
(Foto: viver a natureza é pisar na terra da qual estamos feitos. Falar terra a terra.)
A expressão “direitos da natureza” foi rejeitada como
“absurda” pelo filósofo, historiador e ambientalista australiano John Passmore (1914-2004).
A menção acima foi cunhada por outros ecologistas em contraposição à Declaração
Universal dos Direitos Humanos (Resolução 217, 10.12.1948) para combater as
injustiças, os preconceitos e as desigualdades.
Difundiu-se, em quase todas as
culturas, a teoria, aplicada à pratica, baseada em lendas criacionistas, de que
a natureza e tudo o que a compõe, vidas e belezas, são para a felicidade
exclusiva da espécie humana, atitude dita antropocentrismo. O homem, ao lado da
matéria inanimada, da matéria viva, é a única matéria consciente capaz de expressar com a palavra as
associações da mente. Matéria consciente porque é feita dos mesmos átomos –
hidrogênio e carbono – que se encontram em todos os seres vivos.
Como esses mesmos elementos desembocaram na evolução
cerebral para tornar a matéria humana consciente é o segredo da vida e o
mistério do universo. É tão fantástico que, ao longo da história humana, se
buscaram explicações não naturais. Que efeito extraordinário não deve ter sido,
há milhões de anos, quando nosso antepassado disse “existo” ou deu nome a um
objeto útil ou a um fruto comestível! Hoje, dizemos as maiores idiotices sem
perceber-lhes o significado e as consequências. Esse diferencial em relação a
toda outra matéria produziu tamanha autoconfiança e supremacia que logo, alguns
milênios depois, o homem se autodenominou rei da criação com direitos
monárquicos.
A humanidade é uma briga de reis. É tamanha a
convicção de sua nobreza real individual que, milhões de anos depois, a cúpula
da monarquia humana propôs uma lista de direitos do homem-rei. A quem o rei da
criação vai reclamar seus direitos a não ser a si mesmo? O direito é o
reconhecimento de uma prerrogativa, um privilégio, um favor. Como todos os reis
têm as mesmas prerrogativas, atendê-las vai depender de juízes, árbitros,
advogados de acusação e defesa, de sentenças e execuções.
O rei humano costuma impor suas prerrogativas e concluir
que elas são superiores e mais valiosas que a de outras vidas. As guerras
antigas e as atuais se originam da organização hierárquica dessas
prerrogativas, da força e da astúcia de sua defesa. Reis fortes contra reis
fracos. No dia em que nosso ancestral disse “eu existo” e ouviu outro vizinho
repetir a mesma descoberta, foi declarada a guerra universal e a comida começou
a escassear.
As prerrogativas da monarquia que se expandiam sobre
vastas regiões da terra, primeiramente baseadas na alimentação, resultaram na
escassez de frutas, da caça e da pesca. Os monarcas avançaram sobre as
florestas, os rios e os mares. A domesticação de animais e de sementes deu aos
monarcas ou reforçou neles a ideia e a convicção de que têm direito sobre
qualquer vida que se manifesta ao seu redor.
Em contraposição aos direitos da monarquia humana
surgiu dela mesma uma reação crítica às consequências da imposição dessas
supostas prerrogativas sobre as outras formas de vida. A vida é a prerrogativa
essencial comum a todos os seres vivos. As vidas se intercomunicam e
interdependem. A vida é um traço que une todas as matérias vivas, independentemente
de sua característica essencial. Uma vida depende de outra. Relação intervivos
que o ambientalista norueguês Arne Naess denominou ecologia profunda. Todas as
vidas são formadas pelos mesmos elementos que se associam, são processados,
elaborados e novamente transformados em vidas.
A quem as árvores vão reclamar suas prerrogativas para
continuarem sua função de laboratório produtor de oxigênio? Não esperam elas
que os humanos saibam usar as próprias prerrogativas para que a vida do planeta
continue?
As prerrogativas do monarca humano se originam da
prerrogativa da vida de todos os seres vivos que forma a cadeia sintrópica da
interdependência concebida por McHargh. Os direitos do homem nada têm a ver com
o tribunal da natureza. É uma questão a ser resolvida nos tribunais do homem,
isto é, entre monarcas. Nem a natureza pode sofrer com a guerra entre monarcas
que não conseguem se entender em seus próprios tribunais.
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Há que buscar outra saída para o diálogo entre o ser
consciente e os bilhões de outros seres vivos. A vida não é um direito. Ela é
fundamentalmente um fato natural. É a consequência da combinação dos elementos
que se copiam e reproduzem no processo evolutivo permanente e resistente. Há
fracassos nessas combinações especialmente porque uns precisam dos outros para
que resultados positivos se alcancem. Os mais resistentes, segundo as leis
evolucionistas, sobrevivem. Há um poder molecular intrínseco, imanente na
organização genética dos seres vivos (E. O. Wilson). As imensas florestas de
pinheiros-araucária indicam uma tribo vegetal poderosa, mas limitada por outras
espécies organizadas. A organização social e política da espécie humana repete
essa mesma forma de expressão, de ocupação de espaços, de limitação e de
conflitos entre as múltiplas tribos.
Diante do fato da vida, nasce a prerrogativa de sua
proteção, conservação e reprodução. A ocupação do espaço físico para reprodução
da vida é determinada pela existência de alimentos ou sua facilidade de produzi-los.
As diferenças dessa determinação entre o ser consciente e os demais seres vivos
estão na forma de adaptação ao clima e suas variações e não na essência, uma
vez que todos os organismos vivos se compõem dos mesmos elementos moleculares.
A devastação ambiental, a redução ou extinção de
organismos vivos para dar lugar à presença da espécie humana representam
limitações à preservação de vidas. O conflito entre tribos ou nações que
origina a reclamação dos direitos do homem brota da forma irracional de sua relação
com outros seres vivos e da desconsideração da interdependência entre eles.
O pacto de convivência pacifica e racional precisa ser
estabelecido entre todas as espécies vivas e esse acordo só pode partir da
espécie humana. É o que entendo por ecologia: o permanente estudo da casa comum
na qual vivem todos os seres vivos. A preservação e reprodução de vidas, antes
de ser emocional, social, política ou mística, são fruto da racionalidade da
espécie humana e da sintropia dos seres vivos.
A espécie humana não sobreviverá num planeta estéril e
desértico. Perderá seu tempo a reclamar os direitos humanos nos tribunais da
ONU.
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Os direitos humanos elencados pela sábia e prudente
Assembleia Geral das Nações Unidas representam uma preocupação antropocêntrica
e parcial da convivência dos seres vivos do planeta. Dos trinta artigos
aprovados, apenas um parágrafo menciona a comunidade como se ela não tivesse
relação alguma com os demais seres que vivem ao seu redor. Mais plausível seria
se em vez de “comunidade” fosse dito “biocomunidade”, cenário para um real
desenvolvimento humano. Artigo XXIV. 1. Toda pessoa tem deveres para
com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é
possível. É impensável o pleno desenvolvimento da personalidade
humana sem a participação de todas as vidas do planeta.
A vida como fato natural, que independe dos direitos
humanos, requer a compreensão dos elos biológicos e genéticos comuns a todos os
seres vivos. A sobrevivência da espécie humana está nas mãos dos agricultores,
dos planejadores de cidades cada dia mais fazedores de desertos, dos
investidores e empresários de indústrias poluidoras, de consumidores vorazes e
obsessivos, de governos erráticos promotores de grandes índices de crescimento
econômico para manterem poder político. Não menos importante é o controle
inadiável da expansão demográfica universal.
O argumento de que a tecnologia poderá solucionar
indefinidamente a questão alimentar ou que a injusta distribuição da renda é a
causa da miséria, da fome e da exploração do homem pelo homem, muitas vezes, têm
mero valor matemático e estatístico para justificar o comércio e o consumo de
bens nem sempre necessários e, muitas vezes supérfluos. Os artifícios
tecnológicos para adaptação da espécie humana às variações climáticas são
importantes e necessários, mas são estruturalmente limitados pela gradativa
diminuição da biodiversidade.
