quinta-feira, 22 de julho de 2010

O QUARTO SUBSOLO

Elizeu é, entre milhares, apenas um dos casos de doença malcuidada porque pertence à categoria de cidadãos do Quarto Subsolo deste gigantesco e cordial país.
Os hospitais públicos atendem com prioridade os que chegam primeiro, os que têm patrocinadores ou estão em classes de pacientes privilegiados pela política de saúde do governo. Esses fazem parte das estatísticas positivas. Na estatística negativa, entram os do Segundo Subsolo que esperam semanas e meses para obter uma senha de consulta ou exames.
O Terceiro Subsolo contém os eleitores apadrinhados de políticos ou de influentes personalidades que furam os tênues controles da organização social e creditam os protegidos à conta da emergência.
No Quarto Subsolo do país, concidadãos de Elizeu, estão os fora das estatísticas. Não são poucos. Dezenove milhões de iletrados, os desempregados crônicos, os que formam o cinturão de pobreza nas fímbrias das metrópoles, os que esperam horas, semanas e meses nas filas de postos de saúde e hospitais. Isto não os impede de operar celulares, metralhadoras e cuidar de carros em estacionamentos.
Eles se compreendem, se ajudam e têm consciência de que serão derrotados mesmo com os precários gestos de solidariedade de voluntários. Todos se preparam para um enterro decente, caixão forrado, guirlanda de flores, abraços, palavras de conformação e lágrimas.
Eram onze horas da noite do dia 20 de julho de 2010. Elizeu, morador do Quarto Subsolo da República Federativa do Brasil, morreu no Hospital de Base de Brasília, antes de ser medicado na Emergência.
As evidências de sua saúde abalada pelo inchaço resultante da gangrena do pé machucado não foram, por si sós, suficientemente fortes para merecer a atenção do médico de plantão. Do Quarto Subsolo à superfície do térreo são vários lances de escada. Por falta de ambulância, mobilizaram-se amigos do mesmo Subsolo para levá-lo ao térreo e, dali, ao hospital. Força bruta apenas. Boa vontade solidária e estéril. Na Emergência do hospital, um rápido olhar ao desconhecido, calado e submisso. Para um cidadão do Quarto Subsolo também existe tecnologia, mas operada com intemporalidade, isto é, sem prazo para obter resultados necessários ao parecer médico. Os exames seguem uma cronologia não pela ordem da gravidade do mal e, sim, pela ordem de chegada do pedido.
O aparelho de alta tecnologia a serviço do pagador de impostos não está em qualquer hospital. De preferência, não está no hospital frequentado por cidadãos do Quarto Subsolo. O médico desse hospital não usa o próprio olho, nem a mão, nem seus oito anos de medicina para tratar desses moradores do andar de baixo. Tem absoluta confiança na máquina. Ela fará por ele o que ele não fez ao paciente. Enquanto os exames passam de máquina em máquina, de laboratório em laboratório, esgotam-se dias e semanas.
Enquanto isso acontece, sem preocupação com o paciente, movendo ampulhetas segundo as normas técnicas dos procedimentos, o paciente é mandado à farmácia. Os antibióticos e anti-inflamatórios custam o dinheiro que o condenado à morte não tem. A solidariedade dos moradores do Quarto Subsolo se cotiza, apela para amigos do primeiro e segundo andares e consegue levar os remédios ao paciente. O estado de gangrena avança sem paciência de esperar pelo resultado dos exames que a parafernália tecnológica arrasta de uma sala a outra, de um paramédico a outro.
Tumulto no Quarto Subsolo. O morador, entupido de antibióticos, percebe que a trama para eliminá-lo deu certo. Grita por socorro para fugir do desabamento final. Metade dos remédios sobrou. Os exames não chegaram ao fim. Elizeu, cidadão do Quarto Subsolo, partiu. Deixou o corpo no hospital onde havia entrado para ser visto antes do fim.
Elizeu não é o único morador do Quarto Subsolo brasileiro. Há vinte e sete milhões amontoados lá embaixo. E o pessoal do primeiro andar, que entra nas estatísticas positivas do crescimento econômico, festeja a escalada gloriosa do PIB.
O fatalismo do Quarto Subsolo enterra os mortos na cova rasa. Paga o coveiro com a ajuda da vizinhança e volta para o anonimato.

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