quarta-feira, 2 de outubro de 2013

MOBILIZAR


 
A linguagem oficial dos governos estabelecidos, seja qual for a modalidade, precisa ser decodificada em todas as possíveis significações como se fora um hieróglifo. Ela é, por sua natureza e origem, derivada do poder de ligar e desligar. É sibelina. Pode significar uma coisa e outra. Quer dizer sim e não ao mesmo tempo, ou apenas gerar uma expectativa positiva ou negativa para justificar uma ou outra em algum momento posterior.
Em geral, as informações oficiais, especialmente as estatísticas, não podem ser tomadas ao pé dos números. As margens de aproximação da realidade são muito mais amplas do que as propostas pela fórmula e metodologia usadas. Os governos tratam as populações pela média dos números coletados. Decidem pela média. Às vezes, cortam a realidade por cima. Outras, por baixo. É a maneira de conduzir o cérebro da população a aceitar o que dizem, graças à ampla repetição que todos os meios de informação fazem desses números e às múltiplas interpretações que agregam aos percentuais, hoje, obrigatórios.
É tanta a variação e tantas as probabilidades de que os números atinjam este ou aquele grupo da população, esta ou aquela área da economia e da cultura que fica a dúvida sobre que ou de qual região ou país se está falando. Ou de qual realidade se trata.

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Por exemplo, o preço do tomate na localidade de Engenho das Lajes (DF) estava a dois reais o quilo e, na mesma época no Pão de Açúcar, a sete reais. Esses números eram reais ao comprador de um e outro lugar. Mas, no Pão de Açúcar, comprava-se, antes, a três reais quando, no Engenho das Lajes, adquiria-se o tomate a dois reais o quilo.
O aumento da inflação, no país, assustou todos os compradores de tomate. Todas as especulações, explicações e justificativas foram dadas e repetidas por todos os meios de informação. Criou-se a paranoia da inflação do preço do tomate. Era e é comum ouvir-se “tudo aumentou” e, ao mesmo tempo, as autoridades que detêm os cálculos estatísticos dizem que o ímpeto inflacionário se enfraqueceu. De repente, o preço do tomate baixou.
Foram, assim, plantados no cérebro da população os critérios que dirigem o pensar político e econômico. O tomate serviu de eixo condutor de decisões do consumidor. Enquanto isso e ao mesmo tempo, o preço do material escolar e das anuidades do ensino privado aumentou mais do dobro da inflação anunciada pelo governo. Mas os pais não podem trocar anualmente de colégio como se troca de legume ou se deixa de o comprar. A deseducação começa na ambiguidade nunca esclarecida: lei da oferta e da procura (também dita “mercado”) ou lucro do negócio rentável do ensino privado. Aceita-se o aumento do preço do tomate e da anuidade escolar sem saber quais os critérios e as razões que justifiquem um e outro. Cria-se um sentimento de impotência, de apatia, de indignação.
É um processo deliberado de deseducação e desorientação que afeta todos os critérios de decisão, de participação e de comportamento da população. Há que se rebelar contra isso!


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Outro exemplo de perversão da pedagogia é a informação sobre custos de socorro e atendimento hospitalar de acidentados do trânsito. Os 42 mil mortos no trânsito, anualmente, estão computados nos 211 milhões de reais que o governo diz gastar com atendimento hospitalar ou se referem apenas aos feridos? É só o governo que põe dinheiro para atendimento das vítimas? Supõe-se que os familiares também arquem com despesas de hospital, fisioterapia, psicólogos, psicoterapias, e até psicanalistas. Os custos desse desastre da mobilidade são muito maiores dos anunciados. Trata-se, então, de mobilizar a sociedade organizada, a sociedade civil para compreender esse desatino que beira ao suicídio coletivo. Quem pertence à sociedade civil organizada? O governo faz parte da sociedade civil? Se faz, tem que ser mobilizado e sair da letargia. Destacar uma quantia de dinheiro para tal ou qual serviço não significa mobilizar-se. A mobilização implica pensar. E esta atividade cerebral parece quase inexistente na administração pública.
Se o governo favorece a compra de automóveis, se contenta com o bom desempenho da indústria automotora e permite velocidades de 120 km/h, está sendo conivente com os acidentes de trânsito. Não é, portanto, nenhum favor conceder 211 milhões de reais para socorrer vítimas de acidentes.
Os motoristas de automóveis, que não obedecem às leis de trânsito, que deixam mortos e feridos, pertencem à sociedade civil organizada? Como mobilizá-los ou mobilizar-se contra eles?
Devemos aceitar o processo deseducativo do governo e da sociedade civil organizada ou mobilizar os espíritos livres e independentes para protestarem contra a desordem estimulada pelos governos e pela desídia da sociedade organizada?

