segunda-feira, 21 de abril de 2008

BRASÍLIA

Brasília é a perfeita ilusão. A ilusão do poder, da autoridade, da lei, da justiça. Até a corrupção de políticos, a mentira, a negociata, o roubo do erário, a compra de votos de congressistas, os conluios, as alianças partidárias parecem prestidigitação de ilusionista para uma platéia embasbacada.
E a ilusão é sua força. Tudo aqui acontece e tudo se esvai. É bela aos domingos, quando deixada só em seu silêncio original, no quadrilátero do Planalto Central, berço das águas que daqui tomam todas as direções. Brasília é o símbolo do poder que irriga os quatro pontos cardeais da política. O poder, como Brasília, é uma ilusão real ou uma realidade ilusória. Fogo-fátuo que se dissolve e se esfuma. Brasília é a sede do poder invisível refletido nos atos oficiais, em leis que pouco se cumprem, em impostos coletados aos cidadãos incautos ou sonegados pelos espertos.
Trinta e quatro anos de convivência neste quadrilátero mostraram-me a intensidade dos achaques desta Brasília ilusória que venerou presidentes, tolerou ditadores, afagou demagogos, expulsou e inocentou corruptos, decepcionou sonhadores, expandiu o ventre para amamentar todos os filhos da ilusão, apinhados em cidades satélites.
Brasília, brotada de devaneios arquitetônicos, tornou-se corte de apaniguados, súcubos e íncubos do poder. Camufla-se de faz-de-conta farsante, de circo repleto de malabaristas e acrobatas, palhaços e domadores de feras apáticas, entupidas de favores e privilégios. As salas de cinema longe, escondidas nos confins, os escassos teatros no coração da cidade, distantes do povo, alimentam a ilusão cultural.
Brasília é quadrada. É um sonho quadrado. É uma prisão de amplos espaços. Mesmo suas formas retangulares conservam o ranço do quadrado. Possui as quatro esquinas geográficas que pedantes alienígenas ainda hoje procuram e teimam em não achá-las. Somos prisioneiros imaginários deste quadrilátero, artificialmente inteligente se isto é possível. Os serviços para o cidadão arrumam-se cuidadosamente em gavetas de escrivaninhas de estilo gerencial em que não se misturam os papéis de banco com os do hotel, as duplicatas do comércio com os boletos do condomínio residencial. Os jornais, como cartas da prisão, nos enquadram com notícias burocráticas, escândalos da semana, desmentidos oficiais.
A liberdade arquitetônica dos monumentos e das avenidas é enganadora. Para encontrá-la há que se enfrentar o labirinto que a própria Ariadne nele se perderia. Pedras, cimento, tijolos e ferro sustentam este delírio monumental que sacrifica os mananciais humildes e destrói a singela paisagem do Planalto de horizontes abertos. Estrangulado pela irracionalidade do transporte individual, o brasiliense é prisioneiro do automóvel, do estacionamento, dos viadutos, das pontes. A concessão da passagem do pedestre é comovedora e faz parte da ilusão da cidadania legal. A faixa do pedestre é um espaço democrático, mas o transeunte teme pela fragilidade de seus passos. O incontável número de placas de sinalização do trânsito e as centenas de máquinas eletrônicas instaladas para lembrar a vida e a mansidão do tempo registram a desobediência dos condutores impacientes.
Brasília é a doce e terna realidade do sonho de Dom Bosco. É a ficção real de se viver perpetuamente num cárcere de delírios e devaneios. O brasiliense é hóspede privilegiado de uma casa no ar. Contudo, sou dos que amam o espaço artificial desta cidade que nos aponta com sua magia os largos horizontes do amanhã.

Eugênio Giovenardi, Sociólogo e escritor
eugeniogiovenardi@yahoo.com.br

Nenhum comentário: