sábado, 17 de dezembro de 2011

BRASÍLIA POR DENTRO


(Estas reflexões são apenas um olhar paisagístico e não acadêmico sobre a construção da cultura que poderia identificar o povo brasiliense nos primeiros cinquenta anos de sua existência.)

Geógrafos, arquitetos, engenheiros, urbanistas de várias especialidades observam, analisam, apontam virtudes, indicam falhas e propõem soluções aos problemas enfrentados pela metrópole física de Brasília e a possível lógica de seu ordenamento territorial. A ocupação urbana ordenada ou desordenada dos espaços pela população, o desenho das quadras habitacionais e comerciais, os desvios ao projeto original, a conservação do patrimônio tombado, a mobilização e o deslocamento dos cidadãos em busca de serviços e do local de trabalho são objeto de constantes debates e embates entre as diferentes forças políticas, empresariais, intelectuais e de organizações populares.

Especialistas de distintas profissões relacionam a ocupação urbana com os efeitos sobre a natureza, os fluxos de água, a vegetação, os riscos da desertificação, o adensamento e a mobilidade dos cidadãos como aspectos que interferem na qualidade da vida das pessoas. Numa das pontas, estão a oferta de habitação e a formação de novos assentamentos para atender ao afluxo da população e ao crescimento demográfico. Na outra ponta, está a preocupação pela batalha perdida do trânsito em razão da deficiência do transporte coletivo. A pressão da demanda dos principais serviços básicos concentrados no coração do Plano Piloto, com a presença agravante. ali, da Rodoviária, leva às soluções tradicionais de abrir novas vias, duplicá-las, expandi-las, levantar viadutos e pontes. Todos esses canais convergem para o ponto central formando-se o círculo de soluções inócuas.
São aspectos importantes, mas todos relacionados à estrutura física da cidade, embelezada com arquitetura moderna, monumentos geniais, alguns, pesados e massivos, outros, justificados ou não pela concepção estética e artística de seus criadores. A vida urbana, porém, não se esgota no aspecto físico, embora nele moureje e sobreviva o cidadão.

Que relação plural de causa e efeito tem a ocupação e o uso múltiplo do espaço físico urbano com os termos de convivência na cidade como expressão e consolidação da cultura, da preservação de valores fundamentais que favoreçam a interdependência pacífica dos seres humanos entre si e com a natureza? Que relação tem os modernos monumentos arquitetônicos e sua distribuição estética no espaço urbano com os comportamentos dos cidadãos como possíveis artífices da cultura urbana de Brasília?
Esse arcabouço arquitetônico pertence ao conceito da cidade projetada ou aos ditames da cultura de seus cidadãos? O projeto pretendia revolucionar a cultura urbana ou a arquitetura urbana tradicional? Parece-me que aspectos fundamentais na construção cultural, seja no vilarejo, na metrópole ou no país, residem na conservação e preservação de um “status quo”. Seja ele qual for, determinado pela convivência de grupos, da célula familiar ao corpo semidisforme da sociedade global incluindo-se a tentacular organização governamental.
As intenções, os projetos, as decisões, todas as energias dos indivíduos e grupos se destinam a preservar o poder originado da própria existência do ser, isto é, o poder pessoal, e a defender esse direito essencial. Esse poder original de ser e existir se transfere para todas as manifestações de poder que incluem a preservação da autoridade constituída, segundo diferentes formas de organização, hereditária ou eleita, a governança, o patrimônio privado e público, material e imaterial.
Posto isto como fundamental, a pergunta é: o que preservar? Esta parece constituir a enigmática pergunta para a preservação do projeto que deu origem a Brasília, hoje Patrimônio Cultural da Humanidade. A comunidade cultural de Brasília, à semelhança de sua estrutura urbana – monumental, residencial, bucólica, gregária – para a organização e comunicação das distintas, múltiplas e futuras funções de cidade-capital e metrópole, cujos limites vão além do perímetro do Distrito Federal, agrega uma sinfonia de comportamentos individuais, familiares, grupais e governamentais.
A pergunta que surge do “o que preservar” se transmuda para “como e onde preservar”. É nesse embate de distintas energias, atitudes, comportamentos e decisões manifestadas pelo indivíduo, pela família, por grupos múltiplos e pela ação do governo que se constrói, no dia a dia, a cultura urbana de Brasília. A cidade, no entanto, é muito nova para se falar em cultura de Brasília. Metade da população trouxe culturas externas e o jogo do poder incentiva a presença de uma população flutuante que pouco contribui para a consolidação e preservação de uma nova cultura e muito menos da cidade. Atravessamos o período em que Brasília é uma grande oficina de ensaios onde “o que proteger” conflita com o “como e onde proteger”. Isto é, como adaptar o projeto da cidade moderna, da arquitetura monumental ao projeto dos hábitos e necessidades tradicionais, artificiais, dos interesses políticos e econômicos. Qual poder, qual patrimônio, qual cultura, qual “status quo” se impõe à preservação, conservação e defesa?