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Parece que os ingredientes da educação oferecidos pela receita dos governos se restringem a emprego – renda – consumo, cuja meta finalística é a chamada cidadania ou autoestima. Todos seremos iguais perante o consumo de bens: carros, casa, telefone celular, água, energia, viagem aérea. Os outros itens da igualdade – cultura, educação básica universal, capacidade de pensar, criticar, julgar, decidir, participar, saúde, transporte público democrático, lazer – ficam ao sabor da retórica partidária e da cooptação das pessoas para aprovar tão somente a igualdade do consumo de bens materiais.
Chega-se, então, ao pico da igualdade quando toda a população sabe discutir as vantagens e desvantagens de comprar esta ou aquela marca de automóvel movido a combustível fóssil extraído dos poços de Libra nos fundos do pré-sal. Teremos uma sociedade organizada sobre rodas em alta velocidade e funerais subsidiados pelos impostos democraticamente pagos.
As consequências se manifestam no contumaz índice de analfabetismo, no abandono às aulas, na busca de qualquer emprego ou bico que dê ao jovem a chave de entrada no consumo. Uma grande massa de trabalhadores se manifesta pela via do inconsciente coletivo comandado por sindicatos, por políticos populistas, pela imprensa difusa que lhes dá as pautas dos direitos legais. Na prática não sabem como funciona esse processo burocrático em que se misturam uma complexa legislação, mudança de regras, decretos governamentais, escritórios de advogados e de contabilidade, múltiplos órgãos públicos, bancos arrecadadores e empresas contratantes.

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Surpreendeu-me a ignorância de trabalhador que contratei para auxiliar-me na defesa da Área de Proteção Permanente de meu Sítio. A família de cinco pessoas possui 4 telefones celulares, moto, carro e bicicleta. Manipulam os rudimentos dessas tecnologias e não têm a mínima ideia de como funciona o processo de contratação de sua força de trabalho no que tange à lei. Sabem da existência e dos efeitos práticos do INSS e do FGTS, mas ignoram como isso se processa e se controla. Cada vez que visitam esses órgãos para consulta é como entrar um quarto escuro. Quando precisar receber os benefícios da proteção do Estado, estará só e perdido numa fila de banco oficial. Não se trata apenas desse trabalhador. Contam-se aos milhares se não milhões.
Essas circunstâncias e situações não aparecem nas estatísticas oficiais. Elas nos dizem apenas que tantos por cento dizem que frequentam a escola, mas pouco se sabe o que aprendem ali. Os critérios de igualdade são impostos ao cérebro do inconsciente coletivo para que se restrinja à felicidade de comprar e consumir até o último dos produtos inúteis, desnecessários e prejudiciais à saúde individual e à convivência social.

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A opinião pública é dominada por políticos medíocres, tidos como sinalizadores dos rumos do pensamento democrático, ético, moral e, ao mesmo tempo, são acusados de corrupção, de leniência administrativa e enriquecimento não explicado.
É deprimente observar e sentir que outros cidadãos com ideias e propostas alternativas à sadia construção da civilização são barrados por mecanismos cartoriais, truques dos tribunais de justiça que também estão a serviço de espertos, de raposas do zoo político e dos falastrões desenfreados.

Concluo que o Estado ou o conceito de Estado não conseguiu, nesses 500 anos de infância nacional, congregar educadores para a administração pública. Por isso, a educação nunca foi levada a sério e seremos por muitas décadas o país do mais ou menos com um povo alegre e cordial.

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