terça-feira, 29 de julho de 2014

CHUVA DA MANGA

(Foto: Sítio das Neves, flor da Falsa Íris. Eugênio Giovenardi)


Há quarenta anos, nos primeiros quinze dias de julho, esperava-se a chuva da manga ou do caju. Tempo frio. Roupas de inverno. Meias grossas.
O céu se cobria de nuvens finas e escuras. Fechava-se pouco a pouco. As primeiras gotas não chegavam ao chão. Evaporavam-se no ar ressequido. Aos poucos, a quase neblina se esparramava com suavidade sobre a vegetação sedenta.
Nos últimos anos, não foi rotineira a chuva da manga sobre as mangueiras floridas. Com bastante atraso, nos derradeiros dias de julho deste ano, na região sul do Distrito Federal, caiu a chuva da manga. Poucos milímetros.
O terreno preparado com vegetação abundante para receber a chuva, o pouco somado tornou-se muito. Três milímetros sobre 700 mil metros quadrados, no Sítio das Neves, somam 2,1 milhões de litros de água sobre a vegetação.
A alegria foi geral. Dançaram as folhas das árvores. Cantaram as seriemas e as saracuras. Coaxaram sapos e rãs à beira do riacho. A felicidade vegetal inundou o cerrado.



quinta-feira, 24 de julho de 2014

TAMBÉM TU BRUTUS



É estranho que, numa sociedade pretensamente evoluída como a nossa, e assim se considera, um percentual criado por métodos estatísticos seja invocado como uma ameaça à ordem política e econômica.
Em outros comentários, declarei-me favorável ao crescimento econômico zero, com a ressalva de experimentar novas formas para a conquista da prosperidade como recompensa do trabalho criativo.
Dos 200 milhões de brasileiros, pode-se afirmar que 150 milhões não sabem o que é PIB. Se sobe ou desce, não os impede de comer e fazer filhos.
Milhares de espécies de árvores e animais de nossas florestas, se consultados, aprovariam um PIB zero. Qualquer avanço do PIB é uma ameaça fatal às plantas, aos animais e, por consequência, à sobrevivência da espécie humana.
O Produto Interno Bruto é, por definição, bruto. E poucos são os artistas econômicos e políticos capazes de modelá-lo. Um bloco de mármore bruto esconde futura estátua ou sólido edifício. Escultor nenhum que tenha ideias e intenções a comunicar, esculpindo o mármore bruto, despreza-o por ser duro e coberto de camadas a serem eliminadas por seu trabalho árduo.
Diante de um bloco de mármore bruto, pequeno ou grande, não se é autorizado a desdenhá-lo por seu tamanho. Ninguém é tão insensato que só queira escalpelar imensos blocos de mármore e dar-lhes uma única forma ideal ao gosto de espectadores. É possível dar uma forma excepcional a um pequeno bloco de mármore bruto para ser visto com admiração por visitantes. Ou decorar brilhantemente uma sala de encontros.
Um grande bloco de mármore de Carrara pode se transformar em um Davi. Raros, porém, são os Davi. Aparecem escassamente. Exigem anos de trabalho e seu deslocamento causa enormes transtornos.
Por que certos escultores da economia querem um imenso bloco de mármore bruto? Um gigantesco produto interno bruto? O que pretendem fazer com ele? Embora, hoje, esse número pequeno, inferior a 1, seja desprezado e vilipendiado como desmancha-prazeres da felicidade consumista, o que se observa desmente os detratores do minúsculo PIB.
Outrora ditos estádios, as arenas da Copa da infortunada derrota da seleção brasileira se encheram de diferentes torcidas a preços salgados.
Os aeroportos continuam acolhendo milhares de aviões que transportam milhões de passageiros, carregados de malas, indo e vindo de norte a sul.
As estações rodoviárias despacham milhares de ônibus interurbanos que percorrem milhares de quilômetros de estradas asfaltadas.
Constroem-se estacionamentos para o descanso de milhões de automóveis. Levantam-se viadutos sobre abismos e no bojo de cidades, demolidos por obsolescência prematura, desperdício de material e mortes de transeuntes.
As agências de automóveis estão em permanente festa, promocionando vendas com esquisitíssimas formas de publicidade cansativa e cara.
O governo e seus agentes do fisco recolhem bilhões de reais dos contribuintes. Os bancos demonstram parte dos lucros bilionários nos balanços publicados em cadernos de jornais.
Pelos portos e aeroportos do país exportam-se toneladas de alimentos e importam-se caríssimos produtos de alta tecnologia.
Os restaurantes de bares exibem diariamente superlotação de clientes. Os caixas de supermercados enfrentam longas e irritantes filas de fregueses. Os hospitais regurgitam pacientes dia e noite. As universidades públicas e privadas recrutam duas vezes ao ano milhares de jovens.
A nova classe média e os extraídos da fossa da pobreza disputam com sua renda, assegurada por generosos programas sociais, os melhores lugares nas arquibancadas do consumo. Milhões de desempregados e jovens desinteressam-se de buscar novo ou o primeiro emprego sem deixar de consumir o necessário e o supérfluo.
É raro ver um cidadão com mais de cinco anos de idade, na rua, nos consultórios, nas filas de qualquer coisa, sem operar um celular ou brincar no tablet ou fazer pesquisa escolar no Google.
Miami, Nova Iorque e Paris arrecadam bilhões de dólares de brasileiros em compras, diárias de hotel, restaurantes, museus e passagens.
Por que vilipendiar o pequeno PIB se ele satisfaz necessidades, desejos, prazeres, ambições e sonhos dos que têm pouco e dos que têm muito? Se o PIB minúsculo garante aos 200 milhões de brasileiros a alegria de ter sombra e água fresca, por que políticos, economistas e analistas econômicos, agraciados com alto poder de compra, querem que ele cresça e intumesça ao embalo de suas mãos?
Não será o PIB um substituto de ordem freudiana?