Suspeito que respostas a essas perguntas tenham que ser buscadas no conjunto de valores que são estimulados, veiculados e inculcados explicita ou subliminarmente nas escolas públicas e privadas, nos meios de comunicação que, em grande escala, estão em sintonia com os grupos econômicos, empresas de serviços e com as elites do poder político. É nesse cruzamento de interesses, de conveniências, de poderes privados e públicos que se define a atual cultura da cidade. A explosão imobiliária, o traçado rodoviário para milhares de carros, o espaço físico ocupado deveriam ser corolários auxiliares, mas, no momento, se impõem como núcleo essencial de decisões, atitudes e comportamentos de todos os segmentos da população.
O que e como se ensina, por exemplo, no Centro de Ensino Fundamental da Agrovila Engenho das Lajes, a 50 quilômetros do Palácio do Planalto, no Cnec ou Sigma, sobre Brasília, cidade e capital? Como essas duas categorias de escolas se apresentam como canais de recepção e elaboração da cultura brasiliense? A diferença é tão gritante entre essas escolas que não só parecem pertencer a cidades diferentes, como a países distintos. A criança de sete anos que inicia sua carreira escolar no Engenho das Lajes está a anos-luz de distância da que entra no ensino fundamental numa das escolas acima citadas. Nessa idade, os desníveis da cultura brasiliense já estão a caminho determinando, se não a exclusão, pelo menos a separação impiedosa entre os habitantes do Plano Piloto e os de bairros de Brasília (cidades satélites).
Na construção da cultura urbana de Brasília, qual a contribuição dada pelas grandes escolas-empresas de transmissão de conhecimentos para o futuro profissional da clientela que lhes adquire os produtos? Que sintonia existe entre essas escolas-empresas e as escolas públicas na construção e preservação de valores comuns de uma cultura que vive a mesma cidade, sua expressão arquitetônica, sua grandeza estética e artística? Que sentido de pertencimento a Brasília, ao conjunto arquitetônico e urbanístico e à construção de uma cultura distintiva possuem e demonstram as escolas publicas e as escolas-empresas que interferem na expressão cultural dos cidadãos? Quais são os vetores culturais comuns que atravessam com igual intensidade e constância todos os grupos representativos da comunidade brasiliense?
Outra indagação lógica sobre a construção cultural de uma cidade como Brasília é a quem cabe a iniciativa de propor as condições físicas e sociais para que ela se consolide no curso de sua história. Serão os planejadores urbanos ou os habitantes da cidade? Quem ouve a quem? Os criadores de Brasília tiraram do nada, isto é, de suas concepções arquitetônicas, um traçado e a consequente distribuição de espaços para específicas e futuras funções a serem cumpridas por futuros cidadãos na futura cidade.
A ousadia que surpreendeu o mundo arquitetônico se concretizou em trazer o futuro para o moderno espacial destinado a funções tradicionais a serem desempenhadas por cidadãos tradicionais que viriam de cidades tradicionais. O arcabouço moderno antecipando o futuro, impondo formas e espaços excepcionais e incomuns no planejamento urbano, manteve o conteúdo tradicional da burocracia governamental e o das iniciativas empresariais vindas de outros quadrantes do país.
O barão Georges Haussmann (1809-1891) modernizou e transformou Paris para os parisienses. Os arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemayer projetaram a modernidade para cidadãos não identificados que transportariam de seus locais de origem os costumes tradicionais de belas cidades tradicionais. Viriam readaptar-se ao traçado urbano e ocupar os prédios monumentais para executar as mesmas funções exercidas antes em ruelas estreitas e edifícios bolorentos. Como o país, Brasília foi habitada e construída por estrangeiros e, em certa medida, continuam estrangeiros nela.
