOLITÁRIOS NO PARAÍSO.
eugeniogiovenardi@yahoo.com.br