sexta-feira, 14 de junho de 2013

DIREITOS DA NATUREZA E DIREITOS DO HOMEM




(Foto: viver a natureza é pisar na terra da qual estamos feitos. Falar terra a terra.)

A expressão “direitos da natureza” foi rejeitada como “absurda” pelo filósofo, historiador e ambientalista australiano John Passmore (1914-2004). A menção acima foi cunhada por outros ecologistas em contraposição à Declaração Universal dos Direitos Humanos (Resolução 217, 10.12.1948) para combater as injustiças, os preconceitos e as desigualdades.
Difundiu-se, em quase todas as culturas, a teoria, aplicada à pratica, baseada em lendas criacionistas, de que a natureza e tudo o que a compõe, vidas e belezas, são para a felicidade exclusiva da espécie humana, atitude dita antropocentrismo. O homem, ao lado da matéria inanimada, da matéria viva, é a única matéria consciente capaz de expressar com a palavra as associações da mente. Matéria consciente porque é feita dos mesmos átomos – hidrogênio e carbono – que se encontram em todos os seres vivos.
Como esses mesmos elementos desembocaram na evolução cerebral para tornar a matéria humana consciente é o segredo da vida e o mistério do universo. É tão fantástico que, ao longo da história humana, se buscaram explicações não naturais. Que efeito extraordinário não deve ter sido, há milhões de anos, quando nosso antepassado disse “existo” ou deu nome a um objeto útil ou a um fruto comestível! Hoje, dizemos as maiores idiotices sem perceber-lhes o significado e as consequências. Esse diferencial em relação a toda outra matéria produziu tamanha autoconfiança e supremacia que logo, alguns milênios depois, o homem se autodenominou rei da criação com direitos monárquicos.
A humanidade é uma briga de reis. É tamanha a convicção de sua nobreza real individual que, milhões de anos depois, a cúpula da monarquia humana propôs uma lista de direitos do homem-rei. A quem o rei da criação vai reclamar seus direitos a não ser a si mesmo? O direito é o reconhecimento de uma prerrogativa, um privilégio, um favor. Como todos os reis têm as mesmas prerrogativas, atendê-las vai depender de juízes, árbitros, advogados de acusação e defesa, de sentenças e execuções.
O rei humano costuma impor suas prerrogativas e concluir que elas são superiores e mais valiosas que a de outras vidas. As guerras antigas e as atuais se originam da organização hierárquica dessas prerrogativas, da força e da astúcia de sua defesa. Reis fortes contra reis fracos. No dia em que nosso ancestral disse “eu existo” e ouviu outro vizinho repetir a mesma descoberta, foi declarada a guerra universal e a comida começou a escassear.
As prerrogativas da monarquia que se expandiam sobre vastas regiões da terra, primeiramente baseadas na alimentação, resultaram na escassez de frutas, da caça e da pesca. Os monarcas avançaram sobre as florestas, os rios e os mares. A domesticação de animais e de sementes deu aos monarcas ou reforçou neles a ideia e a convicção de que têm direito sobre qualquer vida que se manifesta ao seu redor.
Em contraposição aos direitos da monarquia humana surgiu dela mesma uma reação crítica às consequências da imposição dessas supostas prerrogativas sobre as outras formas de vida. A vida é a prerrogativa essencial comum a todos os seres vivos. As vidas se intercomunicam e interdependem. A vida é um traço que une todas as matérias vivas, independentemente de sua característica essencial. Uma vida depende de outra. Relação intervivos que o ambientalista norueguês Arne Naess denominou ecologia profunda. Todas as vidas são formadas pelos mesmos elementos que se associam, são processados, elaborados e novamente transformados em vidas.
A quem as árvores vão reclamar suas prerrogativas para continuarem sua função de laboratório produtor de oxigênio? Não esperam elas que os humanos saibam usar as próprias prerrogativas para que a vida do planeta continue?
As prerrogativas do monarca humano se originam da prerrogativa da vida de todos os seres vivos que forma a cadeia sintrópica da interdependência concebida por McHargh. Os direitos do homem nada têm a ver com o tribunal da natureza. É uma questão a ser resolvida nos tribunais do homem, isto é, entre monarcas. Nem a natureza pode sofrer com a guerra entre monarcas que não conseguem se entender em seus próprios tribunais.

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Há que buscar outra saída para o diálogo entre o ser consciente e os bilhões de outros seres vivos. A vida não é um direito. Ela é fundamentalmente um fato natural. É a consequência da combinação dos elementos que se copiam e reproduzem no processo evolutivo permanente e resistente. Há fracassos nessas combinações especialmente porque uns precisam dos outros para que resultados positivos se alcancem. Os mais resistentes, segundo as leis evolucionistas, sobrevivem. Há um poder molecular intrínseco, imanente na organização genética dos seres vivos (E. O. Wilson). As imensas florestas de pinheiros-araucária indicam uma tribo vegetal poderosa, mas limitada por outras espécies organizadas. A organização social e política da espécie humana repete essa mesma forma de expressão, de ocupação de espaços, de limitação e de conflitos entre as múltiplas tribos.
Diante do fato da vida, nasce a prerrogativa de sua proteção, conservação e reprodução. A ocupação do espaço físico para reprodução da vida é determinada pela existência de alimentos ou sua facilidade de produzi-los. As diferenças dessa determinação entre o ser consciente e os demais seres vivos estão na forma de adaptação ao clima e suas variações e não na essência, uma vez que todos os organismos vivos se compõem dos mesmos elementos moleculares.
A devastação ambiental, a redução ou extinção de organismos vivos para dar lugar à presença da espécie humana representam limitações à preservação de vidas. O conflito entre tribos ou nações que origina a reclamação dos direitos do homem brota da forma irracional de sua relação com outros seres vivos e da desconsideração da interdependência entre eles.
O pacto de convivência pacifica e racional precisa ser estabelecido entre todas as espécies vivas e esse acordo só pode partir da espécie humana. É o que entendo por ecologia: o permanente estudo da casa comum na qual vivem todos os seres vivos. A preservação e reprodução de vidas, antes de ser emocional, social, política ou mística, são fruto da racionalidade da espécie humana e da sintropia dos seres vivos.
A espécie humana não sobreviverá num planeta estéril e desértico. Perderá seu tempo a reclamar os direitos humanos nos tribunais da ONU. 

