terça-feira, 29 de junho de 2010

É DO BRASIL

Durante o torneio da Copa do Mundo de Futebol, quando a seleção brasileira entra em campo, o Brasil para. A convocação é federativa. Todos a correr, uns com os pés, outros com os olhos, atrás de uma bola. É, por vezes, tanta a paciência reprimida dos 200 milhões de jogadores que, nos 95 minutos de corrida insana, não conseguem meter a esfera entre os paus da porteira.
Nesses 95 minutos de expectativas, ansiedades, palavrões, frustrações, indignações, ataques cardíacos, roubos a lojas e carros, gritos de guerra, lágrimas de emoção sincera, mandingas e despachos, foguetório ensurdecedor, finalmente, a bola penetrou na vagina do estádio. Orgasmo nacional.
Nesses 95 minutos, para alegria de nossos ministros econômicos e estatísticos atentos, a barra de mercúrio do termômetro do PIB subiu alguns pontos depois da vírgula. Cem milhões de litros de cerveja desceram redondo, sorvidos com moderação, empurrando algumas toneladas de carne, impulsionando a indústria, o transporte, a distribuição, o consumo e a exportação do melhor futebol da era Dunga. Duzentos milhões de camisetas verde-amarelas e bandeiras do Brasil vestidas e hasteadas garantem no corpo, nas janelas, nos carros e nas ruas o patriotismo e o orgulho de um povo que não desiste nunca, mesmo quando as águas enfurecidas lhe arrastam a casa e os filhos.
É hora do jogo. O engarrafamento das grandes cidades e a televisão param o Brasil. Faltam 15 minutos para o início da disputa. Com exceção de poucos retardatários, um silêncio grosso, reverente e religioso paralisa o país. O Brasil está na iminência de um milagre, da ressurreição da glória ou da catástrofe irrecuperável.
Explosão súbita! Todos viram ao mesmo tempo. O Brasil se engrandeceu com o pontapé de um jogador. Alívio geral. Abraços, beijos, gozo geral. O Brasil gozou três vezes, mas queria mais, cinco, sete vezes. Indefinidamente.
Se tudo der certo, se os jogadores tiverem sorte, se os brasileiros mostrarem fé inquebrantável, se Deus continuar brasileiro até o fim, se os orixás da Bahia não vingarem os escravos da África, o Brasil parará sete vezes. E não admite ser vice-campeão. Ou tudo ou nada.
É do Brasil!

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No dia de meu aniversário, 28.06, recebi estes lindos versos:

Parabés pra você
nesta data feliz
muita felicidade
é o que nóis sempre quis.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

POPULAÇÃO ANÔNIMA

A Agrovila E. das L., a apenas 53 quilômetros do centro da capital federal, tem uma população estimada em 5 mil habitantes. Em 2009, o funcionário encarregado da distribuição de cestas básicas, acrescidas de pão e leite às famílias, classificadas como de extrema pobreza, registrou 17 adolescentes grávidas. Nos últimos dez anos, o número de famílias pobres, assistidas por programas governamentais, não diminuiu. A razão tem duas vertentes: o interesse eleitoral do governo e a acomodação das famílias. Este último aspecto se explica pela falta de trabalho remunerado, envelhecimento dos pais e nascimentos não programados, entre esses, de adolescentes.
Informações veiculadas pelo serviço nacional de saúde vinculado a hospitais, postos e agentes comunitários, em 2009/2010, registraram 400 mil meninas grávidas atendidas pelo pré-natal. Só no Hospital das Clínicas de São Paulo, foram atendidas 1.700 jovens gestantes.
São 400 mil adolescentes que interromperam os estudos, gestando 400 mil nascituros que, dentro de seis anos, terão que frequentar escolas. Nada indica que o ano de 2009 seja atípico. Essa população anônima de 400 mil ao ano pesa imprevistamente sobre todos os serviços públicos de saúde, educação, trabalho, água, alimentação, energia, habitação. Esse contingente parece não tirar o sono dos administradores da população brasileira nem dela própria. O que são 400 mil anônimos num total de 200 milhões? Para quem não usa a aritmética pode ser um número insignificante.
Essa população é sorrateira e não entra no planejamento orçamentário do país. Alardeia-se que o índice de fertilidade está decrescendo e se proclama a ridícula média estatística de 1,75 filhos por família, mas não se revela onde, em que nicho, em que circunstâncias e condições a população cresce.
Na Agrovila E. das L., a perspectiva é de 20 famílias de adolescentes ao ano, com demanda de 20 vagas na escola precária, 20 novos empregos, 2.000 litros diários de água a mais num casario poeirento e sem esgoto, 20 novas cestas básicas, leite, pão e bolsa família.
Num país tropical, de sol abrasador e temperatura mórbida, ninguém negará a uma adolescente o desejo de desvendar o segredo do próprio corpo. Nem por isso o prazer da aventura juvenil deva ter, como recompensa, cueiros, fraldas e mamadeiras.

