quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

LIXO NOSSO DE CADA DIA




Eugênio Giovenardi, escritor, acadêmico do IHG/DF e membro do ICOMOS. (Publicado no Correio Brasiliense, 26.12.2016)

O sistema econômico mundial de produção-consumo-produção fundamenta seu lucro e eficácia no aumento da população consumidora. Não é comum querer comprar três relógios Rolex. Porém, qualquer pessoa precisa de água e comida todos os dias. O crescimento da população, além das necessidades essenciais de sobrevivência, vem cercado de estímulos cada dia mais diversificados para seu conforto com bens úteis e inúteis, de curta duração. Essa imensa gama de bens de consumo alimenta a usina autossustentável de fabricação de lixo líquido e sólido. O lixo seja talvez um dos itens que não entram no planejamento urbano e parece não ter sido preocupação na maioria dos projetos de engenharia e arquitetura urbana do Distrito Federal.
Com o crescimento da população e consequentemente do consumo de bens industrializados, a tendência é que o lixo aumente na mesma ou em maior proporção com a entrada no comércio de produtos com obsolescência programada. Produtos que duravam 10 a 20 anos, hoje são descartados em poucos meses.
As ações dirigidas ao lixo têm um sentido curativo e não preventivo. Uma ação preventiva e inteligente buscaria minimizar a produção de lixo liquido, orgânico ou sólido. No entanto, as ações curativas, mais dispendiosas do que as preventivas, se arrastam em demorados projetos sanitários da administração pública com a construção de galpões de reciclagem e aterros sanitários.  Corre-se atrás do lixo, e apenas a uma parte dele. Espera-se que a água suja ou usada chegue aos córregos ou ao Lago Paranoá para tomar medidas de purificação e devolvê-la aos cidadãos. Grande parte dos projetos de esgotamento de águas pluviais é proposta depois de inundações, desmoronamentos, destruição de casas e mortes de cidadãos. Projetos de captação de águas pluviais e reflorestamento de áreas comuns são, até hoje, exceções.
Ian McHarg (1920-2001), planejador e arquiteto urbanista de projetos de base ecológica, professor da Universidade da Pensilvânia, foi um dos principais críticos do consumo dos bens físicos no mundo. Contratado, em 1971, para projetar a construção de Woodlands New Town, para uma população de 50 mil habitantes, no estudo prévio, determinou os “requisitos de desempenho para a manutenção dos valores sociais representados pelo ambiente natural”. Dentre eles: “o cuidado com nascentes e perigo de enchentes; riscos para a vida e saúde, ocasionados pela ação humana e relacionados com a qualidade da água, recarga de aquíferos, perfuração de poços artesianos e solos inadequados para despejo de dejetos”. A expansão de Brasília parece não só desconhecer, como ignorar esses valores sociais do urbanismo, essenciais para a convivência dos cidadãos.
Todos os dias, o Serviço de Limpeza Urbana (SLU) do Distrito Federal recolhe das ruas 2,7 mil toneladas de lixo. Desse total, apenas 1,2 mil recebem tratamento. Segundo o SLU, as 900 toneladas serão despejadas no Aterro de Samambaia recém-liberado para receber os rejeitos não reaproveitáveis. Quantos milhões de reais foram investidos nessas 900 toneladas que, em troca, emitirão chorume que fatalmente contaminará o solo, o ambiente respirável, os cursos de água e os aquíferos interiores.
Esse acúmulo de lixo não aproveitável, é acrescido de toneladas de lixo espalhadas pelas quadras do Plano Piloto e cidades satélites ou às margens das rodovias, como se observa entre Taguatinga e Ceilândia. São fonte permanente de poluição ambiental e difusão de bactérias que afetam as águas, as árvores e as pessoas. Esses dados são ainda mais preocupantes se considerarmos que boa parte desse lixo é jogada no Lixão da Estrutural, o maior lixão a céu aberto em operação na América Latina. Desse Lixão depende a sobrevivência diária de mil catadores e suas famílias em condições insalubres e degradantes
Os resíduos sólidos, como sucata de automóveis, computadores, aparelhos celulares e eletrodomésticos, ainda aguardam o cumprimento da legislação específica pela indústria, comércio e administração pública. O advento da TV digital, que entrou em vigor em Brasília no dia 26 de outubro passado, produziu efeitos imediatos com o aparecimento de carcaças de televisores à beira de estradas do DF. Na BR-060, entre os KM 1 e 9, nas margens de Samambaia, há 21 pontos de acúmulo de lixo diversificado, a céu aberto, originado de residências, escolas, indústrias, lojas comerciais e da construção civil.
É de se desejar que ações administrativas mais eficientes na classificação e tratamento do lixo expressem a grandeza de uma cidade que é Patrimônio Cultural da Humanidade.

15.12.2016



sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

POR QUE OUSO DIZER




Cedo ao impulso de dizer, sem presunção, que dediquei mais de quarenta anos à preservação da vida vegetal e animal, do ambiente e das águas, na biocomunidade do Sítio das Neves, área de cerrado no Planalto Central.
Quem e quantos, no Distrito Federal e no Brasil, realizam ações concretas que propiciem a regeneração de um bioma ou parte dele?
Quem e quantos desenvolveram um sistema planejado de recuperação de áreas degradadas com proteção de espécies nativas originais?
Quem e quantos se preocupam com a captação de águas da chuva para recarga dos aquíferos e fortalecimento de nascentes, numa bacia hídrica integral, com barragens em todos os canais de esgotamento?
Quem e quantos podem exibir resultados ao longo de 40 anos? Alegro-me de ser um deles.
Infelizmente, não possuo informações sobre tantos ecologistas que, como eu, compreenderam os equívocos do crescimento econômico destruidor da natureza. Gostaria de nominá-los para me alegrar com sua presença quase invisível e silenciosa.
Sei que há bons exemplos nos quintais urbanos de paisagismo e cuidados para integração de fauna e flora. Que há estímulos do governo para pequenos grupos de agricultores, estimulando-os a gastar menos água no processo produtivo, depois de verem esgotadas as nascentes e a terra.
Quem do PV ou ONGs ambientais têm projetos ou planos ou programas em desenvolvimento que sejam rumos a seguir?
Ibama, Fundação Chico Mendes, Ibram, Sema, Ministério do Meio Ambiente, além de atos políticos e legais, quais iniciativas poderiam indicar como exemplo possível de somar-se aos que se dedicam à proteção ambiental? Ou chegaremos sempre depois que a lama e as inundações aumentam a indignação e a tristeza dos vivos ou o lamento pelos mortos?
O Sítio das Neves, no Distrito Federal, é uma iniciativa cidadã, particular, sem ajuda do erário público nem da orientação governamental. É um investimento para o futuro ambiental do Planalto Central.
Meu trabalho garante 700.000 litros de água diária, à noite, , graças ao orvalho que se acumula sobre a vegetação do Sítio.
Liberei estes 70 hectares, pouco mais de um milésimo da área do DF, da especulação imobiliária e do primitivo e irracional processo de produção de alimentos.
Garanto água limpa e abundante, que brota de nascentes e alimenta córregos para as próximas décadas, se as queimadas, os poços tubulares ou artesianos não esgotarem os aquíferos da região.
Tenho a oferecer uma universidade vegetal a estudiosos, a amantes da natureza, a cidadãos que desejam preservar o que temos de essencial no país: árvores e água.
Passados quarenta anos de experiência e atos de preservação, posso, com segurança, aconselhar governos a criarem milhões de empregos verdes ao longo de rios, ao redor de mananciais e às margens de milhares de quilômetros de rodovias para proteger mais de 500 cidades anualmente vítimas de alagamentos.


12.7.2014

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

ÁGUA NOSSA DE CADA DIA


( Artigo publicado no Correio Braziliense, em 25.11.2016) 
Eugênio Giovenardi, ecossociólogo, autor de UMA OBRA EM VERDE, entre outros

