O tom superior,
dogmático, institucional usado pelo religioso Frei Betto, em seu artigo no
Correio Brasiliense (10.2.2012), tem contornos do pensamento único. Conselheiro
de Lula e peça chave nas decisões do PT, brilhante em todos seus escritos,
creio que por cansaço político ou distração, intitulou seu sermão: Dilma critica o neoliberalismo. Esta
afirmação, escrita em Cuba onde se encontrava nessa ocasião, apareceu quatro
dias após o leilão que privatizou os serviços dos aeroportos de Guarulhos,
Cumbica e Brasília. As novas decisões a serem tomadas sobre os serviços aos
usuários de aeroportos terão como guia o lucro das empresas que abocanharam o
direito aos contratos bilionários.
O artigo,
escrito por um pilar ideológico do governo Lula/Dilma, com direito a reuniões
reservadas na suíte presidencial do Hotel São Rafael, em Porto Alegre, em
companhia do cérebro cinzento da corte Gilberto Carvalho, deu-me oportunidade
para refletir sobre esse novo fenômeno de iludir a sociedade de que o Brasil
foi descoberto há dez anos. As promessas encordoadas nessa e em outras reuniões
vão desde o “assentamento de 180 mil famílias que continuam acampadas à beira
da estrada” abandonadas pelo ex-presidente, até incentivar a “agroecologia para
reduzir drasticamente o volume de agrotóxicos utilizados nas lavouras
brasileiras, envenenando o solo e os consumidores”. Betto sabe que não pode
existir “modelo de desenvolvimento sustentável que combina crescimento econômico
com distribuição de renda” se um dos imensos desafios de qualquer governo for o
de diminuir a indecente desigualdade social, política e econômica dos
brasileiros. Reduziu-se a política de produção de alimentos a um Código
Florestal fisicamente impossível de ser aplicado nas cinco regiões do país. Anunciar
que não se dará “anistia aos produtores rurais responsáveis por crimes
ambientais” e que se chegará ao “desmatamento zero” é uma afronta à realidade
constatada em todos os estados da federação por incapacidade e desinteresse de
múltiplas instituições e vários ministérios que se sobrepõem e conflitam no
exercício de suas funções. Com estatísticas dirigidas pode-se provar o improvável
e até obstruir a virtude de pensar.
Se for melhor
ou pior privatizar, o tempo dirá. Trata-se de uma decisão de política econômica
da maior importância, pois afeta a soberania da nação e compromete os
orçamentos familiares e o de todas as atividades econômicas via pagamento de
impostos. Não é boa ou má apenas pelo deságio efetivado. Privatização significa
transferir poder de decisão, oportunidades de lucros futuros, poder econômico e
consequente poder político. As agências reguladoras, até ontem, têm demonstrado
mais submissão a esses poderes do que força de vigilância, fiscalização e
controle. É assim na telefonia, na energia elétrica, nas rodovias e pedágios,
nas hidrelétricas, e será assim na privatização futura do fornecimento da água.
A privatização
drena, igualmente, capacidade administrativa e gerencial do Estado para
empresas privadas. Os administradores públicos, os executivos, são contratados
pelo critério da governabilidade política, favoritismo partidário e cotas de
aliados. As empresas privadas, pelo critério do mérito profissional, formação
técnica e tecnológica, capacidade de ser eficiente e gerar lucros.
Os ideólogos no
poder, qualquer que seja o partido que o conquiste, dificilmente escapam de
contradições ao defenderem projetos, programas e decisões tomadas e justificam as
prioridades escolhidas de forma inquestionável.
Pobreza,
miséria, desigualdade são temas favoritos dos ideólogos e estrategistas do
governo de turno, e os tratam com lágrimas de emoção e frieza estatística.
Estes temas também estão por trás da decisão de privatizar setores em que o
Estado (isto é, o governo) julga que as empresas podem fazer mais e melhor que
ele porque investem capital, obtidos de bancos oficiais e, portanto, têm que
perseguir lucro para honrar os compromissos.
Em que as privatizações
contribuem para a redução das desigualdades? A experiência tem demonstrado que
as desigualdades são apenas acomodadas em outro patamar com a afirmação de que
tudo melhorou. Diminuir o número de miseráveis e de pobres é um dever
constitucional do Estado e responde a um direito do cidadão, pouco respeitado
durante séculos, e que por força das circunstâncias ele próprio quase esqueceu.
Não é, pois, nenhum favor político.
