OUVIR A NATUREZA
(Foto: Eugênio Giovenardi, manancial preservado
na biocomunidade do Sítio das Neves)
Eugênio Giovenardi, escritor
e ecossociólogo,
Académico do IHG/DF e membro
do ICOMOS/UNESCO
O acesso à água potável é uma necessidade natural de
todas as espécies vivas e, para os humanos, uma política pública em todos os
países. O cuidado com as águas, porém, varia de país para país. Há mais de uma
década, o Rio Colorado, no Texas, não derrama suas águas no mar, por força da
intensa irrigação de produtos agrícolas.
No dia 23 de setembro de 2014, o diretor do Parque Nacional
da Serra da Canastra, Luiz Arthur Castanheira, comunicou aos brasileiros que a
nascente principal do Rio São Francisco, situada em São Roque de Minas, havia
secado. É dessa nascente que se origina o rio com 2.700 km de extensão. “Não
foi da noite para o dia. Foi de forma gradativa”, afirmou Castanheira. Foram
anos de descaso, de mutilação do Cerrado, de exploração inadequada do solo.
Saber que essa nascente tem milhares de anos de história trazida do subterrâneo
da terra e morreu pela incúria da mão humana é motivo para pensar, se não para
chorar.
Informações
recentes indicam que as águas salgadas do mar entram por mais de dez quilômetros
pela foz do São Francisco, perturbando a reprodução de peixes e mudando os
hábitos dos pescadores e ribeirinhos. Até quando a transposição do Velho Chico
suportará os maus tratos que recebe desde suas cabeceiras?
Há dois ou três anos, o Rio Doce, que nasce em Minas Gerais, já não chega
ao Oceano Atlântico em virtude da devastação impiedosa da mineração, da
agricultura e bovinocultura.
Aos brasilienses vale lembrar um trecho do relatório
do botânico e engenheiro Auguste Glaziou, membro da Missão Cruls, entre 1882 e
1884, referente ao vale que depois se tornou Lago Paranoá: “...Cheguei a um
vastíssimo vale banhado pelos rios Torto, Gama, Vicente Pires, Riacho Fundo,
Bananal e outros. Impressionou-me profundamente a calma severa e majestosa
desse vale.”
E o relatório da mesma Expedição, elaborado em 1884,
informa: “Existem na área, diversos cursos d'água que se unem e dirigem-se para
um penhasco, formando um novo rio. Possivelmente, naquela região, deveria
existir um lago pré-histórico. Se fizermos uma barragem neste penhasco, um lago
navegável, em ambas direções, poderá novamente ser formado.”
Parece-me extrair dessas constatações singelas que os
integrantes da Missão Cruls imaginavam que a nova cidade, coração da república,
se levantaria “calma e majestosa” ao longo e largo da bacia hidrográfica do
Lago Paranoá. O Lago seria “navegável em ambas direções” e ofereceria à
mobilidade urbana uma alternativa de transporte.
Ao invés dessa quietude, o Lago recebeu quatro pontes
de fuga para os cidadãos apressados. Os aspectos utilitários, sugeridos pela
pressa e pelo imediatismo lucrativo, premidos pelo aumento implacável da
população, transformaram o Lago Paranoá em repositório de águas usadas. E, em
razão das dificuldades de abastecimento hídrico à população, a introdução de uma
usina-barcaça de captação e limpeza de águas, outrora cristalinas, alterará a
paisagem grandiosa do lago.
Estimativa comedida indica que, embora afetados pelo
incômodo racionamento, os habitantes do Plano Piloto, Guará, Núcleo
Bandeirante, Riacho Fundo e Águas Claras se dão ao luxo de jogar, todos os
dias, no Lago Paranoá mais de 95 milhões de litros de águas usadas. Esse
volume, 66 mil litros por minuto, representa quase metade da água captada
diariamente do reservatório do Descoberto por 62% da população. As águas usadas
se tornaram um dos principais afluentes do Lago Paranoá.
Distintas tecnologias de custos variáveis e algumas
delas com custos mínimos, no DF, podem ser imediatamente aplicadas para recuperar
e preservar os mananciais. Mas para isso é preciso adaptar as atividades
humanas à oferta de água que a natureza nos dá. E, atualmente, aceitar e
administrar o regime irregular das chuvas. Em primeiro lugar, é necessário rever
o estado das microbacias e mananciais que alimentam os aquíferos e marcar uma
ampla linha de proteção da vegetação auxiliar das nascentes. Plantio de árvores
isoladas, sem a vegetação milenar e própria do cerrado em torno dos mananciais,
pouco ou nada aumenta a recarga dos aquíferos.
Urgente é ampliar, com determinação política e
envolvimento das comunidades, investimentos imediatos na captação de águas
pluviais nos edifícios públicos, blocos de condomínios, residências e galerias
subterrâneas.
É imprescindível a difusão de tecnologias existentes,
diferenciadas e adequadas, segundo o tipo de utilização da água, para o consequente
reuso. A mudança de atitudes, concepções e hábitos pode levar tempo. Mas se não
começarmos hoje, nossos netos e bisnetos serão vítimas de nosso descaso ou comodismo.
Os 40 mil brasilienses, que nascem todos os anos,
dependem dos cuidados inteligentes da população atual na arrumação dos espaços
da casa comum. É verdade que a estiagem agrava a escassez de água. Porém, o ritmo
do aumento da população e o conssequente superpovoamento do DF não darão
perspectivas esperançosas aos novos habitantes da capital do país. Ouvir a
natureza é a atitude mais inteligente da espécie humana.
(Publicado no Correio Braziliense em 21.3.2017)