terça-feira, 16 de março de 2010

VIOLÊNCIA, GÊNERO E NÚMERO


O livro FEMINISMO EM MOVIMENTO (Editora Paulo Francis, Brasília, 2010) de Lia Z. Machado, doutora em Sociologia, induz o leitor a pensar, não apenas a se informar ou a se enriquecer com as descobertas da pesquisadora. O estudo comprova que a violência, em todas as suas manifestações, perturba amargamente o pensamento social. Os mecanismos institucionais em vigor e seu aperfeiçoamento atestam a intensidade, a frequência e a gravidade dos atos de violência.
São quatro capítulos densos de investigação, informação, análise e abertura de pistas para compreender a ação humana violenta que permeia as diferentes idades, os diferentes meios da convivência social para culminar no gênero das violências, eles e elas. Quem bate mais, onde se bate mais, quando se bate mais e por que se bate?
É nesse emaranhado de questões que Lia Machado, com argúcia e firmeza conduz o leitor a refletir sobre o fato violento, a agressão física, a demonstração teatral de força e de poder, especialmente contra a mulher. A violência é uma dessas palavras abstratas que tomam corpo físico de monstro, se personalizam e saem à rua fazendo vítimas com balas perdidas. Fulano morreu vítima da violência. Ou na economia jornalística: mais uma vítima da violência. No dia a dia, ela aparece no esporte, no trânsito, nas ruas, nas prisões ou contra a natureza, contra a mulher, contra a criança. Está escondida na fome e nas desigualdades que podem conduzir à revolução social e política com sequelas em torturas, exílio ou fuzilamento.
Creio que não seria demais agregar a violência degradante e ocultada de nossas cadeias, que só ganha a luz do dia se toca prisioneiros privilegiados. Será possível, no esperançoso caminho da paz e da compreensão entre humanos, controlar e domesticar as diversificadas causas da violência? A pergunta parece gritar ao longo dos debates sugeridos por Lia.
A vida é marcada por inúmeras frações de violência. Do nascimento à morte há rompimentos, sangue e lágrimas que a cultura os sublima e os incorpora nos comportamentos do cotidiano.
Atrevo-me, seguindo pistas abertas pela autora, a perguntar: por que a violência? Será preferível a violência positiva à violência negativa? Nem preferíveis ambas, nem aceitáveis. São discussões delicadas que mostram a complexidade da alma humana e a infinidade de reações do ser humano diante das variadas circunstâncias da convivência onde se mesclam necessidades, interesses, ambições, força e poder. Inconscientemente, faz-se o elogio da violência. Longas e minuciosas reportagens acompanham ou refazem cenas de crimes diários, agressões dentro e fora da família, chacinas de hoje e de ontem. As lutas corporais nos ringues, os filmes de guerra onde se mostra a carnificina ao lado do heroísmo, o comércio de armas letais. O fascínio pelos exércitos, o aperfeiçoamento das máquinas para aterrorizar e matar em terra, no ar e no mar. As milícias privadas, os esquadrões da morte, a segurança pública, o policiamento ostensivo, um conjunto de estratagemas para proteger pessoas de pessoas e guardar bens e riquezas individuais e públicas,
Na luta pela vida, o ser humano busca instintivamente a sobrevivência primária com a satisfação da necessidade básica. Expande-se para outras necessidades, mas ela permeia todos os passos da vida. Para sobreviver, inventou artefatos de caça e pesca que levaram a armas cada vez mais apropriadas com o avançar do tempo. A sobrevivência pessoal, a salvaguarda da identidade no meio de outras identidades, desperta a criatividade individual em busca da aceitação pública de sua autonomia. A sobrevivência social requer o pertencimento a um grupo de acolhimento e defesa, a fuga do isolamento, o medo à exclusão, a recusa à dominação de outros. Do enfrentamento das coisas, da imposição do eu pessoal à agregação a um coletivo, os caminhos se cruzam e os sinais de trânsito na sociedade, por mais visíveis, nem sempre são suficientes para evitar os choques, os acidentes graves e fatais.
Como se entrelaçam esses aspectos da sobrevivência primária, pessoal e social para garantir os direitos humanos das crianças, dos jovens, dos idosos, dos homens, das mulheres nos múltiplos espaços e circunstâncias da sociedade? O indivíduo, o desejo de decidir sobre si mesmo, o imprevisível outro, a sociedade anônima e invisível, as leis do Estado estão todos no campo de jogo sem limite de duração.
Ao longo da leitura e das reflexões que a obra me inspirava, fazia-me perguntas: que há com a mulher? Que há de errado com o homem? Em que ponto da evolução está o cérebro humano? Há momentos em que os comportamentos indicam que o homem é um animal que não deu certo. Que descobertas primitivas concorreram para montar seu complexo de inferioridade contra o qual parece debater-se sem esmorecimento? Os dinossauros, as estrondosas tempestades, os terremotos? É preciso pôr, na ordem do dia, a exaltação da superioridade do homem?
O que levou as mulheres a se declararem em luta na defesa de seus direitos? E, aqui, mais uma vez, detive-me a perguntar sobre a luta feminista. O termo “luta feminista” ainda guarda a lembrança de uma guerra inacabada na sociedade em que o homem é o lobo do homem. O termo é repetido com mais frequência do que o desejado, mas a luta continua. Estamos em guerra. Que tipo de guerra é esta para que as mulheres entrem na luta? Contra quem, especificamente? Com que armas? E com quem será o armistício? E depois da trégua? Kathryn Bigelow foi acolhida no grêmio dos homens e ganhou o Oscar 2010, aventurando-se no território masculino com a história Guerra ao terror. As mulheres também entendem de guerra no entender dos homens.
Mas, talvez esteja no último capítulo a questão mais delicada que toca a mulher como receptáculo da vida e a difícil decisão individual de interromper uma gestação. Mulher, mãe, aborto. Um capítulo emocionante no qual o aborto é discutido com elegância, inteligência e coragem. Equipara-se, embora mais exaustivo, aos comentários de Carl Sagan consolidados por Ann Druyan, sua mulher, no livro Bilhões e bilhões.
Deixo a Lia as palavras finais da esperança: “As movimentações feministas continuam seu processo constante de reconstrução dos valores sociais, onde só terão lugar as maternidades desejadas...”
Há autores, como Lia Machado, que devem ser agradecidos por brindar obras cuja leitura se torna tão necessária quanto agradável.


Eugênio Giovenardi, escritor
Autor de Os filhos do Cardeal - o homem proibido -, Em nome do sangue, As pedras de Roma, Heliodora, Solitários no paraíso, O retorno das águas, A saga de um Sítio, entre outros.

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