domingo, 12 de outubro de 2014

CANTO UNIVERSAL



Sou a pedra, sou a terra
Sou o arbusto, sou a planta
Sou a flor, a íris, a caliandra
Sou a aranha e a ameba
Sou a serpente e o tatu-peba
Sou o pântano e o olho d’água
Sou o fruto da mangaba
Do pequi e do bacupari
Sou a ave, o gavião, o sabiá,
Sou o peixe, a tartaruga, o caracol
Sou o gato, o cão, o rato
Sou o cordeiro, sou o lobo
Sou você, sou o outro
E ambos somos todos
E todos somos a vida
Para um canto universal.


27/9/2014

DA MORTE À VIDA


Sou neto de imigrantes do norte da Itália. Enfrentaram o Atlântico. Três semanas a bordo de um navio. Subiram a Serra Gaúcha. Aculturaram-se numa terra bravia. Misturaram seu idioma à esquiva língua de açorianos.
Tudo estava por fazer a seu redor. Eles o fizeram. Povoaram as casas, as roças, os vinhedos, os vales, as montanhas, as cidades.
As madrugadas os encontravam na lide que se interrompia ao cair do sol.
Mulheres grávidas, filhos no colo, crianças depois da escola, homens jovens e velhos estavam no trabalho enquanto houvesse luz.
Às quatro horas da manhã, meu pai me despertava. Tinha eu oito anos. O boi já estava na mangueira para o sacrifício. Levávamos o animal ao cepo do matadouro. Eu segurava firme o laço. Meu pai acertava a jugular do boi. O sangue jorrava e escorria pelo chão. O animal bufava. Virava os olhos. Caia.
Vi a morte quase todas as manhãs. Era a luta pela sobrevivência. A vida dependia da morte.
Amanhecia. O sol iluminava a floresta. Eu andava dois quilômetros ao lado de colegas até a escola primária. Fui o único dos nove filhos de dona Agnese a entrar para a universidade. Nela aprendi que a morte precede a vida. E a vida é um tempo dado para ser feliz.
Por isso escrevo. Para não esquecer que, mesmo sem governos paternais, pode-se ganhar a cidadania e prestar serviços à sociedade das pessoas. Olho para o ribeirão que leva as águas ao mar. Percebo-me uma gota a encher o oceano.
Hoje, precisa-se de bolsas e de cotas para construir uma nação temerariamente desigual. E o ribeirão é feito de gotas solidárias que correm para encher o mar.


12.10.2014

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

LEVARAM MEU CELULAR



Nasci num lugarejo e num tempo em que não havia ladrões. As portas das casas não tinham chaves. Lembro-me de uma tramela frouxa na porta da cozinha que nem sempre se mantinha na posição projetada. As roupas, à noite, permaneciam no varal. Sapatos, botas e chinelos descansavam na soleira da porta.
As galinhas ciscavam livremente. Dormiam no galinheiro aberto e ali botavam e chocavam seus ovos. O galinheiro foi, desde tempos imemoriais, a tentação do inofensivo ladrão de galinhas, denunciado por elas em ruidosos protestos em plena noite de sábado.
Dandão costumava convidar amigos ao risoto do domingo para o jogo do quatrilho regado a vinho bordô da cantina Milani. Dandão só deixou o sagrado hábito do risoto quando o dono do galinheiro armou uma arapuca que lhe prendeu a perna. Vociferou de dor e vomitou meia dúzia de blasfêmias impublicáveis em coro com o desespero de galos, galinhas e pintinhos perdidos.
Hoje, são raros os ladrões de galinhas. O que mais se ouve é: levaram meu celular, roubaram meu carro, assaltaram os caixas eletrônicos do Banco do Brasil, sequestraram o casal, saquearam a joalheria do Conjunto Nacional.
A modalidade mais eficaz de roubo (também dito desvio de dinheiro público) sem violência nem derramamento de sangue é a que o senhor Costa, premiado por ter feito um afano espetacular, revelou aos juízes e delegados do Paraná. A fórmula é simples: o governo arrecada parte do dinheiro dos cidadãos (confisco legal imposto) sobre salários, produtos, vendas, compras, serviços, investimentos, empréstimos com o fim de construir o orçamento. Com esse dinheiro, o administrador da república contrata empresas privadas para executar uma obra qualquer (exploração de poços de petróleo, construção de metrô, transposição do Rio São Francisco etc...). Prepostos do governo negociam com as empresas contratadas o retorno de um percentual do valor contratado a um caixa provisório para garantir novos contratos.
Uma parte do dinheiro do governo é devolvida ao governo pelas empresas por meio desses prepostos. Eles guardam o que lhes cabe em suas contas na Suíça. Outros milhões rumam para os facilitadores da burocracia e para os partidos políticos se manterem no comando da administração da coisa pública. Há tempos, os valores eram baixos e o percentual, alto. Hoje, os valores são bilionários e 1% pode significar milhões de reais.
Como o Estado tem arapucas independentes do governo, previstas na Constituição (tribunais, polícias), os cozinheiros do risoto financeiro são presos pelas pernas bambas da contabilidade, pela ostentação do patrimônio pessoal e familiar, pelos jatinhos que voam de flor em flor, pelos automóveis de luxo dez vezes mais valiosos do que uma casa popular na periferia longínqua, pelas mansões faraônicas no país e no exterior.
Uma ínfima parte das contribuições de todos os cidadãos se destina a programas sociais (renda, educação, saúde) para contrabalançar a gangorra da desigualdade sem prejudicar as fortunas de empresas bilionárias. Uma farsa consentida.

Sofisticou-se o ladrão de galinhas. Aperfeiçoaram-se as arapucas. As quadrilhas não tem mais risoto para seu quatrilho dominical.