Os administradores urbanos, diante de inundações crônicas,
nos mesmos lugares, ruas e bairros, culpam a chuva. Os atrasos no início de
eventos, reuniões e compromissos são debitados na conta do trânsito caótico.
Os apagões registrados em todos os estados do país se
originam da queima de transformadores, desligamento automático de turbinas e
falta de investimentos de governos relapsos do século passado.
As desventuras frequentes dos exames do Enem, os roubos do
erário, o superfaturamento de projetos do governo, os atrasos colossais de
obras essenciais, o descaso geral para modernizar o transporte público são
provocados pela elite extravagante que promove festa de aniversário da cadela
Cissy, ou por esses estômagos delicados que não digerem linguiça nem aceitam
caipirinha, dois sinais evidentes de atraso cultural da plebe ignara.
São as elites, conforme alegam os detetives do governo, o
maior empecilho do avanço do país, da redução da pobreza e da extinção da
miséria. A elite, por definição, é minoria. Na sociedade. Na polícia. Na
hierarquia das igrejas. Na criminalidade. As elites somadas formam uma enorme
força de resistência, mas nem todas agem no mesmo sentido.
Na política brasileira, nas manifestações eleitorais, no
discurso e na retórica dos partidos que reivindicam exclusividade do pensamento
social da inclusão da população na festa do consumo, na ciranda financeira e na
rede do cartão bancário, a elite é exorcizada. No entanto, ela representa quase
metade do eleitorado. É a elite perdedora e derrotada. Neste caso, elite é
oposição.
Sabemos, Eratóstenes, da dificuldade matemática de medir o
diâmetro e a circunferência da esfera política. É vasta a literatura que
especula sobre a elite e complicadas as fórmulas para resolver a equação. As
forças gravitacionais que arrastam opiniões, interesses, desejos, vontades,
expectativas, direitos, obrigações não são lineares nem previsíveis. As
surpresas nem sempre estão incluídas nas fórmulas estatísticas.
Por exemplo, os seis milhões de empregadas domésticas são
sustentados pelas elites que fazem parte do governo e das que estão fora dele.
Igualmente, os milhares de cuidadores de carros nas ruas e estacionamentos
improvisados ou cobertos. Também os milhares de vigilantes de nossos blocos
pagos para proteger os automóveis. Em Brasília, temos a elite da pobreza que
vem de outras cidades, trocam suas casas por lonas pretas para descolar
presentes de Natal.
É certo, Eratóstenes, a elite brasileira não frequenta filas
de aeroportos e terminais de ônibus. Tem hangares próprios. Aqueles lugares
confusos e mal-organizados são praias da classe média consolidada e viciada.
Ela se rebela contra a invasão desses novos cristãos do consumo a crédito. Afinal,
quem essa elite? De onde veio?
A cultura indefesa de meu país, sexta potência econômica
mundial, foi assaltada por um grupo de espertalhões que impuseram pela ação
política novos códigos de raciocínio para o exercício da inteligência. A origem
do raciocínio e da lógica dos fatos é a tabula rasa, o nunca antes, o nada
histórico.
Nessa lógica, o julgamento de 40 criminosos de lesa-pátria, pela
mais alta corte do país, onde atuam respeitados juristas da republica, não é
senão um grunhido da “mídia conservadora” e um processo similar ao dos campos
de concentração nazista. Em resumo: a elite jurídica.
Inconformada com os avanços do crescimento econômico, com o
surgimento de uma novíssima categoria de consumidores, a elite, dizem,
esperneia. Segundo a interpretação desse grupo seleto de ideólogos espertos, a
elite não suporta que os atuais donos do poder, tendo vindo do nada, do nunca
antes e de baixo, não queiram sair de cima.
A elite excêntrica, extravagante e fútil composta de neófitos
da riqueza fácil, de berço duvidoso, incrustada no bas-fond de nossa cultura, não alcança tirar o sono dos donos do
poder.
A elite rica, aristocrática, independente, alheia à política
partidária, dada a chás beneficentes e a ceias de Natal para os menos
favorecidos da sorte é frequentemente elogiada e procurada por seus similares
que estão no poder.
A elite empresarial, profissional, dona do capital e do
trabalho, governa diretamente os destinos da economia confundida com os do
país. Sabe negociar, forma negociadores e faz crer que são os governantes os
verdadeiros negociadores.
A elite política, dona do poder e das decisões, por decretos
ou medidas provisórias, determina o quantum dos pobres, os níveis aceitáveis de
pobreza e negocia o quantum contábil da elite empresarial, industrial e bancária
com a retórica do “nunca antes”.
Os que desembarcam no cais da elite política, pela via
democrática ou do golpe de estado, tendem a considerar que a oposição, os
contraditores e os críticos estão afetados pelo vírus do elitismo.
Se o grupo de governo, especialmente o que supõe controlar
as rédeas do poder decisório, define elite como sinônimo de riqueza, defensora
de patrimônios milionários e culpada de todos os males do país, então acusa-se
a si mesmo. O grupo no poder, com suas ramificações no alto escalão civil,
militar e jurídico, é a elite do país.
Minha conclusão, Eratóstenes, é que sem elite não há governo
e sem governo não há elite. É pena que uma oposição política ineficiente,
comprometida com seus próprios interesses, permita que um governo democrático a
confunda com extravagâncias de uma elite inofensiva.
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