domingo, 20 de março de 2011

A HISTERIA DO CONSUMO



A ênfase dos noticiários é posta nos números e nas datas comemorativas do consumo. Centros comerciais, lojas de marca, concessionárias de automóveis, lado a lado com o futebol e o carnaval, estão na mira de jornalistas e comentaristas dos acontecimentos econômicos. A histeria do consumo faz a festa da economia. Não importa a ninguém que um cafezinho custe, no Brasil, R$ 4,00, ou que as taxas de juros do crédito subam a nove ou doze por cento ao mês. Endividar-se é a lei. Não importa que 19 milhões de aposentados vivam o resto dos dias pagando dívidas do crédito consignado.
Onde residem os focos desta histeria do consumo estimulada por áulicos do governo, estrategistas do poder econômico e por fanáticos adoradores do PIB? Comece-se pelos R$ 13 bilhões concedidos aos beneficiários do Bolsa Família que os gastam no comércio local e nas redes de super e hipermercados. Esse dinheiro garante parte do feijão que faltava na mesa, e complementa o necessário para o celular pré-pago, o aparelho de som de 1.000 W, a nova TV digital, a geladeira, a máquina de lavar. Esses R$ 13 bilhões são apenas o complemento da renda existente e representam um empurrão na roda do consumo. Sabe-se que o Bolsa Família não é incompatível com piscina, carro na porta adquirido com ingressos não declarados provindos de bicos extra profissionais. Constituem o caixa dois da pobreza. Esses bilhões garantem milhares de carnês mensais e boletos das dívidas familiares, orgulho do consumidor. Para pagar o carro, desdobra-se o trabalhador em diferentes funções: balconista de dia e garçom à noite. E, para a estatística, é a diminuição da desigualdade.
Vai-se aos altos funcionários e aos postos da elite administrativa da burocracia, na qual se inclui a presidência da república, câmara e senado, câmaras estaduais e municipais, ministros de tribunais, ativos e aposentados. É ali que se abastecem de pingues ordenados os apadrinhados, a claque eleitoral, os laranjas, a linha multicor do nepotismo: filhismo, maridismo, mulherismo e penduricalhos afins, agregados em escala descendente com salários de marajás. Nomes não faltam. As primeiras páginas dos jornais os publicam com frequência sem que a indignação popular abale os fundamentos da pátria. Podem até prender “supostos” ladrões do erário por algumas horas, mas o dinheiro fica solto à espera da próxima festa badalada onde todos dançam e tudo se esquece.
Tudo isso seria inconsistente sem o apoio incondicional da sonegação contumaz. Os auxiliares indispensáveis da histeria do consumo atendem pelo nome de cheque especial, cartão de crédito, crédito em consignação, financiamento direto ao consumidor, em 12 ou 36 parcelas sem juros. Outra categoria de auxiliares terapêuticos da histeria do consumo se denomina superfaturamento, propina, obras não acabadas, desvios do INSS, falsas aposentadorias, sorte nas loterias.
Essas camadas superpostas da pirâmide econômica: bilionários, milionários, Classe A, Classe Média Alta, Nova Classe Média, a classe do Salário Mínimo, a linha imaginária da pobreza sustentada pelo Bolsa Família, a categoria escrava do zero ao meio salário, são a base e garantia da indústria desigual, do comércio desigual, dos serviços desiguais, do crescimento e do desenvolvimento desiguais.
Por isso e para assegurar a desigualdade profunda, mascarada pela fantasia política da inclusão, criaram-se sonhos incansavelmente vendidos aos consumidores. A carteira assinada por um patrão é o símbolo da estabilidade e inclusão no rebanho de consumidores, pastorado pelo sistema vertical do cumprimento de ordens. O carro, posto na rua como valor de ascensão social e, a casa própria, transformada em dívida sem fim, completam as virtudes cardeais da cidadania moderna.
Embalados por esses sonhos, arrastados por essas ondas incontidas, os cidadãos acordam dominados pela volúpia ensandecida do consumismo que contaminou, há tempos, as células mais sensíveis do organismo social: educação e saúde. As escolas privadas, da creche à universidade, dividem a sociedade em ricos e pobres, extorquem os clientes com pesadas mensalidades, enquadram alunos em uniformes exclusivos e criam absurdas despesas complementares com festas de formatura desde a conclusão da fase do ensino fundamental à colação de grau universitário. As escolas públicas, incluídas no sistema de segregação da cidadania, filhas enteadas do Estado, por serem gratuitas servem aos alunos as sobras do bolo econômico e cultural.
A saúde pública, salvo exceções que dignificam a regra, como a Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação, está entregue à extorsão dos planos de seguro ou às vergonhosas filas de hospitais semiacabados. O conceito de saúde preventiva se esconde tímido por trás de campanhas esporádicas e dispersas para combater epidemias arraigadas à cultura do lixo, da sujeira e do descaso.
A histeria do consumo nos colheu no arrastão econômico e cultural que devasta a sociedade. No comando da histeria avassaladora, os guardiões vigilantes  esperam o pequeno cidadão na maternidade para transformá-lo num consumidor contumaz. Cada passo de sua aventura existencial é bombardeado por anúncios em que ele mesmo é ator. Aos três anos, já domina os mais avançados aparelhos eletrônicos e está apto a dar lições aos anciãos que ainda insistem em buscar nas enciclopédias e dicionários o significado das palavras e o valor dos fatos históricos. O pensar filosófico e o raciocínio crítico estão sendo substituídos por soluções mágicas, práticas e rápidas, feitas de toques e cliques.
A histeria do consumo nos impõe decisões rápidas, o culto do imediato, a farra inesquecível do hoje. Amanhã, teremos o novo, o atual, o moderno e aderimos a ele por osmose cultural. A histeria do consumo homogeneíza, pasteuriza a sociedade e estabelece o critério de igualdade baseado no sagrado e inviolável direito de consumir.

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