terça-feira, 22 de junho de 2010

APOSENTADOS

Sou um dos milhões de aposentados cujo benefício foi acrescido, neste ano, em 7,7%. Quando solicitei a aposentadoria, após 35 anos de contribuição ao INSS, deram-me 70% da média dos últimos salários. Os sucessivos pacotes econômicos quase arrasaram esses valores. Recuperaram-se vagarosamente ao longo de duas décadas, mas representam, hoje, 1/3 do salário recebido durante o exercício da profissão. Se o valor de 70% tivesse sido mantido, minha aposentadoria seria o dobro do que hoje é.
Quem pena, porém, com baixas aposentadorias são os idosos que se jubilam aos 65 anos, com um salário mínimo (R$ 510,00). Os aumentos são ilusórios e se prestam a manipulação política. Há dez anos, com esse valor, comprava-se muito mais. As diferenças de salários pagos a trabalhadores, empregados e funcionários públicos são de até 30 vezes: de 510 a 15.000 reais. Essa diferença manterá o índice de desigualdade entre trabalhadores. Nos países escandinavos, essa diferença de salários não passa de 8 vezes. Mas o impacto maior e, talvez insanável, é a diferença entre o salário dos trabalhadores e a renda de executivos de grandes empresas, os apostadores da bolsa de valores e compradores de moedas fortes. As diferenças alcançam a mais de duzentas vezes.
O preocupante, no Brasil, é preciso lembrar, são os 56,9 milhões de cidadãos abaixo da linha de pobreza sustentados pelo programa de compensação salarial Bolsa Família. Os 24, 7 milhões que sobrevivem na extrema pobreza, dos quais 70% são afrodescendentes e 50% vivem no Nordeste. Para completar esse quadro de anomalias, a diretora da TV Brasil, informa publicamente que existem, no país, 20% de deficientes físicos, isto é, quase 40 milhões. São números suficientes para um plano de investimentos prioritários.
No Brasil, as políticas governamentais seguem as da iniciativa privada. Investe-se muito onde pode dar certo e quase nada onde deveria dar certo: educação.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

SOU UM EXCLUÍDO

Sou um excluído. Pertenço a uma categoria de cidadãos que se torna maioria. Maioria excluída. Uma espécie de morte antecipada. Já existem os que festejam em vida, com coquetel regado a champanhe e vinhos, o próprio velório para não serem esquecidos na azáfama do coma fatal.
Vivo de favores e da compaixão alheia. Em certos casos, toleram-me. A faixa de pedestre é um caso de tolerância magnânima. O cidadão é excluído das ruas da cidade interditada para pedestres.
No caixa do banco ou do supermercado, me colocam numa fila preferencial na companhia de mulheres grávidas e deficientes físicos para não atrapalhar os clientes jovens e sadios com meus passos trôpegos e vista cansada. Há dias, recusei convite para um baile da melhor idade, um eufemismo para festejar a catástrofe humana dos excluídos.
Na semana passada, entrei num bar. Ninguém conversava, todos gritavam. Aquelas duas centenas de clientes jovens, empregados concursados e bem-pagos, me olharam com tal estranheza que percebi ter entrado em uma propriedade privada protegida por cães. Dirigi-me à única mesa vazia, ao fundo. Um casal de brancos cabelos mirou-me complacente e sorriu aliviado. Não estava só.
Numa loja 1,99, sorri amavelmente à jovem vendedora afrodescendente, com idade de ser minha bisneta. Li a desconfiança em seu pensamento. Não seria eu o pedófilo da quadra?
Não tenho câncer de próstata para merecer uma corrente de solidariedade, orações, florais de Bach e pensamento positivo. Sou invisível porque não componho as quadrilhas de políticos, funcionários graduados, empresários e consultores indiciados por corrupção e perseguidos pela polícia. Sou apenas um escritor póstumo, sem espaço nas folhas culturais.
Não sou um patriota típico, como esses donos do país que pregam 4 bandeiras verde-amarelas nas janelas do jipão Kia, se infiltram pela direita e pela esquerda. Sou humilhado no trânsito e empurrado para o acostamento.
Em outros tempos, aconselhavam os pais a dialogar e a nada impor aos filhos para não tolher-lhes a independência e a criatividade. Hoje, os pais não têm tempo de estar com os filhos. Os avós são chamados para os serviços de taxi e de babá. Toda a sabedoria acumulada em sete décadas pouco serve a esses pequenos gênios, superdotados e hiperativos. Eles aprenderam, nos 4 primeiros anos de vida, o que demorei 50 anos para me iniciar. O que eles sabem, diante do celular, da câmera digital, do Orkut e do Google, não terei tempo de aprender nos dias que me restam. Estou fora.
A pátria dispensou meu voto idoso, minha opinião arcaica, minha experiência ultrapassada. Jogaram-me para o acostamento político. Impotente, vejo viadutos desnecessários, na contramão da ecologia, surgirem da noite para o dia. Vejo arrancarem árvores centenárias para abrir caminhos impermeabilizados a fim de facilitar a passagem de milhares de carros que me envenenam de graça e aumentam minha conta na farmácia.
Sinto-me um excluído neste tempo moderníssimo da globalização e das tecnologias mais avançadas das comunicações. Resigno-me a caminhar pelas aleias desta cidade que decretei capital da geografia sentimental de meus amores e lembranças.

OS NORMAIS DO GOVERNO

Na década de 60, o discurso político tinha um final clássico: para um país mais justo, mais social, mais cristão.
Na década de 70, a ditadura impunha: um anticomunista, desenvolvido e cristão.
Na década de 80, a abertura política retomou a retórica: para um país justo, democrático e humano.
Na década de 90, o discurso trouxe novidade: mais tecnológico, neoliberal e ecológico.
Na primeira década do século 21 a economia enlouqueceu. Propõe-se um país globalizado, consumista. com maior crescimento econômico.
Para cumprir esse ideal, nos últimos dois anos, o governo abriu mão de impostos para desovar automóveis e eletrodomésticos, aliviar caixas de bancos e jogar empréstimos pela janela.
Ouço com náusea as fanfarronices quixotescas, as explicações cínicas e sem coerência do atual Presidente do Brasil. Ele está nivelando por baixo a capacidade de raciocínio de cem milhões de brasileiros para satisfazer a outra metade do Brasil com quem se identificava antes de chegar ao poder. O fato de usar terno Armani, viajar em avião privativo, ter rádios e tevês à disposição não lhe dá o direito de se pôr acima da lei nem falar ao país como se todos os ouvintes tivessem o mesmo grau de patetice arrogante que o anima.
“Ideias não são metais que se fundem,” disse o tribuno gaúcho Silveira Martins, há mais de cem anos. Hoje, os políticos de todos os tons ideológicos e cores partidárias pasteurizaram e fundiram ideias e ideais, confundiram e inverteram prioridades. Lançaram-se à conquista do poder pelo gosto do poder. O espírito fascista se intumesce, ensurdece os ouvidos e aliena o raciocínio do povo com eu sou, eu mando, eu faço, eu decido, eu aprovo, eu organizo, eu dou, eu digo, eu desdigo, eu sei, eu sou o poder.
O governo fascista cobre um fato com outro, nega evidências, mente e desmente, arma o teatro da comédia e do absurdo, absolve os cupinchas por antecipação. Esse comportamento cínico é a virtude dos Normais do Governo. Todos são atores da mesma peça, todos ensaiam o mesmo texto, do assessor ao ministro, do líder político ao presidente. Antes deles, ninguém. Depois deles, ninguém.
Faz uma década que alguns números não se modificam. São números oficiais e escandalosos, embora se anuncie uma nova classe média. O preocupante, no Brasil, são os 56,9 milhões abaixo da linha de pobreza, sustentados pelo Bolsa Família. Os 24, 7 milhões que sobrevivem na extrema pobreza, dos quais 70% são afro-descendentes (50% vivem no Nordeste). Esses números são suficientes para compor um programa de governo. Há um Brasil profundo habitado por mais de 80 milhões que admiram, de seu obscurantismo crônico, o crescimento econômico da potência emergente sem vê-la aproximar-se de seus tugúrios.
O Brasil desigual continuará como bucha eleitoral enquanto se investe quase tudo onde pode dar certo e quase nada onde deveria dar certo: educação.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

