terça-feira, 30 de novembro de 2010

ENTREVISTA CB HELIODORA

Tendo em vista que os jornais alegam falta de espaço para publicar as respostas a perguntas por eles encaminhadas e, por isso, têm o hábito de higienizar, limpar e pasteurizar os textos, tomo a liberdade de publicar a integra de minhas respostas para o lançamento de HELIODORA. Pequena parte destas respostas foi publicada no jornal.


- Conte um pouco da sua infância: onde passou sua juventude e como surgiu o gosto por escrever?


Sou neto de família italiana que povoou a Serra Gaúcha no início do século passado. Aprendi a ler em casa, ao redor do fogão a lenha, como era costume na época. Nasci em 1934. Guardo do Grupo Escolar a lembrança de coisas simples e óbvias: a ave viu o ovo e o vovô viu a uva. Ali estavam todas as vogais. Estudei em colégio de padres franciscanos, onde enterrei minha juventude. Aos 15 anos, comecei a escrever diário, habito que continua até hoje. É meu primeiro ato matinal. Acumulo dezenas de cadernos cheios de segredos.


- O que trouxe o senhor para Brasília em 1972?


Conheci Brasília em 1967 e me apaixonei pelo silêncio do cerrado e pelos horizontes largos do Planalto Central. Prometi a mim mesmo que Brasília seria meu lugar. Na última viagem do trem que ligava São Paulo a Brasília, transferi-me para cá com a mulher e a filha de dois anos. Infelizmente, o Brasil perdeu o trem.
Com a mudança da capital para Brasília, os ministérios trouxeram para cá todas as instituições a eles vinculadas. Vim como consultor de um projeto da FAO em convênio com o ministério da agricultura. Havia feito pós-graduação na Universidade de Paris e na Universidade Tecnológica de Loughboro, na Inglaterra sobre desenvolvimento de cooperativas e associaições rurais. Terminei sendo convidado pela Organização Internacional do Trabalho para projetos de combate à pobreza na Colômbia e países andinos.


- Conte um pouco de como surgiu a inspiração para esta obra?


Ao longo de 38 anos de vida em Brasília, acompanhei a evolução e a involução da cidade e do Distrito Federal. O sonho de JK tornou-se nacional. O novo, o moderno e o futuro estavam aqui. Os pioneiros que construíram Brasília e a maioria dos imigrantes que os seguiram vieram buscar aqui o que não tinham em sua terra natal. Ninguém abandona sua terra sem dor e sem lágrimas. Estão aqui porque não podem estar lá. Mas quando podem, voltam.  Eu ouvi dezenas de histórias emocionantes de camponeses que lembravam com saudade a roça que ficou e o rebanho magro que morreu.  Vi no rosto a vergonha que sentiam por serem analfabetos na capital da república. Juntei todas essas angustias e esperanças em HELIODORA, filha de ninguém, sem registro de nascimento, fugindo da seca para ocupar uma beiradinha à margem da capital federal.

- É a primeira publicação do senhor?

HELIODORA é meu quarto romance e décimo livro. Meu primeiro romance O HOMEM PROIBIDO é autobiográfico. Conto nele minha trajetória de seminarista a sacerdote, carreira que abandonei  em 1968.  Foi publicado em 1997, em Brasília e traduzido para o espanhol e o finlandês. O segundo - EM NOME DO SANGUE - ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura, em Porto Alegre (RS). No ano passado publiquei AS PEDRAS DE ROMA, romance histórico em primeira pessoa, narrado por um papa agnóstico da Renascença - Giovanni de Medici  - que governou a Igreja católica na época da Descoberta, 1513 a 1521.

- Quem são suas influências literárias?

Tenho lido os clássicos brasileiros e estrangeiros. Sou um homem de antigamente. Dostoievski, Stendhal, Marguerite Yourcenar, Machado de Assis, Graciliano Ramos,  Oscar Wilde, Hannah Arendt, Aldous Huxley são sempre atuais. Eles anteciparam nosso tempo e o tempo de minhas netas. Gosto de escritor que pensa. Alguns leio pelo conteúdo. Outros, pela forma.

- Largou por completo a profissão de sociólogo e filósofo?

HELIODORA prova que não. É preciso ser sociólogo persistente e filósofo atento para entender os economistas de plantão, arquitetos,  engenheiros e especialmente os politicos de Brasília.

- Qual próximo projeto? Algum em andamento?

Escrever tornou-se um prazer irrecusável. Projetos não faltam. Para fevereiro, pretendo enviar à editora Paulo Francis um novo romance, singular e inédito na forma. O personagem é invísível e convive comigo e com todos sem ser percebido. O dia em que paramos para ouvi-lo, nosso pequeno mundo existencial entrara em nova órbita de convivência.

- Se o senhor pudesse traçar um objetivo para seu livro, qual seria, ou seja, o que você busca alcançar com a obra?

É uma singela escultura em homenagem aos que vieram a Brasília, simbolizada em HELIODORA, isto é, nos que se tornaram nossos pedreiros, nossos vigias, nossos garis, nossas empregadas, nossas diaristas, nossos caseiros. É uma história simples, do Brasil atual, desse Brasil profundo que não é captado por uma política humanista nem pelas estatísticas oficiais. As estatísticas se preocupam com números e nào com sentimentos, com dor física e lágrimas de saudade. Quis lembrar o que as estatísticas não dizem.

- Como o senhor classificaria sua "maneira de escrever"?

Cada escritor conta a história à sua maneira. Por temperamento, gosto da ironia e de pôr em claro as contradições dos discursos e o vazio da retórica dos donos do poder. Tenho profunda simpatia pela liberdade de pôr vírgulas sem me impressionar com a autoridade arbitrária de gramáticos e sintáticos.

 - O senhor compararia seus "trejeitos" de escrita aos de algum outro escritor?

Conscientemente, não. Mas, dominados pelo inconsciente, é provável que ocorram imitações ocasionais. Mas procuro ser original e escrever da forma que me satisfaça e seja compreensível ao possível leitor.

- O que você precisa ter por perto quando escreve (bebida, talismã, música)?

Meu companheiro de escrita, nas primeiras horas da manhã, é o chimarrão. No mais, é o silêncio e o isolamento que me inspiram.

- Algum convidado especial no lançamento do livro, dia 24?

O vigia do meu bloco, Leandro.

- O que o senhor sentiu quanto apertou o ponto final do teclado e percebeu que havia concluído a obra?

Fiquei com saudade de Heliodora, Alcemiro, Gumercinda e do Velho Formiga com os quais convivi 4 meses e meio.

- Mais alguma coisa que o senhor gostaria de ressaltar e que julga importante mencionar?

Heliodora e Alcemiro viviam numa propriedade castigada pela seca. Vivemos num país de grandes chuvas mesmo em áreas de longas secas, capazes de alagar e destruir cidades. A água cai e se perde. Não sabemos cuidar das nascentes, dos rios e dos lagos. Em vez de revitalizar com inteligência o Rio São Francisco, o dessangramos com a transposição. Tira-se sem repor. Reflorestar nosso país é uma das mensagens de Heliodora.

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