quarta-feira, 3 de março de 2010

BANALIZOU-SE O ESSENCIAL

Diante de acontecimentos abundantes que estremecem as instituições burocráticas, sacodem o planeta, inundam cidades, Pedro de Montemor desligou a TV.
− Está tudo banalizado, disse, meneando a cabeça.
Nas aulas de História e Geografia, nosso professor, que sabia o nome das capitais de todos os países existentes na década de 1940 e o de todos os rios da Europa Ocidental até a Sibéria, deu-nos detalhes do terremoto que destruiu Lisboa em 1755, seguido de maremoto. Terremoto era coisa rara em nossa infância. Sabia-se anos depois de acontecido.
Segundo a crença do professor, um religioso austero e de faces macilentas, terremotos, maremotos e dilúvios eram castigos infligidos pela justiça divina contra os pecados da carne. Era um argumento forte.
Quando era menino, as pessoas morriam solenemente. O sino na igreja dobrava a finados, diferenciando criança de adulto. Lembro-me do enterro de Guido. Era criança. Oito anos. Durante muitos dias pronunciava-se a mesma palavra. Tétano. O vilarejo todo seguia o caixão branco puxando a procissão até o cemitério.
Um dia, meu pai chegou na hora do almoço. Sentou à mesa e, com voz abafada, olhando para mamãe, informou:
− Francesco da Rosália está nas vascas da morte.
Meu pai tinha bom vocabulário. Curioso, por volta das 4 horas da tarde, fui até a casa de dona Rosália, que fazia delicioso pão de milho, para saber o que era vascas da morte. O velho Francesco, oitenta anos, deitado na cama do casal, rodeado por seus 11 filhos, altos e fortes, acariciado pela mão de Rosália, respirava mal. De repente, era sacudido por estertores. Os filhos se agarravam ao pai, levantavam-lhe a cabeça e o acalmavam com palavras encorajadoras: não morra papai, não morra. Até que, num desses espasmos, Francesco morreu nos braços dos filhos.
− Não se morre mais como antigamente, comentei a Pedro de Montemor.
A banalização tomou conta do mundo e de nossa vida. Passa-se de um terremoto a outro sem pausa para os enterros. Quem viu os 300 mil mortos do Haiti? Quem assistiu à morte de 750 mil chilenos do último sismo? Antes da tsunami, que devastou a Indonésia, pouco se falava dela. Hoje, andam soltas e descontroladas.
Houve tempos em que um acidente de carro com morte era motivo de conversa por vários meses. Atualmente, nos fins de semana prolongados, só aparece a famigerada estatística com o percentual de aumento de mortes.
O Dr. Ernesto Silva, pioneiro de Brasília, teve morte longa. Morreu durante 5 meses na UTI, essa invenção fantástica que esconde o paciente da morte.
Ficou tudo tão banal que terremoto se confunde com corrupção, tsunamis com bombardeios no Afeganistão, orçamento público com propina, acidentes de carro com inundações de cidades ou com seca do Nordeste. Tudo entra no saco da informação. Com a velocidade das comunicações, ao vivo e em cores, a TV põe tudo sobre a mesa do autosserviço.
O acontecimento é importante na medida em que é mantido na telinha. Um dá lugar ao outro. Seja lá o que for. Os tiroteios nos morros do Rio ou o escárnio do Big Brother do filósofo e jornalista Bial.
Pedro de Montemor, sentindo saudade de si mesmo, sentou-se à sombra da paineira e recomeçou a leitura do Memorial de Aires. Lembranças, não mais que lembranças de amores e mortos que se foram.

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