A distância entre o moderno e o tradicional, entre o futuro e o presente, foi e está sendo percorrida a passos lentos, cansados, com avanços e recuos exigidos pelo esgotamento do esforço de adaptação. Neste percurso, perde-se parte da carga cultural trazida pelos imigrantes e substitui-se por outra que permita a sobrevivência dentro de uma nova circunstância social. Não é de estranhar que o presente e o moderno tenham feições velhas e destoantes do futuro proposto como imagem de uma nova cidade e de um novo tempo.
Na futura Brasília, Lúcio Costa imaginou e definiu como e onde deveriam localizar-se cada um dos elementos urbanos: vias, parques, jardins, blocos residenciais, escolas, igrejas, clubes, áreas de lazer, comércio e indústria. E, nesses locais, sem combinar com ele, o “elemento” essencial da cidade deveria buscar como e onde situar-se e adaptar-se. No imenso tabuleiro do planalto, o cidadão tornou-se uma peça do xadrez urbano. O soldado será sempre soldado mesmo quando atrevidamente come a rainha. A função das peças foi determinada previamente e seus movimentos estão previstos. Mas, como se trata de peças vivas, a adaptação ao tabuleiro põe em jogo a diversidade de circunstâncias, de formas de pensar, de experiências vividas e novas, de interesses e necessidades, de aspectos culturais de distinta origem. Esses novos elementos são imprevisíveis no seu processo de execução e em seus resultados, a ponto de se tornarem mais importantes do que o tabuleiro sobre o qual foram convocados a jogar.
Como e onde se expressam os cidadãos nem sempre coincidem com um plano urbanístico imaginado como modelo de cidade. As formas de expressão dos cidadãos, embora não tenham um lugar especifico para revelarem as múltiplas nuances da cultura, se demonstram, em geral, nas edificações públicas, parques, igrejas, escolas, arenas de esportes. Nesses espaços, se adquirem e se comunicam conhecimentos, valores, costumes, lendas, mitos, leis, códigos, por meio da palavra e da música. O aparecimento de Brasília está atrelado ao “sonho de Dom Bosco”, um sacerdote estrangeiro, única lenda a pairar sobre o imaginário popular.
Onde se encontram esses espaços, em Brasília, abertos à feira cultural dos quase três milhões de habitantes do Distrito Federal? Onde residem os cidadãos vis a vis desses espaços? Que grupos frequentam quais espaços culturais onde possam alimentar ou expor sua criatividade? Ou essa imensa e flexível criatividade está pré-determinada e sutilmente direcionada para a funcionalidade imposta pela autoridade arquitetônica e estética dos espaços?
A localização desses espaços, no mapa da cidade, indica o autoritarismo estético que domina o estilo e o método de distribuição de possibilidades de manifestação cultural do cidadão brasiliense. O Teatro Nacional, onde se concentra a apresentação de valores musicais clássicos nacionais e internacionais, está no centro do Plano Piloto, a distâncias de todos os bairros entre 25 e 30 quilômetros. Igualmente, o Cine Brasília, palco dos festivais de cinema, o Centro Cultural do Banco do Brasil, o teatro da Caixa Econômica Federal, o Pier 21, a Casa Park (e a antiga Academia de Tênis) locais em que se oferece produção teatral e exibição de filmes temáticos, são acessados por clientes que, em sua maioria, possuem transporte individual. Os que compõem a ordem dominante gozam da múltipla oferta de benefícios culturais a eles adequada em qualquer ponto da cidade onde se realizam.
O princípio não escrito, mas aceito sem contestação, da exclusão dos “estrangeiros “ que habitam os guetos da periferia de Brasília, é expresso na prática da desintegração social exibida pelos usuários privilegiados, pelos empresários da cultura e pela lógica imposta à administração pública. Consolida-se, assim, a deformidade social da população brasiliense com a ajuda do projeto urbano rigorosamente estético.
