(Foto: Rodoviária para a Esplanda dos Ministérios)
Visitei Brasília pela primeira vez, em 1966. Vinha do
Rio de Janeiro, num ônibus semileito, em companhia de Ana Terra do Nascimento.
Era madrugada. Na altura de Cristalina, pela janela do
ônibus, via-se ao longe o piscar de muitas luzes soltas, pendidas no ar. Era Brasília,
uma miragem suspensa no horizonte.
As luzes, a cem quilômetros, emitiam mensagens
sedutoras. As sereias luminosas me tocaram a alma. Fizeram-me tremer os nervos.
Alertaram-me sobre as profundezas desse mar político desconhecido na imensidão
do Planalto Central.
Comecei ali, no meio do cerrado cristalino, a amar
esta cidade, de longe, encantado pelo piscar de olhos no oeste distante.
Horas depois, o ônibus estacionou na rodoviária
deserta. A brisa fria de maio batizou-me. Tudo em volta era grandioso,
espaçoso, mergulhado num silêncio denso.
Olhei para a Esplanada dos Ministérios. Os prédios
enfileirados esperavam, mudos, imóveis, o despertar de servidores ainda
aturdidos pelo vazio urbano.
Emudeci no meio de tanto silêncio. Despedi-me de Ana
Terra e caminhei em direção à Asa Sul.
Pelas avenidas amplas, poucos ônibus e poucos carros.
Eu ocupava todo o espaço. Por onde andariam os cidadãos desta cidade? Todo o
espaço era meu. Uma fina ilusão de liberdade ampla e irrestrita me fez sonhar.
A cidade sem moradores entrava em mim. Senti nos
músculos da alma uma pontada suave. Dizia-me que estava amando, à primeira
vista, uma cidade oca feita de prédios monumentais, envoltos em solitude e sem
gente. Eu era um fantasma caminhando pelas avenidas em busca de uma calçada
humana.
Brasília se revelou a meus olhos pelo silêncio
monumental. A cidade era do tamanho do horizonte. Iluminada. Generosa.
Hospitaleira. Que mais me podia oferecer? Que mais podia eu receber?
Eu não imaginei nem ela me advertiu que, passados
quarenta anos, me entristeceria diante de sua beleza desfigurada pela mão do
descaso e da ignorância.
Que o silêncio das árvores retorcidas e o canto triste
da seriema se trocariam pelo ronco cavernoso de um milhão de automóveis.
Que ao ver milhões de vidas vegetais e milhares de
olhos d’água serem sepultados sob o casco dominador de edifícios arrogantes,
sentiria náuseas da indiferença humana.
Que ao ver e ouvir novos profetas e sacerdotes da
maquiagem urbana, eles me despertariam nojo metafísico por sua insanidade.
Que ao sentir o peso dessa outra Brasília, opressora e
dominadora, se levantaria na alma antiga uma revolução vingadora contra a
impostura.
Uma aliança verde ligou aquela Brasília primeira a uma
área de cerrado que liberei da opressão industrial e da tirania do consumo
obsessivo. Naquela zona liberada do despotismo ganancioso, reencontro o
silêncio monumental que me abraçou ao mirar a planura da Esplanada.
Aquela Brasília primeira, avistada do alto de
Cristalina, de luzes suspensas no horizonte de onde me acenava a esperança, não
morre nunca.
Volto diariamente a ela. Àquela Brasília primeira do
silêncio monumental que me seduziu, que entrou em mim e que nela entrei.
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Nota: Sou sociólogo naturalista e escritor. Administro
uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo obsessivo, uma
reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para refúgio de
variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa (3.500
espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação de águas
pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de algumas espécies da
biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).
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