Até onde vai o
Estado, o que propõe e o que faz, sem julgar suas verdadeiras intenções, é
medido por estatísticas que colhem o grau de satisfação ou insatisfação política
adequada às ações realizadas. A pobreza e a miséria vencidas, em parte, passam
para o domínio dos números absolutos e relativos. Com eles se pretende medir a
igualdade e a desigualdade comparadas com elas mesmas. Uma família que passa a
receber R$ 120,00 por mês, num programa de socorro social (bolsa escola, bolsa
família, cesta básica, vale refeição, vale transporte) é menos desigual a ela
mesma comparando com o obtido no mês anterior. Muda-se a referência entre o
ontem e o hoje da pessoa. Antes, era igual a todos os outros pobres do grupo a
que pertencia. Hoje, é igual a todos os que recebem, como ela, o mesmo
montante. Um aspecto apenas da desigualdade foi afetado.
Os quarenta milhões
salvos da extrema pobreza ultrapassaram a marca de R$ 70,00 por pessoa/mês (R$
2,30/dia) estabelecida pelos critérios que facilitariam expurgá-los dessa situação.
Uma família de cinco pessoas com esse ingresso mensal (R$ 350,00) recebe do
programa de “redistribuição de renda” – Bolsa Família – R$ 190,00, somando um
salário familiar de R$ 540,00, equivalente a um salário mínimo para a sobrevivência
dos cinco membros do grupo. Um executivo de empresa privada é remunerado, em média,
com R$ 80.000,00, ou 128 salários mínimos/mês. Um deputado federal, com R$
100.000,00, ou 160 salários mínimos/mês. Uma diarista urbana, com três anos de
ensino fundamental, dependendo do numero de dias trabalhados pode obter dois a
três salários mínimos por mês, enfrentando horas de trânsito e acomodando-se
aos humores de distintas patroas. Este cenário de desigualdades desafia o
crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável.
Iguais e
desiguais
Igual e
desigual podem ter vários significados se forem considerados alguns fatores
como: tamanho, peso, medida, ter mais ou ter menos, qualidade, ser diferente, capacidade,
oportunidade.
O grito da
Comuna de Paris ecoa em todos os tratados jurídicos dos últimos séculos:
liberdade, igualdade, fraternidade. São três virtudes cardeais da convivência
humana. A miséria e a pobreza caracterizam, num país, desigualdade de
comportamentos, atitudes, conceitos, exigências, participação política, normas
de convivência e conduta. Vale notar como olhamos os desiguais na rua, no
supermercado, no teatro, nas salas de concerto gratuito, nas filas do
aeroporto. Conscientemente, desejamos, queremos a igualdade? Não nos parece
mais aceitável a divisão de classes para pôr em relevo a superioridade de uns e
a subserviência de outros?
Quais são as
referências da igualdade para reduzir a desigualdade e seu rosário de
consequências na organização social e política de uma comunidade? A pobreza, em
seus graus medíveis, do ponto extremo ao aceitável, é sintoma, causa ou
consequência?
A subsistência e
a reprodução de um grupo humano dependem de algumas condições prévias: clima,
geologia, oferta natural de alimentos e possível produção, extensão da área. As
restrições físicas do ambiente podem manter um grupo humano no limiar da
sobrevivência e da penúria durante séculos. Vencer as restrições físicas em
estado de pobreza crônica é um desafio permanente e cheio de derrotas.
A emigração, o
abandono da área inadequada à sobrevivência, a submissão a outros grupos em
situação mais confortável são atitudes destruidoras da identidade de um povo,
mas, talvez, a única possível e tolerável nas circunstâncias. Essa penúria
diante dos escassos meios de sobrevivência pode ser minorada mediante trabalho
e atividades produtivas patrocinadas pelo Estado ou, como se faz no Brasil e em
outros países, há dezenas de anos, outorgando aos pobres instrumento mais
eficaz para obter alimento: dinheiro.
Todos os demais truques institucionais oferecidos nas regiões de pobreza crônica
como o Nordeste (DNOCS, SUDENE, DRI, BANCOS DE FOMENTO) e funcionais (técnicos,
associações, créditos subsidiados, açudes, estradas) foram utilizados,
historicamente, por grupos que podiam ampliar seus meios de produção, sem
contemplar os mais pobres. Os expulsos da agricultura foram absorvidos pela indústria
emigrada de São Paulo com vantagens comparativas de custos e subsídios.
O dinheiro,
também chamado “redistribuição de renda” (bolsa família, bolsa escola, vale
refeição, vale transporte), é a forma mais rápida e eficaz de garantir a
sobrevivência de grupos pobres que lhes facilita a aquisição de produtos de quem
os produz. Os que produzem bens são duplamente favorecidos. Uma, por meio do
aparato institucional e funcional, de creditos subsidiados e isenção de
impostos que os estimulam a produzir. Outra, por meio do dinheiro vivo que lhes
é proporcionado pelos novos consumidores pela aquisição de distintos bens aos
produtores.
