terça-feira, 30 de novembro de 2010

ESTA GUERRA É NOSSA




A guerra do Rio de Janeiro é nossa. Estamos todos convocados pela mídia, com fraseado limpo, higiênico, pasteurizado e acrítico para fazer parte do espetáculo. Noticiários sofisticados, ao vivo, imagens obtidas de helicópteros nos dizem que a guerra é nossa. Esta guerra não ataca a ponta da produção nem a do consumo. É uma guerra sem fim, situada no extenso corredor da distribuição que se camufla de mil modos para chegar ao consumidor.
Nossos impostos são vistos e ouvidos na rua em forma de tanques, blindados, helicópteros, centenas de viaturas e caminhões carregando soldados, telefones, rádio e canal de TV e, no front de combate, mais de 20 mil homens.
Por melhor aparelhados que estejam esses meninos da droga –  também ditos e repetidos por autoridades e jornalistas: “elementos, bandidos, traficantes, criminosos, terroristas” – serão exterminados ou presos em pouco tempo. Alguns escaparão e se tornarão, com o tempo, os novos chefes da intermediação do crack, da maconha ou da coca fina.

As drogas

As drogas, sua evolução e aperfeiçoamento, são mais antigas do que a Igreja católica. No andar dos séculos, seu comércio se consolidou em grandes negócios, transformados em empresas transnacionais e laboratórios gigantescos onde o produto é elaborado. A produção de remédios, – também chamados drogas e vendidos em drogarias – é apenas um dos braços. Umas drogas amenizam a dor do corpo. Outras, a da alma. Como ambas as dores não podem ser eliminadas, drogas continuam sendo preparadas, vendidas e consumidas.
Drogas lícitas e ilícitas foram declaradas por critérios legais. Segue-se o comércio lícito ou ilícito. Ambas incluídas no largo conceito de comércio. O comércio de órgãos humanos, ilícito, existe e fala-se em bilhões de dólares. O comércio de drogas, ilícito, repete-se todos os dias, também alcança bilhões de dólares.
Por trás do comércio de drogas estão os fabricantes de armas (Alemanha, Estados Unidos, Rússia, Brasil...), organizações paramilitares, fiscais da alfândega, fronteiras desprotegidas, aeroportos clandestinos e oficiais, laboratórios químicos, polícia corrompida ( no Rio, a policia esteve associada aos traficantes intermediários durante dezenas de anos, impedido a ação do Estado), deputados, juízes, advogados, laboratórios produtores e, obviamente, consumidores espalhados pelo país e pelo mundo. Como se combate o comércio de drogas? Leis que o brasileiro costuma desprezar. Fiscalização da polícia rodoviária e aeroportuária por amostragem e golpes de sorte. No Rio de Janeiro, a aliança entre consumidor, polícia corrupta e intermediários da droga garantiu, ao longo de dezenas de anos, a consolidação do negócio de bilhões. Por que o Rio de Janeiro? Por que ali estão os cabeças?

Complexo do Alemão

Não podemos acreditar que no Complexo do Alemão ou no Cruzeiro estejam os cabeças do tráfico, também chamados narcotraficantes. Ali está um grupo de malandros aventureiros intermediários, como são intermediários os vendedores de geladeiras numa cidade do interior ou um restaurante que usa uma franquia internacional como McDonalds. A batata frita transgênica oferecida num desses restaurantes pode ser proibida e o proprietário da franquia, multado ou preso. Mas a batata frita continua sendo pedida pelos consumidores. E os tubérculos transgênicos serão produzidos em algum lugar. Quem é o cabeça?
No Rio, os intermediários da droga caíram no conto das armas. Os meninos dos morros são uma cópia dos muchachos de El Mexicano ou de Pablito Escobar. Alguém lhes fez acreditar que não há poder sem exército e sem armas. Como o negócio da droga rende bilhões, há que reparti-los com alguém. Esse alguém é o produtor e o intermediário do bilionário negócio das armas. Nascem os chefetes. Na Colômbia, os cabeças não se concentraram nos picos da Cordilheira que enlaça Bogotá. Medellin sediava o quartel general de Pablo Escobar e Cali, o da família Orejuela. Sucursais invisíveis atuavam em todo o território colombiano. Como eram negócios de bilhões, eles precisavam de defesa do produto e criaram as milícias paramilitares, com um pé nas forças armadas oficiais e o outro no sistema judiciário para defendê-los na justiça. Pablo Escobar foi morto por uma facção do exército que não pôde ou não quis participar do butim do “crime organizado”. Antes dos cabeças, porém, morreram milhares de braços armados, fiéis ao negócio rendoso.
A meninada do Rio de Janeiro tentou fundar as repúblicas da droga baseadas na força das armas cada vez mais modernas, superando as dos militares que futuramente se associariam a eles por serem mais fracos e por quererem participar desse poder paralelo com a força da lei. Os homens da polícia não tinham armas nem salários, mas tinham a lei a seu favor. A lei elástica. A proteção aos testas de ferro era manipulada acima e à revelia da lei.
Os morros do Rio de Janeiro são um dos elos entre o produtor e o consumidor. Esses bilhões de que se fala vêm dos consumidores. É necessário insistir que os bilhões faturados por agências de automóveis, celulares, geladeiras, máquinas de lavar ou televisões saem do bolso do consumidor? Pois, essa é uma das pontas que demanda, pede, suplica, implora qualquer tipo de droga. A outra ponta, a que investiu no laboratório de produção, o fez na certeza de que recuperará com folga a fortuna aplicada.
É preciso dizer que esses bilhões também entram no PIB. Com eles constroem-se castelos, mansões, piscinas, campos privados de esporte, hospitais privados, com a colaboração de cartórios, juízes, políticos, constituindo-se num labirinto de acumulação de riqueza lavada em invisíveis lavanderias.
Nesses dias que passaram, quantos bilhões foram despendidos para acabar com um negócio que rende bilhões? E quem está sendo destruído nesta guerra? Vamos lembrar que os da frente de batalha são sempre jovens cidadãos – também chamados soldados, policiais, militares. Na frente de batalha não se veem generais. Eles transmitem ordens por rádio. Dão entrevistas, informações e contrainformações.
 O cidadão soldado é enviado ao morro com uma arma na mão. Diante de uma R15 do menino do morro – cidadão espúrio, elemento, bandido, criminoso, terrorista sem pai nem mãe – diante da R15 apontada para ele, certamente, o cidadão soldado não esperará ordem do general ou do secretário de segurança para atirar e se possível matar. Vai à guerra quem tem débitos. E os meninos do morro e os policiais do BOPE têm débitos. Foram treinados, ensinados, juraram defender o chefete ou a pátria. Ir à guerra tornou-se um dever. Os que têm crédito não vão à guerra. Nem o general, nem o comandante, nem o secretário de segurança, nem o Ministro da Defesa precisam mostrar sua coragem. É suficiente aplaudir e enaltecer a valentia de seus comandados.

Essa guerra é nossa.

É nossa porque os consumidores da droga são nossos, os importadores são nossos e os distribuidores são nossos. Os soldados e os meninos do morro são nossos. Muitos ingredientes de fabricação das drogas são nossos. Foram comprados com o dinheiro das drogas. Parte das armas é nossa. A outra parte que veio de fora, em poucos dias, será nossa. Os que morrerem nessa guerra se dividirão em dois grupos: os nossos inimigos e os nossos heróis. A paz nos morros será imposta e garantida com nossas armas. A mais objetiva das alternativas que soubemos encontrar para destruir a organização dos criminosos que vendem drogas para o rico cidadão de Ipanema ou Copacabana, cansado de ir à praia, a Paris, Londres, ou de ver televisão, ou escrever estultícias no twitter.
Dirão que o Rio é o Rio. É diferente de tudo o que existe no mundo. São circunstâncias especiais. E além de tudo, será sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Os criminosos estavam dominando a polícia com polpudas propinas e abastecendo os consumidores com tremenda eficiência. Era dinheiro demais, era um poder soberano. Tal era a fama dos meninos dos morros.
As facções ditas terroristas que dividiam o dinheiro e o poder poderão ser extintas. É essa a intenção e a ação. Mas que parte da organização que controla as drogas está sendo debelada? A que tem armas? E a outra parte da organização, a que tem seus chefetes na ponta do consumo, com que armas será combatida? Com o divã do Gikovate? Com internação de dois anos num Spa de luxo? Quem não sabe que, no Distrito Federal, o comércio de drogas é intenso? Se o estoque acaba no Gama, o Engenho das Lajes, que recebe de outra fonte, pode repor. Em Santo Antônio do Descoberto, já em Goiás, está equipado para contribuir com a expansão do negócio.
Então, a pergunta é obvia. Por que só no Rio de Janeiro? Só lá existe o “crime organizado”? Ou há outras razões escondidas sob as armas dos meninos dos morros do Rio?
Quanto representam do PIB os tanques, os blindados, os navios, os aviões Rafale, o efetivo permanente do exército e o temporário? E essa operação de guerra, no Rio, com mais de 20 mil homens em combate, incrementa o PIB ou o reduz?

Alternativa

Vamos supor alternativa diferente. Como se trata de uma guerra que é nossa, por que não investir metade dos milhões que se gastam em armas, soldados, tanques, helicópteros, operações espetaculares de ataque, mortos e feridos, na ponta privilegiada do consumidor. Não com o instinto cego e suicida do crescimento econômico, mas com a inteligência do desenvolvimento humano. Se, em cinco anos, conseguíssemos reduzir o consumo de drogas, em todo o território nacional, em 80%, que aconteceria com os chefetes e os meninos do morro?
Para pensar desta forma é preciso não ter sido treinado para a guerra e não ter sido eleito para resolver tamanho problema com guerra. Claro, sou ingênuo. Não compreendo o Rio nem esse negócio de armas e de guerra. Dez anos de trabalho, na Colômbia, dirigindo projetos de combate às causas da pobreza (meu livro “Por que son pobres los campesinos” teve tiragem de 10 mil exemplares) e participado de comissões de paz, não me ajudam a compreender essa nossa guerra.
Como todas as guerras, a do Rio também tem suas verdades e inverdades. A facilidade com que a Grande Aliança de todas as forças armadas do Rio entrou nos redutos considerados intransponíveis pela inteligência estratégica da guerra produziu na opinião pública um sentimento de frustração. O castelo era de areia e os moinhos, de vento.
Diante desta guerra do Rio, “por que não dizer do Brasil” e, portanto, nossa, eu me escondo do tiroteio e me pergunto: O que estamos combatendo? A droga? Os chefetes-gerentes do mercado da droga nos morros do Rio? Os supostos traficantes e sua rede nacional de distribuição? Armas modernas que faltam à polícia? A empresa invisível que atua no mercado mundial da droga? Os pontos de venda de droga que estão em mãos dos meninos “bandidos” dos morros do Rio? Os que se corromperam e enriqueceram com a extorsão do dinheiro grande pela polícia, por milicianos, advogados, juízes, altos executivos, políticos? O consumidor que garante o fluxo de bilhões de dólares aos fabricantes da droga?
Uma vez conquistada a paz pelas armas, os soldados e as armas permanecerão nos morros como libertadores? Não tendo mais inimigo armado, a quem combaterão os policiais? Até agora só ouvimos falar em armas e guerra. Todo este espetáculo gira em torno de armas. Primeiro, traficantes armados. Depois, milicianos corruptos, ex-policiais armados. Agora, a polícia pacificadora armada.
Minha conclusão é que as armas mais poderosas são frágeis para garantir a paz. É surpreendente, quase inacreditável que autoridades do governo confessem que, nos últimos 30 anos, os bandidos do tráfico não permitiram a entrada do Estado nas repúblicas da droga. 

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