sexta-feira, 22 de outubro de 2010

POBREZA E DESIGUALDADE



Governos anteriores e o atual se propuseram a criar meios para facilitar o acesso da população pobre (dezenas de milhões) à comida diária. Hoje, distribuem-se bilhões de reais através do programa Bolsa Família. A contrapartida das famílias é a de manter os filhos na escola. Na escola, pouco se fez. Pouco melhorou. Não derramo aqui os dados oficiais do IBGE (2010)  que mostram quão longe está a educação das prioridades dos governos. O funcionamento das escolas depende do município e do estado federativo, sob o guarda-chuva do planejamento educativo e fiscalização do Ministério da Educação. Essa cadeia rola precariamente. Se, por um lado, houve mais comida na mesa dos pobres, nem por isso mudou seu estado de pobreza. Por outro lado, a desigualdade entre pobres e ricos; entre os que têm oportunidade de estudos adequados e atualizados e os que, há dezenas ou centenas de anos, não puderam educar seus filhos, continua inalterada. Os avanços são milimétricos comparados aos da ciência e da tecnologia à disposição das classes abastadas.
Eliminar a pobreza física, material, é uma batalha longa e não termina ao se pôr à mesa mais comida. O trabalho produtivo é um passo necessário. O trabalho pressupõe algum nível maior de conhecimento, de criatividade, de habilidade dinâmicos. As atividades realizadas, os objetos produzidos para garantir sua utilidade e facilidade de uso requerem aperfeiçoamento.
Os investimentos cruzados do governo não se fazem nas zonas pobres por falta de mão de obra especializada. Nessas regiões, se geram empregos temporários (vide transposição do Rio São Francisco) ou subempregos, que não requerem igualdade de competição entre os artífices e a obra a ser realizada. Nas áreas pobres, as pessoas desenvolveram truques de sobrevivência e de adaptação ao meio inóspito. Desenvolveram a inteligência dos limites da vida.
A desigualdade é um estado de distância entre os cidadãos de uma região ou de um país que vai muito além do eventual acesso à comida, ao emprego temporário e à renda. A desigualdade tem a ver com o crescimento da população e com a superpopulação regional e, principalmente, urbana. Nunca haverá igualdade perfeita por razões óbvias. Mas a superpopulação, isto é, a quantidade populacional que transborda a capacidade administrativa do Estado, da economia e dos recursos naturais, tenderá a manter os níveis inadequados, inaceitáveis e intransponíveis de desigualdade. Segundo o IBGE (2010), em nosso país, apesar das baixas taxas médias de crescimento, nascem 270 crianças por hora, ou 2,3 milhões de brasileiros por ano. O semianalfabetismo impera, as filas de hospitais aumentam, os índices de desemprego estão altos, o déficit habitacional é milionário, as prisões, superlotadas, as ruas de nossas cidades, congestionadas, transporte público insuficiente.
A desigualdade, no caso do Brasil, começa na mesa, ao redor da qual estão os assistidos do Bolsa Família. O que podem comprar com 15 reais por pessoa/mês não é a dieta adequada, segundo requerimentos de alimentação aceitos e recomendados pelo Ministério da Saúde. A obesidade não é privilégio da classe alta. Contamina os pobres que se nutrem mal. Que essa dieta seja suficiente, do ponto de vista estatístico, para tirar 28 milhões que estavam abaixo da linha de pobreza, pode-se até admitir. Mas se houver uma pane nos computadores do Ministério da Ação Social e de Combate à Fome ou da Caixa Econômica e o cartão plástico não possa ser emitido, o precipício se abre diante deles.
Mas a desigualdade mais resistente é a que separa os cidadãos no campo da educação. Os desníveis de desigualdade são crescentes. Prometer eliminá-los, mantendo o crescimento da superpopulação, é uma afronta à realidade, à natureza e à inteligência humana. Há que se atentar aos ingredientes da desigualdade para compreendê-la, medi-la, pesá-la e poder diminuí-la gradativamente. Não é só pela geladeira, computador, carro individual, celular ou casa de 32 m2 que se deve aferir o grau de desigualdade entre cidadãos. Supondo que toda a população devesse ter esses itens individualizados, é certo que necessitaríamos quatro a cinco planetas para atender a esses requerimentos.
Os ingredientes da desigualdade são sutis e passam despercebidos no tumulto da vida cotidiana. Se pertencer à classe média é supor um a dois carros por família, como é comum, poder viajar de avião para ir a Miami fazer compras, estamos aceitando o colapso dos aeroportos, o cancelamento de vôos por falta de pessoal de bordo, a superlotação dos estacionamentos e o sacrifício alarmante das melhores áreas verdes de nossas cidades.
Dependendo do tipo que se define e do caminho para a igualdade pode-se chegar à irracionalidade econômica e a um conflito insolúvel com a natureza, a ecologia e o ambiente.
Talvez seja fácil perceber a desigualdade dando atenção ao que sucede perto de cada um. Poderia colher como modelo de análise uma funcionária de limpeza de um grande supermercado. Mas prefiro tomar como exemplo a diarista que presta serviços em casa. Serviços que, com bons argumentos, não se quer ou não se pode fazer. Ela, em geral, mora na periferia dos bairros da grande cidade. Para tomar o ônibus das seis horas da manhã para chegar ao serviço às oito, tem que se levantar às cinco. Prepara, antes de sair, o café para o marido e os filhos que, nos melhores casos, vão à escola. A patroa acorda com o timbre do interfone e lhe abre a porta. Nesta primeira etapa do dia, três horas de desigualdade separam as duas mulheres. A diarista é usuária compulsória do ônibus superlotado e do trânsito vagaroso. Suporta condições de higiene e desconforto inalteráveis, dia a dia mais enervantes.
É com este estado de espírito adquirido na viagem que atenderá às exigências de suas tarefas, segundo determinações da dona de casa. Tudo o que acontece durante as oito horas de trabalho estará marcado pelas circunstâncias da desigualdade da etapa inicial do dia. Não se trata de trabalho especializado. O que e como faz em sua casa o repete na da patroa. Por isso, não terá oportunidade de um curso de aperfeiçoamento para manejar os vários equipamentos da casa. Essa especialização traria conforto para ela, maior segurança e economia para a casa. Seu salário aumentaria proporcionalmente aos conhecimentos e seu tempo de trabalho se reduziria. Como isso raramente acontece, o nível de desigualdade se mantém por anos a fio entre a diarista e a patroa. Mesmo que se diga, nas rodas de chá, que ela faz parte da família por antiguidade.
O mais grave é que se mantém a desigualdade entre os filhos da diarista e a filha única da patroa. Quer dizer, a desigualdade fundamental se forja nos diferentes processos de educação e conhecimento que dispõem as escolas privadas e inexistem nas públicas. Como se trata de escala geométrica, a desigualdade se esparrama e se consolida na sociedade contra todos os índices estatísticos.
Para perceber melhor o estado de desigualdade, nada mais concreto do que visitar, de tempos em tempos, a escola, a rua e a casa onde mora a diarista.

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