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O impacto do superpovoamento local, nacional e mundial
apresenta, pelo menos, dois aspectos importantes. O primeiro é a pressão sobre
a biosfera, a biodiversidade, os cursos de água, a busca de alimentos colhidos
na natureza ou produzidos e a complexa organização do assentamento humano em
extensas urbanizações. Modifica-se o ambiente. Adapta-se a área às condições de
sobrevivência, reprodução e conforto da população. Uma espécie viva toma o
lugar de milhares de outras espécies vivas que são deslocadas ou simplesmente
eliminadas. Eliminam-se dez e repõe-se uma, se tanto.
O segundo aspecto se reflete na histórica incapacidade
de administrar com justiça e equidade grandes populações e toda a população. Em
consequência, é grande a desigualdade na oferta de oportunidades em temas
essenciais como alimentação, água, qualidade do conhecimento universal, da
saúde física e mental que favoreçam a criatividade individual em benefício da
comunidade mundial da espécie humana.
É o confronto universal dos seres vivos no único
cenário possível: a natureza. Todos os seres vivos estão confrontados em defesa
de suas prerrogativas básicas de sobrevivência, reprodução e sucessão das
espécies. Esse confronto é regulado pela lei natural da vida ou, como já definia
Lucrécio antes de nossa era, pela natureza das coisas (rerum natura).
A Natureza põe, indistintamente, à mesa de todos os
seres vivos os mesmos elementos que asseguram a vida. Os elementos são comuns e
determinados pelo processo iniludível da interdependência vital e seminal de
todas as espécies vivas. A sobrevivência de uns depende da sobrevivência de
outros. A água, o hidrogênio, o carbono, o oxigênio presentes em todos os seres
vivos põem a todos no mesmo pé de igualdade vital.
As características de cada espécie, seja roseira ou
bananeira, girafa ou leão, são prerrogativas a serem consideradas no conjunto
dos seres vivos que habitam a mesma casa – ecocomunidade – cada qual em seu
ambiente especifico.
Como administrar a interdependência dos seres vivos? É
uma questão cuja resposta é de exclusiva responsabilidade da espécie humana,
pois é a única a ter consciência de sua origem e de seu fim. As demais espécies
vivas são reguladas pelas variações climáticas e se adaptam segundo suas
capacidades genéticas e biológicas. Dependem, como a espécie humana, de
fenômenos naturais, normais ou violentos – terremotos, erupções vulcânicas,
incêndios e outros cataclismos. Mas pesa sobre os seres vivos a mão do homem,
sua capacidade de organizar e destruir vidas, inclusive a própria vida.
Compreender e administrar a interdependência dos seres
vivos constituem para a espécie humana a base de sua resposta e é, ao mesmo
tempo, o fundamento da ecologia. Seu comportamento resultante da compreensão
desse laço iniludível da solidariedade genética e biológica deveria conduzi-lo
a decisões racionais, éticas e morais.
Preservar as prerrogativas vitais de todos os seres,
ou seja, obedecer ao funcionamento das leis naturais será a garantia da própria
sobrevivência. Que tipo de respostas dão as políticas do crescimento
econômico, industrial, financeiro e comercial à interdependência dos seres
vivos de cujo universo o ser consciente faz parte? Na prática, chocam-se os
conceitos de crescimento econômico e de desenvolvimento dito sustentável.
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Nota: Sou sociólogo naturalista e escritor. Administro
uma área liberada da opressão industrial e da tirania do consumo obsessivo, uma
reserva natural de cerrado de 70 hectares (Sítio das Neves) para refúgio de
variada fauna de ar e terra, reprodução espontânea da flora nativa (3.500
espécies), proteção de nascentes e recarga de aquíferos com captação de águas
pluviais. Estudo a ocupação do espaço e a organização de algumas espécies da
biocomunidade (mangabeiras, caliandras e catolé).