sábado, 16 de abril de 2011

MINHA INFÂNCIA



Disse, ontem, a Pedro de Montemor que pretendia escrever um livro, não muito extenso, sobre minha infância. Ele apertou os lábios, ergueu as sobrancelhas e sorriu levemente. Fez longas considerações que eu traduzo livremente.
Quem, segundo ele, estaria interessado em saber que, aos dois anos, quebrei uma fita métrica, amarrada ao pé de uma cadeira, que minha madrinha costureira me dera para brincar? Os leitores de hoje, que nasceram com um Ipode na mão, mandando mensagens para o berço vizinho, acharão que estou contando episódios da época da pedra lascada.
Esses leitores de hoje que vão ao Google para saber quem foi Pedro Álvares Cabral ou Stalin acharão que é ficção científica o fato de eu ter feito meus primeiros cálculos aritméticos na lousa com lápis de pedra.
Esses leitores que atravessam a noite navegando na estratosfera virtual do universo rirão dos métodos arcaicos de meus pais que ensinaram as letras do alfabeto a um menino de cinco anos, nas noites frias, ao redor do fogão a lenha.
Esses leitores que vão à escola com transporte escolar privado, ou no automóvel do pai ou da mãe, não acreditarão que, aos seis anos, eu caminhava dois quilômetros a pé, sozinho, com meus cadernos e lousa numa pasta de couro cru, até o Educandário das Irmãs Franciscanas.
Esses leitores que aos 12 anos já se familiarizaram com crack, maconha, mistura de cerveja e vodca, devem achar ridículo que eu precisasse de licença de meu pai ou de minha mãe para colher ameixas ou figos no quintal da casa.
Esses meninos que voltam à meia-noite do cinema, depois de ter ficado com a amiguinha do colégio, fecharão o livro desse escritor quadrado a quem o pai indicava, depois do jantar, com um gesto de cabeça, o quarto de dormir.
Esses rapazes que informam o pai, pelo telefone celular, que acabam de bater o carro num sinal vermelho, se indignarão com as severas repreensões e até alguns golpes de vara no menino que perdeu o troco de 20 réis da compra do pão.
Esses leitores que têm liberdade de entrar em salas de aulas armados de revólver, celulares e Iphones, não podem imaginar que um menino de seis anos levava, a pé, um recado à tia, no outro extremo do povoado.
Que tempos eram esses em que as crianças iam à escola a pé? Pedro de Montemor tem razão. Vou deixar minha infância brincando à sombra de meus 76 anos, trepando nas macieiras, “camisa aberta ao peito, braços nus, correndo pelas campinas”.

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