O grau de
dependência dos grupos beneficiados com renda mínima também é duplo. Dependem
das decisões do Estado protetor administrado por uma equipe governante. Dependem,
outrossim, do poder econômico da variada gama de empresas produtoras que
decidem sobre o preço, a qualidade e a disponibilidade dos bens.
O que mede a
estatística? O número de pessoas que passam a adquirir bens de consumo
essenciais (alimento, vestuário, moradia), de conforto e supérfluos. Outros
aspectos, como refluxo do programa de renda mínima, também são medidos e analisados:
incentivo ao comércio e indústria, ampliação dos investimentos, empregos
gerados nas cidades, melhoria do salário familiar e consequente aumento do
consumo em todos os ramos da atividade produtiva. O ingresso de 30 ou 40
milhões de pessoas no festival do consumo, em dezenas de anos, provoca uma
confortável melhora econômica de baixo para cima. Não necessariamente melhora
das relações de convivência de cima para baixo. Aqui está o confronto entre
igualdade e desigualdade. Em que são iguais os de baixo comparados com os de
cima, isto é, povo e Estado, consumidor submisso e produtor dominante (indústria,
comércio, serviços)?
Qual é, então,
o “problema” a ser equacionado: igualdade ou desigualdade? Mais igualdade ou
menos desigualdade? Aparentemente, nos comportamentos, atitudes e retórica, a
sociedade está de acordo em diminuir a desigualdade. Mas, na prática diária, não
há evidências de que a igualdade seja vista com a mesma simpatia. No dizer do
antropólogo Roberto DaMatta: “Temos alergia à igualdade”.
Fundamentos da
igualdade
Um empregador,
na observância estrita das leis trabalhistas, paga ao empregado um salário
mínimo. Outro, adotando conceitos e critérios diferentes, retribui os serviços
com mais generosidade e justiça. A desigualdade dos salários afeta os teres dos
dois empregados. Mas o Estado pode haver propiciado a ambos um ciclo completo
de ensino fundamental e secundário, técnico e profissional igualitário em
qualidade. Ambos estão diante de um mesmo universo de conhecimentos.
Obviamente, só igualdade qualitativa não é suficiente. Os rumos de uma política
econômica podem pôr a perder todo o investimento qualitativo. A igualdade,
embora invisível, aproxima os dois empregados em aspectos qualitativos mesmo
afastados em teres quantitativos.
O papel do
Estado, sem descurar das leis que protegem o cidadão, se refere aos critérios e
conceitos de igualdade fundamental. A igualdade qualitativa assentada sobre
conhecimentos básicos, capacidade de raciocinar, pensar, criticar, participar e
decidir, é condição primeira para a liberdade, a libertação e a independência. A
equalização dos cidadãos é dada por um sistema de ensino público amplo,
universal e irrestrito em padrão qualitativo não discriminatório. Dados
oficiais indicam que, em 2011, havia 4 milhões de crianças fora da escola. Reduzir
as desigualdades dos teres individuais, invocando os direitos naturais à vida é
uma ação louvável e necessária do Estado, mas não pode ser confundida com
igualdade nem com liberdade. A outorga de poder aquisitivo a milhões de
cidadãos os inclui num programa de política econômica submetida, hoje, ao
comando ditatorial dos índices do PIB.
Os cidadãos
estimulados ao consumo compulsivo são igualados ao entrarem pelas mesmas portas
dos supermercados, centros comerciais, bares e bancos, tangidos pelo marketing,
pela propaganda e pela massagem consumista praticada pelos meios de
comunicação. Toda essa agitação econômica é transformada em números absolutos e
relativos por meio das estatísticas oficiais e privadas. Entram nelas os novos
milhões de consumidores que descobriram os centros comerciais, os que cansaram
de se espremer em ônibus degradados e adquirem um carro, ou tomam um avião pela
primeira vez, congestionando os aeroportos objeto de privatização.
Há, sem dúvida,
muitas melhoras em volta. Os últimos dez anos são melhores que os dez
anteriores. Gera-se um clima de satisfação generalizada. Consolida-se a
expectativa de ter mais. Os critérios de igualdade, porém, foram cuidadosamente
postos em compasso de espera. Os discursos e a retórica da redução da miséria
extrema e da desigualdade mais chocante se instalam e a conformidade diante da
paz econômica e da democracia eleitoral mantém a sociedade confortavelmente dividida
em classes cujo único diálogo coerente se faz na boca do caixa com a mesma
moeda. Combater a desigualdade extrema é possível e factível. Construir a
igualdade perante o Estado e a lei continuará um desafio prolongado.