NÃO VERÁS UM PAÍS COMO ESTE

Compreendi que, nos últimos vinte anos, o país é governado por um Conselho de Indicadores que orientam o crescimento econômico na direção do PIB. O PIB é o paraíso ou o inferno da economia. É para lá que os ditadores da economia nos empurram a cotoveladas, a empurrões e a gritos.

Esta crônica é dirigida aos 72 milhões de assistidos pelo Bolsa Família e aos outros 70 milhões que deixam a escola primária sem compreender o que leem nem dominar as quatro operações.

A simplicidade da linguagem estatística facilita aos leitores seguir os noticiários do dia recheados de percentuais. Então:

IPCA-E é o Índice de Preços ao Consumidor Amplo. Não importa que você ganhe 1 ou 40 salários mínimos. Quando o preço do feijão sobe parece mais caro para você que sobrevive com um salário mínimo. Ilusão. O seu vizinho, funcionário do Senado, com um contracheque de 35 salários mínimos (R$ 17.850,00) também chia se o preço do quiabo disparou. A dica do Conselho de Indicadores do Governo para você é comprar só meio quilo de feijão.

IPA é o Índice de Preços no Atacado. Nesses grandes armazéns você não tem nada a dizer. Ali, nem o governo se mete e quando o faz é corrupção na certa.

IGP-DI é o Índice Geral de Preços considerando a Disponibilidade Interna. É muito difícil de saber, preto no branco, quanto feijão, soja, arroz, milho, vaca, porco, galinha, ovelha, tomate, brócolis, cebola, alho existe no país. Não se preocupe com esse índice. Vá à feira mais próxima e compre o que há de mais barato nesse dia e salve seu salário.

INCC é o Índice Nacional do Custo da Construção. É importantíssimo na hora de você pensar em trocar a palha do telhado por telhas de barro. O melhor mesmo é continuar com o capim barba de bode. É mais barato, especialmente se você não tem água encanada e rede de esgoto. Nesse caso, você teria que pedir um financiamento na Caixa Econômica. Ela sabe como endividar você até o fim da vida.

IPR é o Índice de Preços Recebidos pelo agricultor e o IPP é o Índice de Preços Pagos pelo agricultor. Se você é agricultor sabe por experiência de 200 anos que o preço informado no rádio, às 6 horas da manhã, não é aquele que pagam no mercado. Você nunca verá o preço do adubo cair. Em compensação, na época da colheita o preço do seu produto, se não cai, é o mesmo de cinco anos passados.

IGP-CP é o Índice Geral de Preços ao Consumidor Pobre. Mede os preços em final de feira, oferta semanal de supermercado, liquidação de fim de ano, distribuição de sopas no Natal. Aproveite essas promoções e só compre quando elas aparecem.

IGP-CR é o Índice Geral de Preços ao Consumidor Rico que frequenta a Daslu e outras casas do gênero. Você não deve se preocupar com queima desses estoques. Um vestido de vinte mil reais, oferecido a quinze é uma tentação. Mas não entre nessa que é fria. Se você não se chama Marisa e não tem cartão corporativo, nem chegue perto dessas lojas. A VEJA está de olho em você.

