segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

DESGRAÇAS

As chuvas continuam caindo e os morros, aqui e ali, soltam-se e descem arrastando árvores e casas. O solo que se formou e aderiu à rocha, não muito profunda, foi povoado pela vegetação rasteira e por árvores que enfiaram suas raízes nas fendas até onde sua força pôde. O trançado das raízes forma uma camada subterrânea compacta e unida. É sua garantia de firmar-se sobre as encostas. Alterando e cortando essa trama invisível, ameaça-se a estabilidade do conjunto. A terra encharcada amolece e escorre como lama. As raízes das árvores se desprendem parcialmente e os troncos pesados e a ramada carregada de milhares de litros de água, empurrada pelo vento e sugadas pela lei da gravidade tombam e despencam ladeira abaixo.
É um fenômeno universalmente conhecido. Slavina, na Itália, avalanche, na França, se assemelham aos deslizamentos de nossas encostas. Esse fenômeno pode ser agravado e até ser causado pela inadequada ocupação do solo e exploração das riquezas naturais, possíveis de serem utilizadas pelo homem.
Os conhecimentos geológicos permitem determinar o quanto se pode explorar e onde ao homem convém fixar-se e construir seu abrigo com segurança. Em outros tempos, o instinto, a percepção e a observação eram suficientes para desaconselhar o homem a estabelecer-se em áreas ameaçadas de inundação. Hoje há leis sábias e orientadoras que o cidadão ignora por displicência.
Escolher o lugar de sua casa apenas pela beleza do lugar ou por não ter outra opção, premido pela necessidade e pobreza, sem o conhecimento do solo onde pisa é entregar-se ao acaso, à sorte e à força da Natureza, cujas leis implacáveis funcionam sem descanso.
É comum, diante da casa e da lavoura destruídas, as pessoas entrevistadas expressarem seu desespero e frustração: “Levei 30 anos para juntar economias e levantar minha casa e, em dez minutos, perdi tudo”.
A decepção é compreensível. É próprio do ser social comunicar-se por aquilo que possui e menos por aquilo que é. Quem passa, vê a casa grande ou a choupana. Ao lado de uma, pode estar um carro de luxo, protegido por grades e cães. Ao lado de outra, apenas uma carroça, um cavalo magro e um cão dormindo na porta. Nosso respeito se manifesta pelas aparências que escondem o ser que ele é. A pessoa que perdeu seus bens materiais acumulados com trabalho, dedicação e astúcia, sente-se nua, traída e, de repente, igual ao pobre da choupana por onde a lama não correu. Humilhação, castigo, falta de sorte, vingança de Deus. Há, nessas ocasiões, pessoas que interpretam a ação divina de forma discricionária e discriminatória. Matou o vizinho e me poupou. Que teria Deus contra o vizinho? Os que não foram mortos por Deus tomam o fato como milagre. Naquele momento ele estava olhando só para eles.
A vantagem dos mortos sobre os vivos é que não precisam mais se preocupar em construir nova casa e se endividar em bancos ou ser reféns da burocracia política.
O fenômeno natural é eivado de pequenos acasos e tem aspectos seletivos. A intensidade, a extensão, a velocidade e a direção de um deslizamento não são lineares. A enxurrada arrasta uma árvore e não derruba outra. Atinge parte da casa e, outra, não. Ocorre quando pessoas ocupam o lugar e, como se viu, outras estavam fora ou saíram a tempo.
O fenômeno natural não tem preconceito. É movido por leis físicas, Derruba a casa que estava em seu caminho e poupa a pessoa que trabalhava ao lado. A casa das pessoas vivas pode ser reconstruída pelos vivos e só lhes resta enterrar os mortos.
A força, a coragem, a criatividade das pessoas que construíram as casas derrubadas pelo acidente natural ainda permanecem neles. Essas circunstâncias são propícias para distinguir o ser do ter e perceber que ambos são frágeis diante de forças desconhecidas, regidas por leis conhecidas.
A dor, a tristeza, a frustração por perdas materiais tocam no orgulho e vaidade do ser inteligente porque ele toma o infortúnio como derrota pessoal, Sente-se humilhado pelo mais forte como se estivesse no ringue. “Por que eu”? Em outras palavras: “que morram os outros, não eu”!
Nesse momento, ele compara os 30 anos de trabalho, de luta, de astúcias E de artifícios com os cinco minutos do tremor da Natureza que o escolheu para vítima da violência física. Jô, coberto de chagas, compreendeu a instabilidade da vida: “ela me deu, ela me tirou”.
Um conhecimento mais profundo da natureza e da vida, do espaço e do tempo pode repor as perdas ou mesmo evitá-las. O espírito de dominação, a ânsia de subjugar a natureza deve ser substituído pelo diálogo com ela, pelo conhecimento das leis físicas que indicam o caminho da convivência e da precaução, não apenas a exploração de suas riquezas. Do conhecimento à sabedoria o passo é longo, lento e difícil.

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