Estado e
população
Um Estado se
justifica, em síntese, pela existência de uma população circunscrita a uma
região, com o mesmo idioma e costumes. É a identidade de um povo que gera o
Estado. A função precípua do Estado é garantir a identidade política (polis) da
população, principio da igualdade diante das leis e instituições criadas para
tal fim. A evolução e organização de uma população dependem basicamente da
relação entre ela e a natureza física que a circunda. A identidade da população
se consolida e evolui à medida que se asseguram a sobrevivência e a reprodução.
O tamanho da área ocupada, a abundância ou escassez da oferta de bens para a
subsistência se confrontam com o número de habitantes. Grandes áreas
geográficas e grandes populações, caso do Brasil, nem sempre propiciam as
mesmas condições de sobrevivência. Ao contrário, podem provocar situações de
desigualdade econômica e política. Embora encoberta e sem força de se
expressar, a identidade fundamental se mantém no idioma comum e nas aspirações
genéricas dos cidadãos.
As restrições
dos governos na administração das instituições do Estado têm muitas causas. As
ações administrativas programadas, em razão do sistema econômico vigente,
privilegiam grupos da população e suas respectivas regiões geográficas
provocando desigualdades regionais, inter-regionais e intrarregionais. No
intuito de sanar essas desigualdades que podem dificultar a administração do
Estado e provocar contendas de grupos políticos, suas ações se destinam a
melhorar aspectos quantitativos mais fáceis de serem medidos pelas
estatísticas.
Cunharam-se
algumas expressões que ligam a emoção e a estatística: linha de pobreza, abaixo
e acima, baixa renda, poder aquisitivo nulo ou insuficiente, despossuídos,
desfavorecidos da sorte ou da fortuna, menos favorecidos, e outras de caráter
demagógico como descamisados e desdentados. Essas expressões evoluíram para a
era dos acessos: acesso ao crédito, acesso à Internet, acesso à tecnologia
digital, acesso à moradia, acesso à terra, complementadas com a “inclusão social
numa economia sustentável”.
A prioridade
das estratégias e das ações visa a que esses grupos menos favorecidos tenham
mais. A justificativa psicológica é o aumento da autoestima pela qual as
pessoas percebem que podem ter mais e que é melhor ter mais. Ao mesmo tempo se
cria um laço de dependência política e institucional. Esse laço é amarrado à
cédula de identidade, ao título de eleitor e a outros documentos que incluem os
novos grupos nos registros estatísticos do Estado. Com isto, aspectos
importantes da desigualdade institucional são atendidos e, naturalmente, se
produz na população beneficiada um sentimento de ligação e gratidão com o
Estado, isto é, com o governo promotor dessas benemerências.
Cria-se uma
nova atmosfera na qual se respira o ter mais. A igualdade, neste clima positivo,
significa aproximar-se dos que têm, assemelhar-se a eles, vestir-se como eles,
enfim, ter o que todos têm. A ideologia do poder político segue a mesma linha:
administrar e dominar os rumos da população pelo ter e submeter o ser ao ter.
Há reações
tímidas, mas filosoficamente eloquentes diante dessa dominação subliminar: “não
quero esmola, quero trabalho”. Quase um grito de independência. Ao lado desse
impulso de reencontrar a identidade do cidadão perante o Estado, há outras
manifestações que confortam as decisões políticas: “com a ajuda desse dinheiro
pude pôr mais comida no prato e comprar outras coisas necessárias”.
Administração
das desigualdades
Os critérios
para administrar a desigualdade conduzem ã tomada de decisões políticas e econômicas
cada vez mais centralizadas em alguns órgãos governamentais do Estado. Decisões
são impostas à sociedade, à população como fatos consumados, muitas vezes
ignorando as possíveis opiniões divergentes do Congresso Nacional. São atos de
poder ditatorial pretensamente justificado pelos fatores econômicos em
competição globalizada transmitidos pelos meios de comunicação e informação.
Por razões
históricas – superpopulações regionais originadas do sedentarismo produtivo
crescente, guerras, descoberta de combustíveis fósseis e renováveis, tecnologia
de produção de alimentos – grande parte da superfície verde do planeta foi
destruída e desertificada. As terras disponíveis para a produção de alimentos
estão sendo disputadas a ferro e fogo. A população mundial, cuja fertilidade
está em ritmo desacelerado, consome milhões de toneladas diárias de alimentos.
Os excedentes da produção alimentar tornaram-se commodities arrebatadas a
preços altos nas bolsas de valores em centenas de países. A produção de
alimentos e a exploração de combustíveis fósseis ou renováveis, aliadas a reservas
monetárias, são os principais ingredientes das relações internacionais. Os
alimentos de origem animal e vegetal, incluindo a água, constituem, hoje, a
maior arma estratégica de dominação das grandes potências e de nações ditas
emergentes. Um vendedor de vinhos do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em
viagem comercial à China, levava como meta de venda uma colher diária apenas do
líquido para cada chinês. Nos últimos informes da FAO, estima-se que 2 bilhões
de pessoas passam fome em vários países do globo. Na linguagem do “mercado”,
existe um enorme contingente de consumidores excluídos a serem incorporados à “civilização
do consumo”.
A desigualdade
diante das condições de sobrevivência é um fenômeno regional e mundial. Em
algumas partes do Brasil, agricultores já não conseguem produzir alimentos para
sua subsistência, obrigando-se a trabalhos temporários fora de sua terra para
suprir necessidades básicas ou migrar para as cidades. E a maior parte dos
famintos do mundo vive em terras improdutivas ou escassas. O uso de reservas
monetárias para aquisição de bens essenciais à sobrevivência tornou-se uma
estratégia política de poder, um imperativo categórico, em vários países,
inclusive o Brasil, nos últimos vinte anos.
A administração
da desigualdade controlada pode ser um fator de estabilidade do poder político
enquanto as medidas adotadas se canalizem para a sobrevivência e o aumento
gradativo do patrimônio familiar e do conforto relativo. A administração das
desigualdades internacionais, sob controle da Organização Mundial do Comércio,
exige, além de grandes estoques agrícolas, reservas monetárias originadas de
transações no mercado mundial e de impostos cada vez mais pesados e
diversificados.
O que faz a
desigualdade parecer menor do que na realidade é? Um dos truques econômicos, já
mencionado, é a ampliação do uso do dinheiro proporcionado pelos executivos
governamentais do Estado. Como a produção de alimentos se tornou uma arma
estratégica de maior amplitude política, a decisão lógica é estimular o consumo
dando dinheiro aos famintos para comer, embora parte dele não seja utilizada em melhorar
a alimentação familiar. O dinheiro, motor da economia, iguala os desiguais. A
distensão social provocada por esse alívio nas preocupações de sobrevivência
gera aliados em muitos setores da organização da sociedade convencidos de que o
dinheiro é uma condição básica da redução da desigualdade.
A desigualdade
de renda no Brasil (outros tipos de desigualdade são mais difíceis de medir e
transformá-los em números) é maciça, impactante e sua resistência durará
algumas dezenas de anos. Estudos recentes do IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada), sobre a pobreza, indicam que mais de 100 milhões de
brasileiros tinham, em 2009, uma renda per capita entre R$ 2,00 e R$ 15,00 por
dia para suprir todas as necessidades. Parte dessa população habita áreas
rurais menos atendidas pelos serviços do Estado e porção muito maior vive nas
periferias de médias e grandes cidades onde vivem 80% da população brasileira.
A desigualdade
no campo das necessidades básicas de alimentação se desloca e se avoluma nas
atividades profissionais da indústria e serviços. A renda anterior quase nula
se transforma em salários mínimos que mantêm uma grande população no limiar da
produção econômica como espectadora de oportunidades exibidas fartamente pelos
meios de comunicação.
A geração de
postos de trabalho produtivo que propiciem melhores salários e maior
participação na distribuição do bolo econômico depende do crescimento da
população e de sua preparação profissional para responder às exigências da
modernização dos meios de produção. O avanço da igualdade impulsionada por um sistema
de educação generalizado e qualitativamente homogêneo e universal acarretará,
nos próximos dez ou vinte anos, mudanças de critérios de decisão política e de
estratégias econômicas. Este futuro é comumente previsto para a década de 2030.
O fim do regime
soviético e suas consequências, a débâcle
financeira dos últimos anos, as primaveras africanas e árabes e seus contornos
religiosos, a ocupação de Wall Street são lições modernas. Elas põem na ordem
do dia a administração das desigualdades operada pela experiência soviética,
pelo capitalismo globalizado, pelo neoliberalismo e pelas infidelidades do
casamento entre o Estado público e a empresa privada sem identidade nacional.
As privatizações do patrimônio de uma nação sujeitas às “leis do mercado” , à
impessoalidade das relações na prestação de serviços e aos controles moles e
ineficientes do Estado podem ser a cereja de um bolo explosivo.
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