23.7.2014

terça-feira, 22 de julho de 2014

A ESPÉCIE OPORTUNISTA



Há evidências flagrantes de que a sobrevivência e a destruição da espécie humana repousam sobre a frágil linha de sua capacidade inventiva.
A invenção do avião permite ao ser humano buscar em qualquer parte do planeta a solução de dificuldades. Leva ou traz alimentos para se manter vivo. Outra invenção de origem caçadora e assassina pode derrubar o avião, incendiar navios, demolir cidades inteiras, arrasar o ambiente que o acolhe.
A simples pedra lançada outrora pela funda e, hoje, o míssil de longo alcance dão ao ser sapiens a perigosa alternativa de viver ou morrer. De sobreviver ou de perecer. De ser feliz ou de desesperar-se.
Nunca, talvez, como nesta época, a função cerebral da inventiva seja tão ameaçadora. A inteligência do ser humano é seu principal desafio na travessia de mares e abismos no caminho da sobrevivência.
Como o homo sapiens não depende só de um alimento, como o tamanduá de formigas, para sobreviver procura distintas oportunidades e as transforma em alimento. Esse oportunismo lhe garante distintos ingredientes para seu almoço. Diversificou, ao longo da história, a quantidade e a qualidade da caça, ora aqui, ora ali, no inverno ou no verão.
Uma das fraquezas da espécie sapiens é não dar atenção aos limites. O oportunismo do caçador esbarra na possível e provável extinção da caça limitada. A caça pode durar um tempo indefinido, mas tudo acaba.
As invenções que podem assegurar a vida, melhorá-la e dar-lhe alegrias estão causando ao mesmo tempo, sofrimento e mortes.
O açougue da espécie humana abate diariamente milhares de vidas sem dó, sem nojo do sangue de corpos despedaçados. O instinto assassino da espécie humana frequentemente se sobrepõe a sua capacidade de dialogar. A palavra é a melhor forma de superar o fuzil.


22.7.2014

A FOME DOS BICHOS


(foto: Jiboia engolindo filhote de pato. Sítio das Neves. Eugênio Giovenardi

Os bichos do mato estão com fome.
Saracuras e lagartos (tiús) entram do terreiro das galinhas e devoram os ovos.
A jararaca criada se aninha no leito das patas esperando a refeição quentinha.
A jiboia não se alterou com a presença do macaco pelado e se atirou sobre o jovem pato.
Os coatis, em época de poucas frutas no cerrado devastado, arrombam a tela fina e avançam sobre os pintinhos. Lutam com a galinha choca. Os mais fraquinhos e recém-saídos do ovo levam a pior.
A raposa e o gato-do-mato levam a desatenta galinha a ciscar o chão em busca da minhoca.
O sabiá vem comer a banana na gamela sobre a mesa da varanda e protesta contra a presença do macaco pelado.
Defendemos os bichos caseiros de maneira que não se ponha em risco a sobrevivência dos bichos do mato.
A interdependência dos seres vivos é uma lei da natureza e ninguém pode reclamar preferência diante da fome. A fome é um princípio de igualdade.
A espécie humana é especialista em esvaziar armazéns de comida alheia.

21.7.2014

segunda-feira, 14 de julho de 2014

POR QUE OUSO DIZER



Cedo ao impulso de dizer sem presunção que dediquei mais de quarenta anos à preservação da vida vegetal e animal, do ambiente e das águas, no Sítio das Neves, área de cerrado no Planalto Central.
Quem e quantos, no Distrito Federal e no Brasil, realizam ações concretas que propiciem a regeneração de um bioma ou parte dele? Sou um deles.
Quem e quantos desenvolveram um sistema planejado de recuperação de áreas degradadas com proteção de espécies nativas originais? Sou um deles.
Quem e quantos se preocupam com a captação de águas da chuva para recarga dos aquíferos e fortalecimento de nascentes, numa bacia hídrica integral, com barragens em todos os canais de esgotamento? Sou um deles.
Quem e quantos podem exibir resultados ao longo de 40 anos? Sou um deles.
Infelizmente, não possuo informações sobre esses ecologistas que, como eu, compreenderam os equívocos do crescimento econômico destruidor da natureza.
Sei que há bons exemplos nos quintais urbanos de paisagismo e cuidados para integração de fauna e flora. Que há estímulos do governo para pequenos grupos de agricultores, estimulando-os a gastar menos água no processo produtivo, depois de esgotarem as nascentes e a terra.
Quem do PV ou ONGs ambientais tem projetos ou planos ou programas em desenvolvimento que possa demonstrar?
Ibama, Fundação Chico Mendes, Ibram, Semarh, Ministério do Meio Ambiente, além de atos políticos e legais, quais iniciativas poderiam indicar como exemplo possível de somar-se aos que se dedicam à proteção ambiental?
O Sítio das Neves, no Distrito Federal, é uma iniciativa cidadã, particular, sem ajuda do erário público nem da orientação governamental. É um investimento para o futuro ambiental do Planalto Central.
Meu trabalho garante 700.000 litros de água diária, à noite, sobre a vegetação do Sítio graças ao orvalho que sobre ela se acumula.
Liberei esta área de 70 hectares da especulação imobiliária e do primitivo e irracional processo de produção de alimentos.
Garanto água limpa e abundante, que brota de nascentes e alimenta córregos para os próximos séculos, se as queimadas, os poços tubulares ou artesianos não esgotarem os aquíferos da região.
Tenho a oferecer uma universidade vegetal a estudiosos, a amantes da natureza, a cidadãos que desejam preservar o que temos de essencial no país: árvores e água.
Passados quarenta anos de experiência e atos de preservação, posso, com segurança, aconselhar governos a criarem milhões de empregos verdes ao longo de rios, ao redor de mananciais e às margens de milhares de quilômetros de rodovias para proteger mais de 500 cidades anualmente vítimas de alagamentos ou de represas exauridas pela devastação de florestas.


12.7.2014

sábado, 12 de julho de 2014

MUITO POUCO

 (crônica)

Preciso de tão pouco. O ar que respiro. Invisível. Vital.
Um olhar sincero. Um sorriso afável. Uma palavra saudável.
Um gesto solidário. Um abraço apertado. Recebido e dado.
Um copo d’água. Um pão de centeio. Uma taça de vinho.
A sombra de árvores. O chuá do ribeirão.
Um livro, dois livros, vários livros.
Escutar Lago de Como à noitinha.
Ouvir uma harpa no lago azul de Ipacaraí.
Cantar Saudades do matão ao violão.
Caminhar pelo cerrado. Abraçar árvores tortas de sede e fogo.
Sair à noite e ouvir estrelas.
Caminhar, caminhar todos os caminhos.
Poucas palavras. Dizer que amei. Imensamente.
Amei você que apareceu no meio do meu caminho.
Você que brotou de nós.
Vocês que brotaram de quem brotou de nós.
Quero pouco. Nem sempre o tenho. Nem sempre o dou.
Por fim, aprende-se que o pouco somado é muito.


11.7.2014

sexta-feira, 4 de julho de 2014

REJEIÇÃO ÀS ÁRVORES


A destruição da natureza, o corte sistemático de árvores, o aniquilamento de milhares de vidas ao longo de milênios, a desertificação das margens dos rios, para erguer habitações e cidades, guardam relação profunda com a primitiva forma de sobrevivência herbívora da espécie humana.
Há mais de 200.000 anos, nossos antepassados tinham nas árvores o abrigo e a alimentação. A evolução nos deu um cérebro capaz de perceber as mudanças climáticas. Presenteou-nos com habilidades manuais para fabricar artefatos novos de sobrevivência.
Pôde, então, a nova espécie das linhas genéticas simiescas descer das árvores, aventurar-se pelas selvas e pradarias. Banhar-se nas águas. Esconder-se nos socavões e cavernas que apareciam com o baixar dos mares.
Aprenderam de felinos e caninos a arte da caça, germe de futuras guerras. À fase herbívora, que durara milênios, sucedeu a carnívora. Uma virada e tanto. As mãos que colhiam folhas, flores e frutos serviram friamente ao instinto assassino que floresceu nas novas circunstâncias. Matar! A espécie humana aprendeu a matar. Incorporou na cultura da sobrevivência o assassinato, a morte de outras vidas e de seus semelhantes.
As árvores, que alimentaram e abrigaram a espécie humana e lhe deram o carinho maternal, passaram a segundo plano. Sair à caça como os leões, gatos, tigres e cães lhe abriu novas perspectivas. Revolucionou a organização social da sobrevivência para a reprodução da espécie. Estabeleceu os primeiros pilares da competição social entre os vários clãs.
A rejeição das árvores se consolidou com invenções orientadas ao assassinato de animais para comer. Pedras pontiagudas arremessadas, galhos transformados em flechas e lanças, fundas para lançar calhaus à distância fizeram da caça a ousada profissão de matar. Tornou-se caçador o macho homem em busca da presa. E a presa transformou-se em sonho e objeto de desejo. Onde estão e quais serão as novas presas?
Desde o começo da rejeição da árvore, estabeleceu-se a perigosa alternância: um dia é do caçador, outro, da caça. Os perigos desta vida vêm conosco desde a origem.
A ocupação gradativa das áreas geográficas do planeta, a migração de grandes populações, a matança sistemática de animais para a alimentação, estenderam-se durante milênios. Florestas foram abatidas a machados de pedra e de aço. O fogo tornou-se um decisivo auxiliar no desbravamento de imensas regiões.
Nos últimos 15.000 anos, se consolidou a rejeição ao materno ventre arbóreo. As florestas, berço de nossa espécie, foram substituídas por animais que serão mortos com técnicas modernas de assassinato para saciar a fome de sete bilhões de ex-herbívoros.
O desprezo pelas árvores assemelha-se à rejeição do ventre materno. Pretendeu ser uma saída para a independência ilusória. A interdependência dos seres vivos, porém, é uma lei da natureza e um princípio ecológico dos quais a espécie humana não pode prescindir.
Conquistar o equilíbrio entre a independência da espécie humana e a interdependência de todos os seres vivos na competição social é imprescindível para que o instinto assassino adquirido, e atuante na cultura, não transforme o dia do caçador no dia da caça.

É tempo de assinar um armistício entre a espécie humana e a natureza para consolidar a convivência social e viver em paz.