PGP-R é o Índice Geral de Preços de Restaurantes. Um prato de 150 reais e um vinho francês de 250 reais evidentemente não é para quem recebe o Bolsa Família. Ainda mais que você tem mulher e seis filhos. O almoço sairia uma nota. O Conselho de Indicadores tem razão quando recomenda que você leve a filharada ao bar da esquina, peça três pastel e duas Brahma da Antártica.

Se você não entendeu o que é inflação não se preocupe. Você não é o culpado. Siga esses índices, você garantirá o crescimento do PIB e será um eleitor feliz, votará nos mesmos aloprados e seus filhos não verão um país como este.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

CANDIDATURAS ESTÉREIS

Agora não tem mais jeito.
Os donos do poder impuseram aos 120 milhões de eleitores do Brasil duas candidaturas estéreis à Presidência da República. Institutos de pesquisa, jornalistas, economistas, analistas políticos, partidos de direita e esquerda, encegueirados pelo consumismo econômico não encontram indicio algum de que esses dois satélites teleguiados girem em torno de outro eixo que não seja o PIB.
Impulsionados pela inércia política, sem vida própria, apáticos, inflexíveis, os dois bólides se mantêm no ar a uma mesma altura e velocidade, prestes a cair sobre nossas cabeças. São duas sementes chochas, sem viço e sem germe. Ambos se equilibram com um pé sobre uma única coluna – o PIB. Pode haver um assunto mais estéril que melhor se adapte à esterilidade dos dois candidatos? Pode haver um tema mais indigesto, sem sabor, capaz de manter longe da mesa os convidados eleitorais?
E as filas de doentes em todos os postos de saúde e hospitais do país não entram no PIB? E os milhões de crianças que saem das escolas sem compreender o que leem ou sem dominar as 4 operações, depois de 8 anos de merenda escolar e de professores malpagos, não entram no PIB? Esses milhares de quilômetros de rodovias e a ausência lamentável de ferrovias não entram no PIB? Essa desertificação da Amazônia, do Cerrado, esses rios poluídos, nascentes arrasadas e cidades inundadas anualmente não entram no PIB?
E quem se preocupa com o Congresso Nacional que receberá os mesmos senadores e deputados aloprados e corrompidos para nos brindar com leis que não pegam? Que importa a opinião desses dois autistas políticos sobre aborto e casamento gay se a decisão será tomada pelos representantes do povo, futuros habitantes da casa legislativa?
Parece evidente que a faculdade humana de pensar foi esquecida e abandonada. A bola substituiu o cérebro. A corrida eleitoral com dois galopantes mancos não atrai apostas nem desperta interesse pelo hipódromo.
Pensar, caro eleitor, é um esporte radical. Se bem praticado, pode mudar o rumo da política, da cidadania e dos governos.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

CEPAL E IGUALDADE

No mesmo dia em que a CEPAL se reuniu no mais luxuoso hotel de Brasília (R$ 345,00 o pernoite) para propor medidas destinadas a amenizar as desigualdades, o governo publicou a avaliação anual da execução do programa Bolsa Família, modelo social para o mundo.
Os resultados quantitativos são expostos em números grandes. Doze milhões de famílias atendidas. Dez bilhões de reais repartidos entre 72 milhões de cidadãos miseráveis. Os números pequenos ficam por conta dos beneficiários. O incluído recebe três reais por dia. O número grande, na boca da ministra, se apequena na mão do pobre. Leio o que ela diz baseada no princípio do “mais que nada”. “A vida das famílias mudou completamente. Não só pelo dinheiro, mas pelo fortalecimento da rede de proteção”. Ela se refere aos serviços públicos de educação, saúde, luz elétrica e água que é um dever do Estado para todos os cidadãos. É o cacoete burocrático que explica o inexplicável. E acrescenta com seriedade comovedora: “A transferência de renda tem função complementar de mobilizar a renda e os serviços”. Outra voz do mesmo ministério acrescenta que “o maior desafio é tirar essas famílias da pobreza”. Segundo o ministério, pobre é quem ganha, trabalhando, até quatro reais por dia para sobreviver. Os três reais acrescidos pelo Bolsa Família o põe, em definitivo, acima dessa fatídica linha que separa pobres de ricos.
Para dar consistência aos grandes números, entrevistam-se beneficiários da distribuição da renda. É de se supor que poucos rejeitam o dinheiro mensal e todos fazem dele o melhor uso que as condições de pobreza requerem. E.A., desempregada, três filhos, dois sobrinhos e um neto, com 21 reais diários, consegue dar-lhes três refeições ao dia, pagar conta de luz e água, feijão, arroz e pão, remédios, calçado, roupa e transporte! O Tesouro Nacional estaria em boas mãos se a contratassem para controlar os gastos do governo.
É comum dizer-se que há três Brasis, lutando contra a desigualdade, cada um a seu modo. Os miseráveis estão situados abaixo da linha da pobreza (menos de 4 reais diários), por isso, beneficiários de renda complementar. Ignora-se o número de miseráveis não alcançados pelo programa e que se somam ao Brasil III, com mais de 70 milhões. Menos da metade tem abastecimento de água, coleta de lixo e saneamento básico, cada dia mais caros. A maioria é semialfabetizada e refém das informações veiculadas em novelas, noticiários ou documentários de TV.
Os remediados que formam o Brasil II se confundem com a massa da classe média, arrastada artificialmente para cima com critérios estatísticos cientificamente comprovados. É o maior Brasil. Tem vocação de campeão. Está anestesiado pelo crescimento econômico e pelo PIB. É o consumidor por excelência de máquinas, artefatos eletrônicos, discos de música pop. Movimenta bares, restaurantes, cinemas, centros comerciais, planos de saúde, companhias de turismo para viagens ao exterior. Alguns até compram livros.
O Brasil I é o menor, mais poderoso, manda no país. É responsável pela feitura das leis, controla seu cumprimento, define os graus de impunidade, advoga em causa própria. É responsável pela promoção do Brasil I à Quinta Potência e vive de corpo e alma no Primeiro Mundo dentro e fora do país.
A CEPAL, em boa hora, poderia propor que os investimentos para o bem-estar comum se desloquem do Brasil I para o Brasil III. O erro das decisões políticas e econômicas é não investir nas regiões onde vivem os pobres. As escolas são tugúrios, os professores malpagos e malformados, o serviço de saúde é insuficiente, as vias de acesso e as ruas dos vilarejos são cobertas de lixo e esgoto. Em vez de investimentos maciços nesses serviços, alguém decide levantar um viaduto desnecessário e inútil na cara dos pobres (vide Engenho das Lajes, DF) para enganá-los com ferro e cimento, deixando tudo o mais na extrema pobreza. Ou programa-se uma imensa hidrelétrica, em nome do PIB, que expulsa os habitantes pobres das selvas e os empurra para as periferias das cidades, sem emprego e sem renda. Por isso, o Bolsa Família se justifica, é necessário e suficiente para manter a desigualdade acima da linha da pobreza.
Investir onde vivem os pobres seria um novo caminho para a igualdade social, econômica e política. Um modelo para os países da América Latina.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

UM NOVO OLHAR SOBRE A ECONOMIA

O texto a seguir pode ser utilizado como referência para os pensadores de um novo olhar sobre o uso das riquezas naturais.


Produzir para sobreviver e viver confortavelmente. Produzir para trocar bens é um costume imemorial que se tornou ciência econômica. Produzir para acumular riqueza é uma ordem da eficiência e da eficácia. A gestão dos instrumentos e mecanismos necessários à produção revela as qualidades do empreendedor, do investidor, dos homens e mulheres de sucesso.
Há muita gente no planeta Terra que ainda não chegou a esse estágio e mais da metade da população mundial morre sem conhecer o conforto da riqueza. O planeta está dando sinais de esgotamento em razão da superpopulação e da exasperada exploração das riquezas e dos elementos necessários à sobrevivência e ao conforto. Há um alerta geral badalando a consciência da humanidade. O caminho que se percorre é arriscado e pode levar ao abismo.
Há outra maneira de olhar a economia? É possível continuar usando as riquezas naturais para conforto humano respeitando as leis da casa, também dita ecologia?
Visitei, graças ao amável convite do Conselho de Educação do município de Casca (RS), essa rica região de imigrantes italianos e poloneses.
Casca tem 8,4 mil habitantes. O Índice de Desenvolvimento Humano (0,829) a coloca entre os 20 melhores municípios do país. A economia é diversificada, baseada na indústria, comércio, serviços e produção primária. O desenvolvimento da atividade primária da produção agropecuária está associado à instalação de pequenas agroindústrias como forma de agregar valor sobre os produtos primários e conseqüentemente proporcionar um bem estar social e econômico ao produtor rural.
Um item da produção primária do município chama a atenção do observador. O rebanho bovino de leite é composto de 16 mil animais, o que representa o dobro da população humana. A escala de produção é de 200 mil litros dia que alimentam as agroindústrias familiares e abastecem outras empresas de laticínios.
A escala de produção é aleatória. Não há informações de que tenha sido programada ou planejada previamente. É um fato econômico satisfatório do ponto de vista do agricultor ou corresponde a uma tendência inercial da produção local e regional. As questões que se levantam são: essa escala de produção é necessária? É econômica sob o aspecto ecológico? Que medidas complementares seriam convenientes e adequadas para manter o mesmo nível da escala?
Ao se analisar o impacto da escala de produção de leite do atual rebanho sobre o sistema ecológico, é importante cotejar os elementos necessários para garantir a sustentabilidade dessa atividade: água e terra.
Por um lado, pode-se estimar o uso intensivo de terra e sua capacidade de suporte que responderia à questão: número de cabeças por hectare. A densidade de animais por hectare depende de algumas variáveis físicas e de manejo relacionadas à raça leiteira. Mas o elemento principal é a água. Não importa que a densidade por hectare seja de uma ou 10 cabeças. A quantidade de água por animal permanece invariável e, dependendo das condições do solo, do clima e da região, as circunstâncias podem se agravar e, portanto, causar impactos mais duros à natureza em curto prazo.
Analisando a atividade econômica em questão, no que se refere à quantidade de água necessária para produzir alimentos (Ver TUNDISI, José Galizia, Água no Século XXI, Rima, São Carlos, SP, 2003), considera-se que um animal bovino corresponde ao uso de 4.000m3. O atual rebanho leiteiro de Casca, portanto, consome, ao longo de sua vida produtiva, o equivalente a 64 milhões de metros cúbicos (64 bilhões de litros)
É provável que os agricultores estejam percebendo a diminuição lenta e gradativa das águas e a facilidade com que as terras secam em períodos de estiagem. É comum dar como razão as irregularidades das chuvas. Pouco se atenta ao desmatamento, ao uso intensivo das terras e à compactação do solo, impedindo a natural infiltração das águas da chuva para alimentação das reservas subterrâneas.
A continuação indefinida desse processo produtivo não é sustentável a longo prazo. Que medidas se podem tomar diante da inexorabilidade do esgotamento das águas, embora corra por lá o rio Carreiro?
Uma das medidas drásticas recomendadas, a curto prazo, seria a diminuição do rebanho, provocando queda na produção do leite, fechamento de algumas agroindústrias, enfraquecimento dos ganhos econômicos. A substituição de culturas, em prazo curto, nem sempre é factível. Provavelmente os agricultores atuais se oporiam a essa medida e conflitos desnecessários perturbariam a tranquilidade da população.
Outra possível medida, fácil e imediata, é aproveitar as precipitações da chuva, ao longo do ano, através de barragens de contenção e detenção, formando reservas em locais estratégicos para alimentação dos aquíferos interiores e uso alternativo da água.
Casca tem uma extensão de 272 km2, com boa reserva florestal, morfologia geográfica e abundante material adequado que permitem a construção de pequenos e consecutivos represamentos de água. A revitalização de nascentes, maior armazenamento de água no solo e nas plantas darão maior sustentabilidade e por mais tempo à atual atividade econômica do setor leiteiro.
A implantação gradativa de um conjunto de medidas sistêmicas de armazenamento de águas pluviais facilitaria a infiltração e equilibraria os índices de umidade necessária à produção agrícola. Entre elas, indicam-se:
· Barragens de pedra com arquitetura de arcos romanos deitados, ao longo dos canais de drenagem e esgotamento das águas, formando represas de diferentes tamanhos.
· Reflorestamento corretivo nas pastagens, estabelecendo corredores vegetais de larguras adequadas ao terreno, em curvas de nível, que auxiliam a retenção da água.
· Estabulação e pastoreio controlado do rebanho, evitando-se a compactação intensa do solo e facilitando a infiltração.
· Formação de pasto de corte complementar ao pastoreio livre.
· Complexos alimentares alternativos dependendo da oferta regional de produtos descartados.
· Canalização e armazenamento de águas que caem sobre as vias de terra ou asfaltadas, através de bueiros de coleta inteligente que despejem em represas antes de alcançarem os rios.
· Envolvimento da população urbana com a participação de estudantes, professores, empresários, secretaria da agricultura, secretaria do meio ambiente, sindicatos rurais no sentido de aproveitamento das águas sobre a área urbana, manutenção da limpeza e coleta intransigente do lixo na área rural.
· Incentivos aos que se propõem a praticar o armazenamento de água pluvial, através de prêmios financeiros ou prestação de serviços de máquinas, estabelecidos pela câmara legislativa.
Tomando-se, por hipótese, a precipitação anual de 1.600 milímetros (1.600 litros por metro quadrado), sobre o município de Casca, cuja extensão é de 272 milhões de metros quadrados, se contabilizariam 435,2 bilhões de litros. Se o conjunto de medidas aplicadas para o aproveitamento das águas da chuva conseguisse conter e deter, anualmente, 15% desse volume (65,2 bilhões de litros), ter-se-ia reposta a quantidade necessária para equilibrar o consumo do rebanho atual de 16 mil bovinos leiteiros.
É desejável que esse conjunto de medidas seja apoiado por rigoroso estudo de novas atividades econômicas, focado no planejamento de longo prazo, destinado a sugerir a possível substituição de produtos tradicionais primários e industriais. Pequenos animais e cultivos vegetais que necessitem menos água podem dar às novas gerações opções mais adequadas à conservação e proteção da natureza e melhores condições de saúde física para toda a população de Casca.

FOGO NO CERRADO


Amanheci triste e indignado. O chão, as mesas, as árvores estão cobertas de cinzas do cerrado do Sítio das Neves que, ontem à noite, ardeu. Milhares de vidas pereceram e outras tantas foram torturadas pelas chamas. Os gritos da natureza comoveram a noite, as estrelas, a lua. Os torturadores incendiários fugiram batidos pela covardia.
A ignorância e a displicência de alguns brasileiros desprezam as leis e as normas da convivência com a natureza. São criminosos soltos na rua. Anônimos e arrogantes. O exemplo vem de cima. Presidente, senadores, deputados, ministros, empresários, diretores sindicais desafiam publicamente as leis e os controles institucionais. Ensinam à população que a desobediência e certo tipo de crime ficam impunes ou as pensas não lhe riram o sono. Os incendiários que atearam fogo no pedaço de Cerrado deveriam ser punidos pelo crime de matar 40 hectares de vidas inocentes e pacíficas. Quem são eles? Anônimos covardes, agressores sem alma.
Como todos os criminosos, eles voltarão para certificar-se do local e dos cadáveres. Assegurar-se também de que são criminosos e agiram como malfeitores a soldo da própria ignorância e maldade. Recebem por pagamento a satisfação ignominiosa de ser matadores displicentes e impunes. Riem da própria audácia. O prazer de incendiários os alimenta. De quem se vingam quando agridem a natureza da qual se originam? Quem são seus inimigos reais que, de repente, tomam a forma de plantas, insetos e bichos protetores de nossas águas? A quem queriam matar se a covardia não os impedisse?
O silêncio dos inocentes os acusará sem cessar, mesmo que as palavras da lei não sejam suficientes para indiciá-los e puni-los.