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Os direitos humanos elencados pela sábia e prudente Assembleia Geral das Nações Unidas representam uma preocupação antropocêntrica e parcial da convivência dos seres vivos do planeta. Dos trinta artigos aprovados, apenas um parágrafo menciona a comunidade como se ela não tivesse relação alguma com os demais seres que vivem ao seu redor. Mais plausível seria se em vez de “comunidade” fosse dito “biocomunidade”, cenário para um real desenvolvimento humano. Artigo XXIV. 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. É impensável o pleno desenvolvimento da personalidade humana sem a participação de todas as vidas do planeta.
A vida como fato natural, que independe dos direitos humanos, requer a compreensão dos elos biológicos e genéticos comuns a todos os seres vivos. A sobrevivência da espécie humana está nas mãos dos agricultores, dos planejadores de cidades cada dia mais fazedores de desertos, dos investidores e empresários de indústrias poluidoras, de consumidores vorazes e obsessivos, de governos erráticos promotores de grandes índices de crescimento econômico para manterem poder político. Não menos importante é o controle inadiável da expansão demográfica universal.
O argumento de que a tecnologia poderá solucionar indefinidamente a questão alimentar ou que a injusta distribuição da renda é a causa da miséria, da fome e da exploração do homem pelo homem, muitas vezes, têm mero valor matemático e estatístico para justificar o comércio e o consumo de bens nem sempre necessários e, muitas vezes supérfluos. Os artifícios tecnológicos para adaptação da espécie humana às variações climáticas são importantes e necessários, mas são estruturalmente limitados pela gradativa diminuição da biodiversidade.

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O impacto do superpovoamento local, nacional e mundial apresenta, pelo menos, dois aspectos importantes. O primeiro é a pressão sobre a biosfera, a biodiversidade, os cursos de água, a busca de alimentos colhidos na natureza ou produzidos e a complexa organização do assentamento humano em extensas urbanizações. Modifica-se o ambiente. Adapta-se a área às condições de sobrevivência, reprodução e conforto da população. Uma espécie viva toma o lugar de milhares de outras espécies vivas que são deslocadas ou simplesmente eliminadas. Eliminam-se dez e repõe-se uma, se tanto.
O segundo aspecto se reflete na histórica incapacidade de administrar com justiça e equidade grandes populações e toda a população. Em consequência, é grande a desigualdade na oferta de oportunidades em temas essenciais como alimentação, água, qualidade do conhecimento universal, da saúde física e mental que favoreçam a criatividade individual em benefício da comunidade mundial da espécie humana.
É o confronto universal dos seres vivos no único cenário possível: a natureza. Todos os seres vivos estão confrontados em defesa de suas prerrogativas básicas de sobrevivência, reprodução e sucessão das espécies. Esse confronto é regulado pela lei natural da vida ou, como já definia Lucrécio antes de nossa era, pela natureza das coisas (rerum natura).
A Natureza põe, indistintamente, à mesa de todos os seres vivos os mesmos elementos que asseguram a vida. Os elementos são comuns e determinados pelo processo iniludível da interdependência vital e seminal de todas as espécies vivas. A sobrevivência de uns depende da sobrevivência de outros. A água, o hidrogênio, o carbono, o oxigênio presentes em todos os seres vivos põem a todos no mesmo pé de igualdade vital.
As características de cada espécie, seja roseira ou bananeira, girafa ou leão, são prerrogativas a serem consideradas no conjunto dos seres vivos que habitam a mesma casa – ecocomunidade – cada qual em seu ambiente especifico.
Como administrar a interdependência dos seres vivos? É uma questão cuja resposta é de exclusiva responsabilidade da espécie humana, pois é a única a ter consciência de sua origem e de seu fim. As demais espécies vivas são reguladas pelas variações climáticas e se adaptam segundo suas capacidades genéticas e biológicas. Dependem, como a espécie humana, de fenômenos naturais, normais ou violentos – terremotos, erupções vulcânicas, incêndios e outros cataclismos. Mas pesa sobre os seres vivos a mão do homem, sua capacidade de organizar e destruir vidas, inclusive a própria vida.
Compreender e administrar a interdependência dos seres vivos constituem para a espécie humana a base de sua resposta e é, ao mesmo tempo, o fundamento da ecologia. Seu comportamento resultante da compreensão desse laço iniludível da solidariedade genética e biológica deveria conduzi-lo a decisões racionais, éticas e morais.
Preservar as prerrogativas vitais de todos os seres, ou seja, obedecer ao funcionamento das leis naturais será a garantia da própria sobrevivência. Que tipo de respostas dão as políticas do crescimento econômico, industrial, financeiro e comercial à interdependência dos seres vivos de cujo universo o ser consciente faz parte? Na prática, chocam-se os conceitos de crescimento econômico e de desenvolvimento dito sustentável.
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Nota: Sou sociólogo naturalista e escritor. Administro uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo obsessivo, uma reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para refúgio de variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa (3.500 espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação de águas pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de algumas espécies da biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).

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