A reação popular dos “estrangeiros” que vieram ocupar os espaços de Brasília e contribuir para que o projeto urbano se cumprisse dentro das normas concebidas a priori se manifesta na preservação do status quo cultural que eles trouxeram na carroceria do pau-de-arara. Se não se consolidou a proposta dos Clubes de Vizinhança, incapazes de receber os vários grupos de estrangeiros ocupantes das superquadras, a alternativa agregadora se estabeleceu nos clubes sociais de categorias funcionais, na Casa do Ceará, nos CTGs gaúchos, ou na tentativa de estabelecer um sambódromo na Ceilândia e outras iniciativas salvadoras da diversidade cultural das populações radicadas em Brasília.
Milhares de brasilienses, diariamente, percorrem o traçado planejado da cidade e passam insensíveis diante de monumentos que, em 1987, se constituíram como principais responsáveis para seu tombamento. É também provável que desconheçam os nomes dos criadores de Brasília e da maior parte das obras de arte que enfeitam a cidade. Por que se sentiriam eles mais brasilienses que cearenses, piauienses ou gaúchos?
As vias de acesso rodoviário, ferroviário e, agora o VLP ou T são soluções que favorecem e consolidam a dependência dos bairros ao Plano Piloto. Destinam-se a relacionar os bairros ao centro e não a descentralizar as oportunidades de trabalho, educação, saúde, cultura.
Na retrospectiva dos 50 anos da inauguração de Brasília, pontuo alguns marcos ou eras (etapas, fases). A primeira (1892/94-1970), a era da construção e execução do projeto físico da cidade-capital, começa com as missões exploratórias, se estende até a inauguração e transferência da sede do governo e se prolonga por alguns anos. Os dez anos após a inauguração recebem os novos habitantes oficiais que se mudariam para a nova capital a fim de pôr em funcionamento a máquina administrativa.
Segue-se, não de forma compartimentada no tempo, a era do povoamento básico (1970-1985), que atraiu cidadãos de todos os estados da Federação, com maior intensidade de imigrantes vindos do Nordeste e do Norte do país. Em vinte anos, Brasília já contava com um milhão de habitantes que se estabeleceram em bairros (cidades satélites), a 25 ou 30 quilômetros do Plano Piloto.
A terceira (1985-1995), a era política se sobrepõe às duas anteriores, com a instituição de um governador designado pelo Presidente da República e a eleição de deputados para a Câmara Legislativa do Distrito Federal. O olhar sobre a capital e suas funções se voltou para o processo eleitoral clientelista e a formação de alianças políticas, econômicas, empresariais. Intensifica-se, a partir desta era, a ocupação do solo por meio de grilagem de terras e formação de condomínios horizontais sobre áreas de proteção ambiental causando graves danos à natureza e à própria população.
A quarta era (1995-2011), vivida atualmente, iniciada, sem muito rigor de tempos, há 15 anos, é a da explosão e exploração empresarial imobiliária associada a “eixos de crescimento da cidade (....), definidos por sistemas viários” (Governo Arruda) capazes de suportar 1,3 milhão de automóveis, linhas de metrô, VLT, mantendo o precário transporte público rodoviário. Nesta era, é favorecido o adensamento urbano pela construção vertical, formando bairros atípicos diante do projeto urbanístico do Plano Piloto.
É interessante e sugestivo examinar e identificar a trajetória da formação cultural de Brasília, em cada uma dessas eras, seus vetores de expressão, seus inibidores, processos de regressão e os aspectos que a diferenciam de outras cidades. O importante é detectar o que e como a população de Brasília está disposta a preservar, conservar e defender como cultura brasiliense. Qual será o status quo necessário, conveniente, de interesse comum que as escolas públicas e privadas, a mídia e o governo pretendem construir e preservar com a contribuição plural da população.
Na era em que vivemos, há pelo menos um indício ou um traço cultural que perpassa, de maneira especial, a nova geração borboleta de Brasília: a frequência aos shoppings e aos bares da moda, em seus carros novos, munidos de celulares, Ipades e Iphones.

Não poupe seus comentários. Envie-os pelo e-mail:





Nenhum comentário: