sexta-feira, 29 de abril de 2011

TRUQUES DE SOBREVIVÊNCIA


São três. Fé, esperança, caridade ou amor. Virtudes cardeais sobre cujos gonzos rola a vida de uma pessoa e de um povo. A fé leva à fidelidade a alguém ou a alguma coisa. A escolha é ampla. Vai da loteria, do sucesso profissional a um ser superior, maior do que o fiel e que entra como coringa salvador no jogo bruto da vida, recheado de blefes.
A fé conduz à felicidade de receber um prêmio em expectativa após a transposição de obstáculos na corrida competitiva. Antes mesmo de compreender as leis da natureza, a lógica inexpugnável das leis físicas às quais estamos integrados, os educadores oficiais – pais, professores, pastores, guias espirituais e gurus ensinam que a pessoa precisa ter fé. Fé em alguma coisa, em alguém, de preferência em um poder mágico fora e acima das forças conhecidas. Fé no desconhecido, num poder capaz de romper a lógica da natureza e produzir um milagre com endereço certo. A fé é um dos truques mais eficazes, a ponto de remover montanhas pela capacidade irresistível de iludir e cegar seu portador. Esse truque mantém a pessoa no irreal, projeta-o para fora de si. Os fenômenos ao seu redor, o real, sua caminhada, seus escorregões não fazem parte da vida normal. São apenas acidentes colocados no caminho e cobertos com a luz projetada por seus próprios olhos na direção do poder maior.
O truque da fé o arranca do real para viver em função do irreal em perspectiva. Cunha-se uma expressão propulsora para manter a pessoa na irrealidade: “quem tem fé, sempre alcança”. A pessoa salva do naufrágio, do incêndio, do deslizamento de um morro, da queda de um avião, de um acidente de carro, crê no milagre da fé em alguém que o estava protegendo. O ser superior, a força indiscutível o pinçou entre milhares de mortos. As leis físicas só funcionaram para os mortos. O milagre, para os vivos. É isso que se denomina fé no irreal, na ilusão piedosa, no engano salvador. O prêmio da fé leva ao agradecimento, à comoção, à submissão humilhante do predestinado aos humores de um poder mais alto e imprevisível.
Esperança. Desde que vivos, nunca se perde a esperança de se manter em vida. Esperar não é saber, diz a canção. Se alguém sabe o que quer ou onde está seu querer, não espera. Vai a ele. Só se espera quando o objeto do querer está a caminho ou longe. Quem espera não tem controle sobre o que pode acontecer ou sobre quem possa aparecer. A esperança é vaga e imprecisa. A surpresa pode mudar o rumo pela força ou satisfação do aparecimento. Pode-se esperar algo ou alguém e o fato ou a pessoa tanto podem alegrar quanto decepcionar. Mas o dito popular entusiasma: “esperança é a última a morrer”. Até o derradeiro momento há esperança que algo aconteça. Algo que está em expectativa. A esperança é uma espécie de conluio ou acordo com o imprevisível e o incontrolável. O que se pode  controlar ou determinar não entra no campo da esperança. O truque está em pôr-se na janela e olhar para o mundo exterior, para a linha do horizonte. De lá pode surgir o inesperado tanto tempo esperado. É o sabor antecipado da ilusão possível.
Caridade. Amor. Amar é difícil. Não há certeza de que amamos o outro pelo outro ou o outro em nós. A felicidade de ver, ouvir, falar e existir como parte do universo, formando um pluriverso é uma das facetas do amor. Isto se chama amar a vida. A que está dentro e fora de cada pessoa. Aparecem, mesclados a essa felicidade, o desejo de possuir e dominar, a paixão que invade o interior e o exterior alheios. A inveja, o ciúme, a gulodice de poder, a ambição da riqueza são pedras no caminho do amor. Elas nos fazem esquecer de nós para destruir o outro. Fica-se, então, só, quando o objeto do amor se desloca do núcleo central da vida interior para escravizar outras vidas. Esquece-se facilmente que, visto de ângulo diferente, o outro somos nós. O outro está dentro de mim, mesmo que tenha outro nome. A expressão “ame o próximo como a ti mesmo” se fundamenta na máxima socrática “conheça-te a ti mesmo”. É desse conhecimento que brota o amor à vida consciente e se espalha e multiplica ao redor de tudo o que se ama.
Essas três energias do espírito são preciosos truques para contornar as pedras do caminho da vida.

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