terça-feira, 11 de novembro de 2008

TRINTA ANOS DEPOIS I

Trinta anos atrás, nossa filha e a amiga, ambas com oito anos, cedo saíam de entre os blocos da SQS 406 e caminhavam tagarelando pelas aléias até a Escola Classe da 206 Sul. As respectivas mães ocupavam-se de suas tarefas sem preocupação pelo destino das filhas. A atmosfera social das quadras era de confiante segurança.
Trinta anos depois, para vencer algumas centenas de metros que separam a casa à escola, babás, mães e vans acompanham e arrastam pesadas mochilas. O medo tomou conta de pais e crianças.
Trinta anos atrás não havia um milhão de carros invadindo os espaços do cidadão a pé, único e exclusivo senhor da cidade e da rua. Não se havia ainda proposto o paradoxo de constranger o cidadão a exercer seu direito de atravessar uma rua de sua cidade numa faixa sinalizada com risco de sanção se desobedecer. As escassas faixas para travessia de pedestres lhe dão segundos para escapar do atropelamento, quando não a sensação de culpa por atrapalharem a velocidade e a pressa do condutor do carro.
Trinta anos atrás, os condutores paravam ao ver os colegiais esperando para atravessar a rua. Onde não houvesse guardas de trânsito entre 7h30 e 8h, para ordenar a travessia e proteger as crianças de condutores apressados ou distraídos, um adulto que por ali passasse levantava a mão e parava o fluxo com sua autoridade de cidadão.
Trinta anos depois, o superpovoamento da cidade, os milhares de carros que se atropelam pelos retornos, tesourinhas e passagens de pedestres, o medo tomou conta do cidadão. Medo de andar na rua, de estacionar à noite, de sair de casa, de ir ao cinema, de freqüentar uma festa e não voltar. Medo de usar as infectas passagens subterrâneas, um dos poucos territórios exclusivos do pedestre. Medo de um seqüestro relâmpago, fruto de uma ordem que plantou a desigualdade e colhe mortes.
Trinta anos atrás, nossa empregada era analfabeta. Trinta anos depois o país continua analfabeto, como afirma Lia Luft. Nossa diarista de hoje, sua irmã e a mulher do caseiro de nosso Sítio, todas entre 30 e 40 anos, são analfabetas. Trinta anos atrás, houve Mobral.
Em trinta anos, fazem-se grandes mudanças. O computador e o celular mudaram a vida de muitos milhões de pessoas. Trinta anos não mudaram aspectos básicos da vida do cidadão que nasce entre milhões de artefatos eletrônicos. Nossos netos manejam engenhos complicados e nos olham com compassiva superioridade, mandando MSN a seus coleguinhas de escola primária, mas não podem andar cem metros sozinhos entre a casa e a padaria ou ao ponto de ônibus.
A cidade está sendo subtraída ao cidadão e, com isto, perde o charme e a elegância humana. Entra-se no carro para ir às concentrações de lazer em bares protegidos por serviços de segurança, disfarçados de apoio ao cliente. Foge-se para os guetos. Ruas tomadas de automóveis e desertas de pessoas. Deixam-se solitárias as árvores e delas usufrui-se apenas a sombra para o descanso de nosso senhor o carro.
Trinta anos depois, felizmente, Brasília não se iguala ainda ao que é o Rio de Janeiro ou São Paulo. Mas o caminho se estreita perigosamente.

11/11/2008

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