quarta-feira, 9 de março de 2011

TERRA DA ABUNDÂNCIA E DO DESPERDÍCIO


Vivemos numa terra abençoada pela natureza em que se plantando tudo dá e em não se plantando também dá. A generosidade do brasileiro nos vem dessa abundância  pródiga com tal força que o desperdício se torna uma virtude a contrariar a sovinice. Vi meninos pedirem comida nas mesas de bares e jogar fora metade da pizza. Vi, em mesas fartas, clientes deixarem sistematicamente parte da comida no prato e, outra, na travessa que volta à cozinha e, dali, à lata do lixo. Se quiser horrorizar-se com o desperdício, entre numa churrascaria famosa de qualquer cidade brasileira.
Dizem as informações oficiais sobre colheitas de supersafras agrícolas, com  máquinas modernas, que um terço do produto se perde pelo campo, pelas estradas, nos armazéns. Antigamente, quando o trigo, a aveia, o centeio eram ceifados a mão, permitia-se aos de pouca terra respigar os campos. Essa época da economia foi superada pela alta tecnologia do desperdício. Há uns trinta anos, administradores de cooperativas indianos vieram conhecer a região cafeeira da Alta Paulista. Voltaram escandalizados e penalizados com as toneladas de mangas que apodreciam no chão, invadidas por moscas e mosquitos.
A abundância e o desperdício nos tornam indiferentes e descuidados com o dia seguinte e esquecidos do dia anterior. Não precisamos de memória  histórica. Os fatos se renovam amanhã, mais numerosos e com mais riqueza de detalhes. Dos assassinatos à esperteza da corrupção. Convive-se, portanto, com a abundância e com o desperdício. Confia-se na abundância da terra e na dos ricos que a acumulam. Parte desse desperdício alimenta os pobres risonhos e conformados.
A abundância é também de gente, não só de terra e água. Desperdiça-se gente, o melhor patrimônio de um país. Gente sobra nos campos e nas cidades e,  como na colheita do centeio, respigam-se empregadas domésticas, diaristas, catadores de lixo, cuidadores de carros em estacionamentos pagos, serventes de pedreiros e dezenas de outras subatividades rurais e urbanas. Nesta terra da abundância, nossos planos e programas políticos de governo se adaptam a ela e ao desperdício, acrescidos de farras contínuas e inescrupulosas com o dinheiro público. Sobra dinheiro para todos. Imensos salários para deputados, senadores, ministros, governadores, presidentes e diretores de empresas públicas, e salário mínimo para os respigadores, bolsa família para os filhos da abundância e do desperdício.
Tudo é grande e imenso nesta terra do pau-brasil. Corre por ela mais de um décimo de toda a água doce do planeta em rios longos e profundos ou repousando em lagos magníficos. Nossas florestas, as que ainda restam, são celebradas como os pulmões vegetais da natureza. O país, pelos 850 milhões de hectares, é dito continental, banhado por quase 8 mil quilômetros de praias amenas. Tudo aqui é grande e imenso e com muita, muita gente. Nem temos medo da superpopulação do país nem do superpovoamento das cidades. Já nos contentamos com 4,2 hectares por habitante, contados os rios e as florestas, nem nos assusta a redução constante do espaço de  cada cidadão. Nem admitimos, se nos ocorre pensar, que é a superpopulação uma das principais causas da injustiça e da desigualdade. É utópico, se não irônico, jogar a culpa sobre a desigual distribuição da riqueza. Real é admitir que não há capacidade instalada de administrar superpopulação e não se vê no horizonte avanços nessa direção. Um exemplo só. Para a camada rica da população oferecem-se apartamentos de 200 a 400 metros quadrados. Para outra, na periferia suburbana, casa ou minúsculo apartamento de 32m2 para família de cinco pessoas. A opção política e religiosa pelos pobres considera suficiente uma ajuda caridosa que os mantenha no limite da linha imaginária da pobreza.
Abundância e desperdício somam-se para aceitar e administrar democraticamente as desigualdades. Volto-me apenas para o uso da água abundante vinda de fontes, de rios e das chuvas. Nos bairros afluentes de Brasília, Lagos Sul e Norte, Condomínios de luxo (os Alfa Ville), o nobre cidadão, sentado sobre 10 mil m2, com quadra de esporte e piscina, possivelmente com poço artesiano irregular, consome 600 litros de água por dia. Nos bairros da periferia, onde as condições de higiene são precárias, o contribuinte mal chega a 90 litros por dia. Onde se evaporou a abundância de água de nossos rios e das chuvas torrenciais? Os fenômenos naturais não discriminam nem escolhem espaços para se manifestar. Apenas precisam de espaço. Quando seus espaços são invadidos, as consequências são anunciadas, embora não ouvidas. Ai, estão centenas de cidades debaixo das águas sujas dos rios transbordados.
O superpovoamento das cidades, empurrado pela desigualdade e injustiça, fruto da inépcia política, confiante na abundância e desatento ao desperdício, tomou os espaços dos fenômenos naturais que, em nosso país, são também grandes, soberbos e espetaculares. Quais são as soluções para atender a superpopulação em nome do combate à desigualdade e da opção pelos pobres? Longas avenidas, túneis, viadutos gigantescos da engenharia ousada. Agora, em Brasília, propõem-se estacionamentos subterrâneos, decorados com centros comerciais, lojas de conveniência, restaurantes e bares, creches, salas de cinema, teatro e música.
Não duvido que este país da abundância encontre dinheiro e empreiteiras para furar o chão e criar uma nova capital subterrânea. Temos engenheiros ousados e competentes, arquitetos coroados de fama internacional, milhares de desempregados em busca do salário mínimo que executarão essa façanha imobiliária com reflexos positivos na curva do PIB, o mágico guia da economia neossocial-capitalista.
 O regime de chuvas no Planalto Central é sistemático. Divide o ano em duas estações: a seca e a chuvosa. Cinco a seis meses de umidade semelhante à de um deserto e, outros tantos, de chuva. Sobre a área do Distrito Federal (5,822 km2 ), caem, no período chuvoso, 1.500ml, isto é, aproximadamente, 87 bilhões de litros o que representa, hoje, média de 160 litros por habitante/dia. Para onde vai toda essa água? Para os córregos, rios e lagos levando a sujeira da cidade.
Usando sabiamente a inteligência, aproveitando a abundância das chuvas e reduzindo razoavelmente o desperdício, salta aos olhos que se devam construir galerias subterrâneas para armazenamento de parte dessas águas e usá-las no período seco para amenizar os efeitos da baixa umidade. Chafarizes e irrigação por aspersão manteriam nossos gramados verdes e coloridos os canteiros de flores.
A mesma tecnologia, os mesmos engenheiros competentes, as mesmas empresas especializadas para abrir estacionamentos subterrâneos, os mesmos desempregados em busca do salário mínimo seriam convocados a construir galerias de reserva de água da chuva. Temos dinheiro abundante e desperdiçado, tecnologia invejável, água em abundância e subsolo sem limites.
A água é essencial e sobrepõe-se à importância do carro e à urgência do estacionamento.

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