As mudanças climáticas bateram à nossa porta não sem avisos prévios. Antes do Clube de Roma, 1972, escritores russos, como Anton Tchekhov (1870-1904), ou franceses, como Marguerite Yourcenar (1903-1987), advertiram a espécie humana sobre o desmatamento, a poluição de rios e o esgotamento dos ecossistemas. O desrespeito à ecologia e a indiferença com o ambiente se agravaram com o crescimento exponencial da população humana nas seis primeiras décadas de 1900.
A intensidade do uso dos bens naturais limitados para a sobrevivência e a reprodução de todas as espécies vivas do planeta, incluído o homo sapiens, depende essencialmente do número de bocas. Os bens essenciais são água e alimentos. Uma pessoa precisa, por dia, de 110 litros de água, segundo a Organização Mundial da Saúde e ao redor de 1 kg de comida. Um bovino, que oferece carne ou leite, ingere 30 kg de comida por dia e consome 15 mil litros de água para converter esses alimentos em um kg de carne. E são necessários mil litros de água para se obter da vaca um litro de leite.
Para produzir um quilo de arroz, um pivô central precisa tirar do subsolo 2.500 litros de água sem a responsabilidade de os repor. Água para produzir alimentos é apenas o ponto de partida para todos os demais usos que dela faz a espécie humana.
Divulga-se que Brasília foi projetada para uma população ideal de 500 mil habitantes. O consumo mínimo de água por dia desses habitantes seria de 55 milhões de litros de água e 500 mil kg de comida. A população atual, 55 anos depois, chega a três milhões. A quantidade de comida passou de 500 mil para três milhões de kg e o consumo de água, de 55 para 330 milhões de litros/dia. 
Esse consumo de água se refere apenas à reposição diária por pessoa, sem contar os diferentes usos de água que vão da limpeza urbana à lavagem de carros, nas quadras e superquadras de Brasília, regadio de jardins ou para a indústria, o comércio e a produção de alimentos.
Esse consumo direto de água visível é multiplicado pelo consumo de água invisível em forma de energia elétrica. Segundo especialistas em geração de energia hidrelétrica, para produzir um KW são necessários 6.600 litros de água. O consumo médio de energia por pessoa/dia é de 3 KW, que requerem 19.800 litros de água. Tudo somado, só a população atual de Brasília requer, para seu conforto diário, 198,3 bilhões de litros de água. Não temos toda essa água no DF. E, a cada ano, ao redor de 60 mil novos habitantes se somam à população do DF, equivalente ao tamanho do bairro Vicente Pires. Não é de estranhar que as grandes represas do país estejam com baixos níveis de água. Cabe inculcar na população esta mensagem permanente: para poupar água, apague a luz.    
Esses dados relativos ao aumento da população e suas necessidades diversificadas, ampliadas pelo estimulo ao consumo desmedido de bens úteis e inúteis são os elementos básicos a determinar uma inteligente gestão econômica da água.
No Distrito Federal, há, pelo menos, seis órgãos públicos responsáveis pela gestão da água, mas atuam como rodas soltas segundo suas competências institucionais. A dissintonia institucional permite que representantes de empresas de perfuração de poços artesianos, sem temor da fiscalização, revelem sua autonomia de decisão a potenciais clientes: “Não precisa falar com ninguém. Isso não é fiscalizado. Todo mundo faz assim” (CB, 5.11.2016)
Por outro lado, a população não tomou consciência da gravidade das consequências das mudanças climáticas. E uma delas é a irregularidade das chuvas. A única fonte perene de abastecimento de água e recarga das nascentes é a chuva. Uma das medidas administrativas essenciais dos órgãos públicos, com autoridade gerencial e a participação da população, é planejar e executar sistemas diferenciados de captação e armazenamento de águas da chuva.
Em épocas de escassez, discute-se a elevação do preço da água. Ameaça-se com racionamento. Obriga-se a individualização dos hidrômetros. Recomendam-se projetos de reuso da água e outros truques. Essas medidas, ainda que necessárias, são subsidiárias e não estimulam na população comportamentos de longo prazo nem aumentam o volume das represas e rios.
Urgente, diante da irregularidade das chuvas, é a captação de águas pluviais, no campo e nas cidades, e de múltiplas formas. A captação para recarga dos aquíferos, como solução ecológica e permanente, se faz, como em Tóquio, com galerias de reserva. Reforça-se com arborização intensa, metro a metro, generosa proteção de nascentes, olhos d‘água e com a desimpermeabilização das cidades.
Dada a importância do berço das águas, é de extrema responsabilidade dos administradores atentar para o limite da capacidade de suporte do DF quanto ao crescimento explosivo da população e a consequente pressão sobre os aquíferos superficiais e subterrâneos.