quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

PEDESTRES CONTUMAZES


Os burgos medievais, castelos ou mosteiros, residências de nobres proprietários, eram cercados de muralhas fortificadas para protegê-los contra ataques de inimigos. Quem eram os inimigos poderosos que mereciam tanto respeito dos burgueses? Ninguém mais que camponeses pobres, armados de paus e pedras. Hordas de bárbaros de arco e flecha que fugiam das estepes orientais em busca de terras férteis. Gangues de salteadores com pretensão à nobreza. Chefetes regionais que faziam da pilhagem a base de suas fortunas. Apossavam-se do território como donos de vastas florestas e de gente inculta e escrava.
O crescimento da população mundial, as descobertas da ciência, o desenvolvimento da indústria e do comércio transformaram o burgo em cidades tecnológicas, metrópoles e megalópoles. Circunda-as um cinturão de bairros onde vivem serviçais do progresso, auxiliares da poderosa riqueza alheia, alvos permanentes de inclusão ao consumo.
O burgo moderno, metropolitano, como Brasília, trocou as muralhas por vias expressas, avenidas de várias pistas, viadutos e túneis para favorecer a horda de condutores de automóveis que nela circulam tresloucados 24 horas por dia. Onde estão as ciclovias? Reclama-se, então, a realização de “sofisticadíssimo estudo de engenharia de trânsito que agilize o fluxo de carros e, ao mesmo tempo, embeleze a cidade” (Correio Braziliense, 25.1.2011, Caderno Diversão e Arte ). Esse sofisticadíssimo estudo "deve partir do princípio que diminuir o número de carros é impossível”.
Assim deve ser porque um exército de consumidores, armados de automóveis velozes precisam chegar aos centros comerciais para as celebrações das compras urgentes e inadiáveis. As brigadas de funcionários públicos com seus carros individuais, a maioria deles com um único ocupante, apressam-se para conseguir vagas nos estacionamentos dos ministérios, bancos, hotéis, universidades e áreas comerciais.
Quem é, hoje, o inimigo da cidade desumanizada pelo automóvel, amuralhada de vias expressas? O pedestre. Não o ocasional, mas o pedestre contumaz. O cidadão que ousa andar em sua cidade sem a couraça de um automóvel é um pária invisível. É persona non grata, um intruso, invasor de pistas, perturbador do fluxo veloz de carros. Ao pedestre contumaz se concede o raro privilégio de ter, aqui e ali, uma faixa de travessia a contragosto do motorizado. E, para usar a passagem, dão-lhe a honra tecnológica de dispor de um botão eletrônico que o obriga a reverenciar a autoridade veicular e aguardar a permissão de atravessar uma rua de sua cidade.
Quem é esse pedestre contumaz? Os deltas menos da economia, os ipsilones da burocracia deste nosso admirável mundo novo, dominado pelo automóvel sagrado, divino, digno de respeito e adoração. São as empregadas domésticas, as diaristas, os garis, os contínuos dos executivos, os trabalhadores da construção, as crianças das escolas da periferia, os idosos iludidos de que a cidade se constrói para pessoas, para seres inteligentes.
Esses cidadãos  contumazes, segundo o sofisticadíssimo estudo, devem ser enterrados vivos em passarelas subterrâneas para não “causar entupimentos de pistas e congestionamentos a cada cruzamento de dois ou três pedestres”. A obsessão do automóvel e a ditadura divina da velocidade ensandecida desumanizam a convivência entre as pessoas e deturpam a harmonia da cidade.
Há que se conclamar uma revolução a pé a fim de libertar a cidade do império embrutecedor do automóvel. Pedestres contumazes de Brasília UNI-VOS!

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