segunda-feira, 27 de março de 2017

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terça-feira, 21 de março de 2017

OUVIR A NATUREZA

OUVIR A NATUREZA
(Foto: Eugênio Giovenardi, manancial preservado 
na biocomunidade do Sítio das Neves)

Eugênio Giovenardi, escritor e ecossociólogo,
Académico do IHG/DF e membro do ICOMOS/UNESCO

O acesso à água potável é uma necessidade natural de todas as espécies vivas e, para os humanos, uma política pública em todos os países. O cuidado com as águas, porém, varia de país para país. Há mais de uma década, o Rio Colorado, no Texas, não derrama suas águas no mar, por força da intensa irrigação de produtos agrícolas.
No dia 23 de setembro de 2014, o diretor do Parque Nacional da Serra da Canastra, Luiz Arthur Castanheira, comunicou aos brasileiros que a nascente principal do Rio São Francisco, situada em São Roque de Minas, havia secado. É dessa nascente que se origina o rio com 2.700 km de extensão. “Não foi da noite para o dia. Foi de forma gradativa”, afirmou Castanheira. Foram anos de descaso, de mutilação do Cerrado, de exploração inadequada do solo. Saber que essa nascente tem milhares de anos de história trazida do subterrâneo da terra e morreu pela incúria da mão humana é motivo para pensar, se não para chorar.
Informações recentes indicam que as águas salgadas do mar entram por mais de dez quilômetros pela foz do São Francisco, perturbando a reprodução de peixes e mudando os hábitos dos pescadores e ribeirinhos. Até quando a transposição do Velho Chico suportará os maus tratos que recebe desde suas cabeceiras?
Há dois ou três anos, o Rio Doce, que nasce em Minas Gerais, já não chega ao Oceano Atlântico em virtude da devastação impiedosa da mineração, da agricultura e bovinocultura.
Aos brasilienses vale lembrar um trecho do relatório do botânico e engenheiro Auguste Glaziou, membro da Missão Cruls, entre 1882 e 1884, referente ao vale que depois se tornou Lago Paranoá: “...Cheguei a um vastíssimo vale banhado pelos rios Torto, Gama, Vicente Pires, Riacho Fundo, Bananal e outros. Impressionou-me profundamente a calma severa e majestosa desse vale.”
E o relatório da mesma Expedição, elaborado em 1884, informa: “Existem na área, diversos cursos d'água que se unem e dirigem-se para um penhasco, formando um novo rio. Possivelmente, naquela região, deveria existir um lago pré-histórico. Se fizermos uma barragem neste penhasco, um lago navegável, em ambas direções, poderá novamente ser formado.”
Parece-me extrair dessas constatações singelas que os integrantes da Missão Cruls imaginavam que a nova cidade, coração da república, se levantaria “calma e majestosa” ao longo e largo da bacia hidrográfica do Lago Paranoá. O Lago seria “navegável em ambas direções” e ofereceria à mobilidade urbana uma alternativa de transporte.
Ao invés dessa quietude, o Lago recebeu quatro pontes de fuga para os cidadãos apressados. Os aspectos utilitários, sugeridos pela pressa e pelo imediatismo lucrativo, premidos pelo aumento implacável da população, transformaram o Lago Paranoá em repositório de águas usadas. E, em razão das dificuldades de abastecimento hídrico à população, a introdução de uma usina-barcaça de captação e limpeza de águas, outrora cristalinas, alterará a paisagem grandiosa do lago.
Estimativa comedida indica que, embora afetados pelo incômodo racionamento, os habitantes do Plano Piloto, Guará, Núcleo Bandeirante, Riacho Fundo e Águas Claras se dão ao luxo de jogar, todos os dias, no Lago Paranoá mais de 95 milhões de litros de águas usadas. Esse volume, 66 mil litros por minuto, representa quase metade da água captada diariamente do reservatório do Descoberto por 62% da população. As águas usadas se tornaram um dos principais afluentes do Lago Paranoá.
Distintas tecnologias de custos variáveis e algumas delas com custos mínimos, no DF, podem ser imediatamente aplicadas para recuperar e preservar os mananciais. Mas para isso é preciso adaptar as atividades humanas à oferta de água que a natureza nos dá. E, atualmente, aceitar e administrar o regime irregular das chuvas. Em primeiro lugar, é necessário rever o estado das microbacias e mananciais que alimentam os aquíferos e marcar uma ampla linha de proteção da vegetação auxiliar das nascentes. Plantio de árvores isoladas, sem a vegetação milenar e própria do cerrado em torno dos mananciais, pouco ou nada aumenta a recarga dos aquíferos.
Urgente é ampliar, com determinação política e envolvimento das comunidades, investimentos imediatos na captação de águas pluviais nos edifícios públicos, blocos de condomínios, residências e galerias subterrâneas.
É imprescindível a difusão de tecnologias existentes, diferenciadas e adequadas, segundo o tipo de utilização da água, para o consequente reuso. A mudança de atitudes, concepções e hábitos pode levar tempo. Mas se não começarmos hoje, nossos netos e bisnetos serão vítimas de nosso descaso ou comodismo.
Os 40 mil brasilienses, que nascem todos os anos, dependem dos cuidados inteligentes da população atual na arrumação dos espaços da casa comum. É verdade que a estiagem agrava a escassez de água. Porém, o ritmo do aumento da população e o conssequente superpovoamento do DF não darão perspectivas esperançosas aos novos habitantes da capital do país. Ouvir a natureza é a atitude mais inteligente da espécie humana.
(Publicado no Correio Braziliense em 21.3.2017)